Imaginem-se numa praia da nossa costa atlântica, num dia de 30ºC, que baixam para 25 ao pé do mar. Agora imaginem-se à beira mar, com os pés de molho que se vão enterrando à medida que as ondas vão e vêm. O sol disfarça os arrepios de frio provocados pela spray das ondas e por uma ligeira brisa fria que sopra. Um dia de verão perfeito! Mas algo está mal... Estão umas 30 pessoas à beira mar mas só 2 ou 3 dentro de água. Estás com calor e pensas em mergulhar, mas olhas para o mar e vês que as ondas estão a rebentar furiosas mesmo junto à praia. Lá ao fundo vês as outras ondas, maiores, a rebentar. Sentes imediatamente um enorme respeito pelo que tens à frente, pelo imenso mar.
Era assim que estava no sábado às 18:30, meia hora antes de partir para mais uma maratona. A 200 metros via o pórtico de saída, sabia que bastar-me-iam dois minutos para passar por baixo dele, sabia que a partir do momento que o passasse não havia volta a dar. Como quem passa pela rebentação e se vê a uns metros da praia, assim que o transpusesse estava no mar, ia ter que nadar até ao fim, desse por onde desse.
A ING Night Marathon é um grande acontecimento no Luxemburgo. Cerca de dez mil pessoas (mil e poucas na maratona, algumas na corrida por estafetas e a grande maioria na meia) saem à rua para percorrer as ruas da cidade. Cidade essa que não é maior que, por exemplo, a nossa Almada ou Braga. Tem um centro histórico pequeno muito giro e depois várias bairros residenciais à volta. Ah, e depois tem outra característica que vai adquirir alguma importância nesta crónica: não sei se em toda a área da cidade existe alguma rua que seja plana!
Eram 19.00 quando se deu a partida da prova, numa zona nova um pouco afastada da cidade, imaginem a expo em Lisboa. Com o sol ainda a pique, temperatura a rondar os 20ºC, os 10 mil atletas partiram juntos, o que aumentou um pouco a confusão, mas nada de especial. Ruas largas trataram de escoar rapidamente toda a gente e não demorou muito até entrar no ritmo a que me tinha proposto fazer a corrida. Apesar da pouca experiência que tenho, é a suficiente para conhecer bem o meu corpo e principalmente respeitar a maratona. Sabia exactamente os meus limites e o máximo que poderia dar. A ideia era não fazer um tempo miserável, mas o suficiente para chegar ao fim e saber que dei tudo o que tinha, aproveitando para explorar a cidade e o ambiente. Era esta a minha estratégia planeada ao pormenor nas ultimas semanas, mas eram 19h, o tiro de partida tinha sido dado, nas colunas tocava a já gasta "I gotta feeling" e o pórtico estava a menos de 100 metros. Avanço devagar, respiro fundo, carrego no start do cronometro, e mergulho. Está na altura de passar a rebentação.
Assim que dou os primeiro passos de corrida sinto que a minha cabeça vai rebentar, aquela dorzinha irritante que apareceu depois de almoço, e que eu fui atribuindo à ansiedade, rebentou com toda a força assim que comecei a correr. Com o sol forte de frente, fui semi-cerrando os olhos, mas ela estava lá para ficar. Correu mal a passagem da rebentação, calculei mal o fim do set e quando ia a correr uma onda mais forte fez-me tombar, mas não havia volta a dar, é dar às pernas e esperar que passe.
Mergulhei finalmente por baixo da última onda. Já estava junto dos 2 ou 3 que via da praia, depois da rebentação, naquela zona onde podemos relaxar, deixar o corpo a flutuar e aproveitar o balanço da ondulação. Às vezes até arrisco boiar e fechar os olhos durante uns segundos. Os primeiros 10km de uma maratona são assim. Se formos com juízo, o ritmo inicial é muito abaixo das nossas capacidades numa corrida de 10km, nem damos pelos quilómetros a passar e vamos praticamente sem esforço, como se fosse a própria estrada a passar por nós, sem esforço, sem pensar, só prazer!
