As minhas corridas na estrada

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Trilhos dos Abutres 2017 - Trail a sério

Acho que desde que comecei a correr em montanha oiço este e aquele a definirem o que é o trail. Há quem diga que tem que ser em trilhos, que tem que ter muita altimetria e dificuldade, outros nem por isso, e falam da distancia e da lógica do percurso. Há quem diga que os há a brincar e a sério. Falam da percentagem de asfalto e de estradão, da quantidade de correntes e rochas para escalar e caminhos para rolar. A mim, se me perguntarem, eu respondo - trail é Abutres.


Depois da espectacular conjugação de factores que tornaram a edição de 2015 numa espécie de tempestade perfeita, e de no ano passado ter falhado por lesão, 2017 marcou o meu regresso àquela que, juntamente com MIUT, Piodão e Arga, é para mim a melhor prova de montanha em Portugal. Desta vez a previsão nos dias anteriores afastou logo o cenário dantesco de 2015, mas a Serra da Lousã não precisa de meteorologia extrema para se agigantar. Na verdade, nenhum dos quase 600 que estavam às 8 da manhã no mercado de Miranda do Corvo fazia ideia do que ia apanhar nas próximas horas. De uma coisa todos nós tínhamos consciência - não ia ser fácil. 

Uma viagem desde Almeirim um pouco em cima da hora não permitiu que conseguisse um lugar na parte da frente do pelotão antes da partida, por isso foram uns primeiros 2km dentro de Miranda a forçar o ritmo, para evitar congestionamentos na entrada dos trilhos. 

O céu estava nublado, mas a chuva acabou por nunca aparecer. Até a temperatura estava amena, o que me fez arrepender imediatamente da escolha de equipamento. A meio da primeira subida suava em bica, já ligeiramente preocupado com a perda de sais.

Este ano houve a novidade de subir um monte de cerca de 300m nos primeiros 7km, em vez de o contornarmos como nos anos anteriores. Uma subida toda ela feita em estradão, que serviu para abrir o pelotão e acrescentar mais uns metros à conta final de desnível positivo, que foi de 2700. No topo do monte encontrámos o Templo Ecuménico de Miranda do Corvo. Parece que é um templo onde estão representadas todas as religiões do mundo, mas há uma que, para mim, se destaca muito das outras. A religião de Nossa Sra. do Mau Gosto.

Sem comentários. Foto do Miguel Cadalso.

Depois de descer o monte da pirâmide cor de laranja a voar num estradão, entrámos finalmente na Serra. O caminho de entrada era um trilho que há dois anos estava completamente inundado. Assim seco era um espectáculo para correr, sempre junto a um ribeiro. O percurso até Vila Nova (15km), espécie de prelúdio dos Abutres, ia sendo feito quase sem dar por isso. Pernas leves e soltas, sorriso na cara enquanto ia deixando bocados de conversa com este e aquele amigo, e cada vez são mais as caras conhecidas nestas provas. Vi o Ricardo, que me levou de volta ao MIUT onde nos vimos pela ultima vez, o Marcelo, que me transportou àquele km que partilhámos em Vallorcine, antes da subida final no UTMB, vi o João Pereira que encontrei há 3 anos no DUT e me fez lembrar a fatídica subida aos bombeiros... Lamechices à parte, é incrível a quantidade de pessoas que fazem parte da minha vida por causa deste desporto.

No trilho de entrada
Depois do abastecimento em Vila Nova começou a primeira grande subida da prova, até ao Observatório. Falar em subidas nos Abutres é sempre duvidoso, porque o sobe e desce é tal maneira constante que às tantas não se sabe bem se estamos numa subida ou descida. Mas a cota no relógio continuava a aumentar, por isso devia mesmo ser a subir. 

Chegados a um planalto antes do ataque final aos 930m do observatório, lembrei-me logo da minha prova de há dois anos. Foi ali que estive no precipício, quase quase a cair na desistência, por causa do frio. Desta vez, com o trilho seco e temperatura amena, o prazer de correr naquele caminho macio e escuro ligeiramente a subir era imenso. Só não era maior porque desde lá de baixo de Vila Nova que 2 ou 3 companheiros decidiram que eram os novos malucos do riso e acharam que toda a gente devia saber isso. Mas pronto, cada um vive aquilo à sua maneira...

Chegada ao observatório, foto do Miguel Cadalso
Foi no observatório o único sitio durante toda a prova que senti algum frio. Demorei-me o mínimo possível no abastecimento, só para voltar a encher o depósito de água. Continuei com a alimentação de geis e barras de hora a hora.

Seguia-se a descida até à Sra. da Piedade. 5km numa espécie de jogo de computador que vai tendo vários níveis de dificuldade. Há de tudo. Desde trilhos bons para correr, outros cheios de pedra, com lama, com água, sempre intercalados com pequenas picadas a subir, mesmo à Abutres. Conhecia bem os próximos 15km. Passei a ultima semana de Dezembro em Gondramaz com a Sara, os miúdos, o Vasco (que também estava em prova) e família. Fizemos lá uns treinos daqueles que enchem a alma e dava um certo conforto reconhecer os sítios onde andava.

Nesta descida comecei a ter as primeiras dificuldades da prova. Cada vez que precisava de alçar as pernas para passar um obstáculo os músculos prendiam e tinha câimbras. Comecei a descer mais devagar e a ser ultrapassado. Contava os quilómetros até ao abastecimento para poder comer alguma coisa salgada, já que não tinha sais nem isotónico. Fiquei um bocado desanimado, ainda era muito cedo e já estava com estes sinais de falência física.

A chegada ao corte da Sra. da Piedade, 28km, foi com 4 horas, mais de uma hora antes do tempo de 2015. Mas é incomparável, foram provas totalmente diferentes. Comi uma sopa espessa e a escaldar, num abastecimento que estava cheio de mais (logo a seguir perceberia porquê). Saí de lá com o Manteigas, o Marcelo e o Miguel com a moral em alta para atacar o que faltava. E não faltava pouco. Os Abutres iam começar.

À saída do abastecimento com o Manteigas e Marcelo, foto do Miguel Cadalso.
A pausa e a sopa fizeram-me bem, assim como a companhia daquele grupo de 4. Íamos entrar nos quilómetros mais técnicos de toda a prova, mas assim que o caminho começa a ficar mais acidentado começam a formar-se filas. Estranho.. O pelotão já estava muito disperso ainda há pouco... 

Os congestionamentos continuaram, chegando mesmo a parar algumas vezes, até que percebi que estávamos a apanhar a cauda da prova dos 30km. Tenho que confessar que foi bastante frustrante. Não que fosse andar muito mais depressa que aquilo, mas parávamos constantemente e as ultrapassagens eram muito, muito, complicadas. É certo que nos desgastámos menos, mas psicologicamente fui-me um bocado abaixo. Acabei por passar nalgumas das melhores partes do percurso em stress. Uma situação chata, mesmo para quem vai na outra prova.

Fila para o supermercado aos 30km. Yep, Miguel Cadalso.
Na cascata dos Abutres
Depois de uma primeira parte muito técnica e inclinada a subir, entramos num estradão curto que desce durante um km, até voltarmos novamente a um trilho para a parte final da subida ao Posto de Vigia. No estradão os engarrafamentos finalmente dispersaram e pudemos abrir um bocado a passada para recuperar o tempo perdido. O pior foi voltar a subir em condições. As câimbras tinham voltado em força. Mesmo em subidas fáceis tinha que abrandar o ritmo e chegava mesmo a coxear. Merda para as câimbras, quase nunca tenho, mas fico irritado quando aparecem de tal forma limitadoras que são. 

Cumpri a subida até ao observatório em serviços mínimos. Nunca me senti a forçar, mas a parte muscular simplesmente não correspondia. Teria de ser o abastecimento que há dois anos me salvou da hipotermia a voltar a dar-me vida. 

Mesmo no final da subida, antes do posto. Foto do Miguel Cadalso.
Lá em cima, no posto de vigia, comi uma bifana deliciosa e mais uns copos de isotonico. Seguia-se mais uma tareia de trilhos que têm tanto de bonito como de técnico, precisava de uma grande amplitude de movimentos das pernas que naquele momento não tinha. O que me dava algum alento é que nas zonas que dava para rolar conseguia fazê-lo de maneira confortável, mesmo quando subia ligeiramente. Antes de chegar à parte mais técnica, junto a Gondramaz, ainda teríamos a parte que mais ansiava da prova. Um trilho espetacular para correr, no meio do bosque, percorrido pelo menos 5 vezes por mim e pelo Vasco naquela semana de dezembro. Esqueci a porra das câimbras e a prova que já estava a fugir do "bom" para o "meh" há algum tempo e voei nessa descida!