O percurso da maratona do Luxemburgo é o melhor que já fiz até hoje. Não, não é de todo plano, não há estradas largas para correr nem avenidas compridas. Aliás, se excluir os primeiros 3 ou 4km na zona nova da cidade, não passei por nenhuma recta com mais que 300m. Um suceder sem fim de subidas e descidas, curvas e contra-curvas, caminhos em parques, no centro da cidade, na periferia, passo por cima e por baixo de pontes, sem cruzar ou passar pelo mesmo sitio e nunca, nunca monótono! Mas o que me surpreendeu muito foi a participação das pessoas. Eu pensava que já tinha visto tudo em Sevilha e Barcelona, mas ontem fiquei com a impressão que toda a cidade saiu à rua para apoiar os atletas, absolutamente incrível a quantidade de gente que puxava por nós como se estivéssemos a liderar a prova! Se no centro eram aos milhares aos gritos, a formar corredores humanos, nos bairros residenciais era rara a casa que não tinha uma mesinha à frente, com um churrasco, e famílias inteiras alegremente a puxar pelos atletas enquanto faziam uma refeição e bebiam uns copos. Uma dezena de bandas de percussão espalhadas pelas ruas alegravam as hostes e foram às centenas os high-fives que distribui pelo caminho, fiz questão de não deixar ninguém pendurado! Quer dizer, não é bem assim, a certa altura vi dois miúdos de braço estendido, um com a camisola do Porto e outro com a do Benfica, adivinhem quem levou o high five mais sentido da noite ;) Os abastecimentos estiveram ao nível da prova, excelentes! Nunca tinha visto tantos e tão completos, desde o primeiro que contavam com água, isotónico e vários sólidos, nunca distanciados por mais que 5km, alguns bem menos que isso.
Os primeiros 28km da prova passaram assim, tranquilos. A dor de cabeça não me deu tréguas, mas sentia-me bem fisicamente. Mantive o ritmo com um rigor de relógio suíço e a estratégia estava a dar certo, sentia um certo desgaste nas pernas mas não me custava correr. Chegámos então ao km 29.
Estava ainda a aproveitar o mar o baloiçar das ondas quando uma nuvem grande começou a tapar o sol que me estava a aquecer. Ao passar o km 29 entro numa descida muito inclinada com 1km de extensão. O declive forte massacra-me as pernas que já estavam cansadas. Sinto-me solto a descer, relaxo os braços e respiro fundo. Uma grande descida só pode significar uma coisa - vem aí uma subida.
Quase imediatamente sopra um vento forte mais frio que empurra o spray de uma onda que rebentava lá ao fundo. De repente sinto uma corrente forte a puxar-me mais para dentro do mar, estico o pé e toco no chão, há pouco não estava lá. Lá ao fundo vejo uma sombra negra a crescer e a aproximar-se, olho para trás e as pessoas na praia estão serenas a conversar, volto a olhar para a frente e a sombra está maior. Uma ligeira sensação de pânico assola-me. Começo a nadar em direcção a ela e vou olhando em frente, está maior. Está a formar-se uma parede, um muro negro que me puxa, cada vez com mais força.
Os três quilómetros seguintes são feitos no vale de Grund, depois da descida. O caminho é espectacular, carreiros com 2m de largura que serpenteiam ora dum lado ora do outro do rio. Passo por baixo das pontes altíssimas que atravessei ainda à pouco. As pernas ressentem-se da descida, mas vou aguentando o ritmo. O gel que tomei aos 30km deu-me algum ânimo, foi o terceiro, tomei outro aos 10km, aos 20 e voltarei a tomar aos 38km. Começo a ver as primeiras baixas à minha volta, o que desmoraliza um pouco.
Aos 33km surge uma subida que transforma esta maratona num verdadeiro trail urbano. Muito inclinada, com escadas, zigue-zague e longa, muito longa!