Mais uma do Miguel, nessa descida.
Esta descida é o exemplo perfeito do que são os Abutres. Começa nesta autentica passadeira acolchoada, transita para uma parte muito mais inclinada e desemboca numa secção final brutalmente técnica, que inclui a subida para Gondramaz. Duzentos metros verticais a escalar por entre rochas, cascatas, árvores, lama e musgo. Com correntes, cordas e mãos arranhadas. Há dois anos esta parte foi cortada por causa do mau tempo, desta vez voltou para acabar de derreter as minhas pernas que já guinchavam por todo o lado!

Não foi na prova, foi quando lá estivemos em Dezembro, mas passámos por aqui em sentido contrário
Mais uma vez voltaram as câimbras na subida, cada vez mais limitadoras. Rais parta isto, andava a treinar tão bem e agora esta porra... Sossegava-me esta ser a ultima subida da prova. Apesar de ainda termos trilhos muito técnicos até ao fim, esses seriam mais fáceis de gerir.

Breve paragem em Gondramaz, mesmo no largo da Igreja em frente à Casinha do México, onde já fiquei alojado várias vezes. Novo reforço de isotónico e siga caminho. 

Abastecimento de Gondramaz
O percurso até Espinho, local do ultimo abastecimento a 4km da meta é mágico. Só para reforçar a ideia que valeu mesmo a pena andar ali. Consegui colar atrás do Ricardo Diez, do Mundo da Corrida, que não me conhece mas foi a minha lebre durante 4 ou 5km sempre percorridos a trote, num crescente de ânimo que empurrava para um canto as câimbras e  restantes dificuldades. 

Passagem em Espinho sem parar. Faltam 4km, um deles num rio de lama que há dois anos me chegou à cintura. Desta vez pouco passou do tornozelo. 

Mesmo assim estava bonito. Adivinhem? Outra do Miguel Cadalso.
O quilómetro e meio em alcatrão até à meta foi cumprido num trote rígido, apesar de tudo as pernas ainda respondiam. Oito horas e vinte depois estava de volta ao pavilhão e confesso que ainda hoje estou um bocado desiludido com a minha prova. Não pelo tempo, não estabeleci nenhuma marca para cumprir, mas porque nos últimos meses me tinha andado a sentir super bem nos treinos e estava à espera da recompensa neste sábado. Mas não. Nunca andei no limite, mas também nunca me senti com muita força. É frustrante e até tenho andado um bocado desmotivado. Enfim, melhores dias virão.

Sras e srs, MIGUEL CADALSO! Depois de tamanha contribuição para este post com fotos,  acho que a da chegada tem que ser dele! eheh
Apesar de desiludido com a minha prestação, não estou de forma nenhuma desiludido com a prova. Os Abutres mais uma vezes cumpriram na perfeição. São cada vez mais uma prova à parte no panorama português, com pormenores de organização como só vi no MIUT e UTMB, duas provas do world tour. Como diria um senhor, que finalmente conheci naquele dia: aquilo sim, é trail a sério!


terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Oh não, mais um post resumo!

Olá. Ainda vou a tempo do post de 2016? Não? Meh.. faço na mesma.

2016...

2016 foi..... bem, foi esquizofrénico. 

É isso. 

Provavelmente o ano com mais convulsão na minha vida. A nível pessoal e familiar foi uma autentica loucura. Desde o nascimento do "mai novo", até à construção da nossa actual casa (que começou e acabou durante 2016), duas mudanças, o trabalho que passou por uma fase terrível e acabou o ano numa das melhores de sempre... 

A montanha russa teve espelho na corrida. Em Janeiro, mês que fui sorteado para ir ao UTMB, praticamente não corri por causa de uma lesão. Com o MIUT a aproximar-se perigosamente arrisquei reiniciar os treinos mesmo não estando 100% seguro que estava recuperado. A coisa correu bem e com dois meses e meio de treino afincado consegui arrancar a melhor prova da minha vida, num dia praticamente perfeito e dificilmente repetivel na Madeira.