A parede está a ficar definida. Um verdadeiro monstro cinzento que parece sugar tudo à volta. Ela aproxima-se e eu sou atraído inevitavelmente a ela.
Saí do Grund e voltei ao centro da cidade, onde estão as multidões que nos dão uma força extra. No entanto ele deixou-me marcas, já não corro com prazer e a minha cara deve transparecer isso num esgar de sofrimento, porque vejo as pessoas a puxar por mim como nunca. Estou no 35º km e contínuo a subir, agora por entre ruas estreitas no centro da cidade. Nesta altura já faço contagem decrescente para o fim, faltam 7km, quase nada!
Voltei à zona nova da cidade, no único sitio que dobra o percurso, os tais 4km inicias. Tomo o ultimo gel no abastecimento dos 38km e preparo-me para enfrentar quase 2km de uma subida ligeira mas constante.
O monstro cinzento mostra-se agora em todo o seu esplendor. Não lhe vou escapar, penso. É impossível.
Olho para o chão enquanto corro. Ok, não era bem correr, praticamente andava enquanto abanava mais os braços! Havia pouca gente inscrita na maratona, por isso ia praticamente sozinho. Aquela avenida grande com edifícios modernos dos dois lados, que há bocado passou despercebida era agora uma estrada infinita, deserta, sempre a subir. As pernas pediam que parasse. Pediam descanso, pedi de mais delas, 40km já era de mais, já chega!!
41km, continuo a subir. Não percebo, de todas as maratonas que fiz quando cheguei aos 40km senti sempre uma energia extra, como se aqueles últimos 2km já não contassem! Mas naquele dia não, havia qualquer coisa mal....
Era agora o tudo ou nada. Ouvia a parede a desmoronar ao meu lado, parecia um trovão! Tinha que conseguir, um último esforço, vá lá!!
Naquele último quilómetro todas as fibras do meu corpo pediam para parar, nunca passei por nada assim. Estava em modo automático, era um pé à frente do outro. Sentia cada passada como se fosse um filme em câmara lenta.
Dou duas braçadas, uma última pernada, mergulho a cabeça por baixo da crista que já se tinha formado, o meu corpo é brutalmente impulsionado para cima.
41.7km. Estou a correr ao lado do pavilhão onde é a chegada. Lá ao fundo vejo a entrada, faltam 500m Filipe, está feito!
Sinto a onda a rebentar nas minhas pernas, a cabeça já passou. Abro os olhos, dou uma golfada de ar, consegui, passei!!
Os últimos 100 metros são corridos dentro de uma pavilhão enorme, música alta, fumo, luzes, centenas de pessoas. Na ultima curva vejo a Sara de braço no ar e esboço um grande sorriso, coisa que já não acontecia há uns 7 ou 8km. Foi com esse mesmo sorriso que passei a meta de braços no ar. Estava feita!
Baixo a cabeça, desligo o cronometro, dou três passos atabalhoados e imediatamente agarro-me aos joelhos. Antes de partir combinei com a Sara que terminaria perto das 3h40. O tempo oficial foi 3h39m51s! A minha quarta pior maratona e vinte minutos mais lento que em Sevilha, mas fiquei tão ou mais orgulhoso que naquele dia! Foi uma prova duríssima, não só pelo percurso mas principalmente porque não estava tão bem preparado.
Dei tudo o que tinha, sentia-me completamente esgotado. Nos bastidores da prova, onde nos davam comida e bebida, tive que me deitar 3 vezes no chão. Apetecia-me chorar com as dores que tinha, as pernas tremiam. Arrastei-me até me encontrar com a Sara que estava com a Maria Amélia ao colo e me abraçou. Agora sim, tinha chegado ao destino. Era altura de deitar o corpo na toalha e esperar que o sol me trouxesse de novo à vida.
Por enquanto a única foto que tenho da maratona. Na chegada, sentado no chão, mais morto que vivo, mas já ao sol :)