No final das 24h e SETE MINUTOS do MIUT 2016
A seguir à prova da Madeira cometi provavelmente o maior erro do ano, que foi participar no Estrela Grande Trail apenas um mês depois. Na verdade foi toda uma conjugação de factores que passaram muito pela sobranceria com que encarei esta prova e que resultaram no fracasso que foi a minha participação no EGT 2016. 

Pelo menos deu para boas fotos!
No fim era altura de lamber feridas e limpar o histórico. Três meses separavam-me do Ultra Trail du Mont Blanc. Mais que o óbvio grande objectivo do ano, a participação no UTMB transformou-se numa das experiências mais avassaladoras da minha vida. A prova correu-me mal. Com o devido distanciamento, admito que ainda não estava preparado para ela, mas faria tudo exactamente da mesma maneira para poder VIVER aquelas 44 horas nos Alpes. Ainda hoje me arrepio quando viajo mentalmente por aqueles trilhos, e a prova que não me consegui desligar dela é que ainda carrego a pulseira vermelha. 


Além das provas, 2016 fica também marcado pelo melhor "treino" da minha vida. E meto treino entre aspas porque a viagem a Serra Nevada foi muito mais que um simples treino. Agora consigo perceber que foi a partir daí que passei a encarar a corrida de uma maneira diferente. Desde aquele fim de semana na montanha, atrai-me não só a parte competitiva do trail, o treino, o chegar mais longe e mais rápido, mas principalmente a aventura. O passar horas na montanha. Aquela sensação de iniciar um treino, ou prova, e não fazer a mínima ideia do que nos espera. A gestão do esforço, o diálogo interior.... 

Pronto, já chega, tá a ficar lamechas.

No fim da segunda ascensão ao ponto mais alto da Península Ibérica.
Ok, já está um ano despachado. Passemos a 2017.

Assim, curto e grosso, estas são AS provas de 2017:

MIUT (115km, 7200D+, Abril) - Vou para o hat trick. Como já disse por aqui, é impossível resistir ao MIUT, é a prova perfeita. Tem tudo o que gosto numa corrida, desde percurso a organização. Mal posso esperar para voltar à ilha e tentar chegar a Machico 7 minutos mais cedo que o ano passado!

Andorra MITIC (112km, 10000D+, Julho)- Balancei muito na escolha desta prova. A ideia original era nova viagem ao Alpes, para o Eiger ou Lavaredo. Pesou principalmente o factor económico, é muito mais barato ir para Andorra com a família do que para os Alpes Suíços ou Italianos, mas já se tornou mais que isso. As estatísticas da Mitic são ridículas. Enfrentarei o mesmo desnível que no UTMB mas com 60km a menos. Desde a primeira edição a taxa de desistências nunca foi inferior a 50% e o tempo médio para terminar anda sempre à volta das 40 horas, o mesmo que no UTMB (relembro, com 60km a menos!). É uma brutalidade de desafio. Eu, que sempre disse que não gosto de provas demasiado técnicas, vou-me enfiar precisamente na boca do lobo! O respeito é gigante, mas a vontade de superar o desafio ainda maior. Já sonho com a famosa subida a Comapedrosa, um quilómetro vertical entre os 2000 e 3000m de altitude, cumprido em 3km!

UTAX (110km, 6000D+, Outubro) - A Serra da Lousã é dos meus sítios preferidos de Portugal. Adoro Gondramaz, onde já passei vários dias com a família. Além disso tenho uma dívida com esta prova, depois de em 2015 não ter participado por lesão. 

Além destes três colossos, a agenda do primeiro semestre já está bastante preenchida com passagens pelos Abutres (50km em Janeiro), Vila de Rei (50km em Março) e Piodão (50km em Abril). Depois, relativamente a provas, apenas tenho intenção de participar novamente no Grande Trail Serra de Arga. Logo se verá.

Pronto. Aguentaram com mais um post resumo de 2016 e planos para 2017. Parabéns! 

Antes de ir embora, vou fechar esta publicação com a minha fotografia preferida de sempre. Simboliza tudo o que foi aquela semana nos Alpes. Tirada pela Joana, namorada do Zé Nuno, que estava com o Manelíco ao colo, no fim do UTMB. Foram 44 horas percorridas não só por mim, mas por eles os 5. O Zé, a Joana, a Sara, a Mel e o Manel.

Vamos a 2017!