As minhas corridas na estrada

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Madeira Island Ultra Trail 2023 (85km) - Apagou-se a luz.

Desde 2015, altura em que fiz pela primeira vez a prova rainha do MIUT, os 115km, que olhava para a segunda distância, os 85, como uma espécie de refúgio seguro. Sem os demolidores primeiros 35km, a travessia da ilha parecia, na teoria, um passeio. Foi com essa sobranceria que o ano passado decidi inscrever-me, depois de uma experiencia muito boa nos 60km em 2022. Inevitavelmente a montanha pôs-me no meu lugar. Mas foi mais do que isso. Depois de anos a descrever aqui jornadas de auto-superação, esta é uma crónica muito especial. Foi neste dia que percebi que alguma coisa mudou em mim. 

Fotografia muito boa da Bernardete Morita

Cheguei tranquilo a São Vicente, ainda de noite. Pela primeira vez em 8 viagens de autocarro para a partida, adormeci a dormi praticamente o caminho todo desde Machico. Com a idade tenho desenvolvido o dom de conseguir dormir sentado, capacidade da qual me orgulho muito! Tal como em 2021, partia com zero confiança. Mais uma vez a preparação tinha sido manchada por uma lesãozeca que aparece sempre que meto alguma intensidade nos treinos, algo que me anda a enervar muito. Mas se em 2021 estava apavorado porque a juntar à fraca preparação tinha os 115km pela frente, este ano eram "apenas" os 85km. Os simpáticos e acessíveis 85km. Pois claro...

A partida e primeiros quilómetros foram tudo o que eu precisava. Ligeiramente a subir, com 3 ou 4km sempre em alcatrão feitos a trote, permitiram ao corpo e mente entrarem lentamente em prova. As boas sensações chegaram com os primeiros raios de sol, que iluminavam as encostas das montanhas cobertas pela floresta Laurissilva. Pensei nos desgraçados dos 115km enquanto olhava lá para cima. Reconheci a montanha de Estanquinhos e lembrei-me, com um arrepio, das 6 vezes que fiz aquela descida precisamente por volta daquela hora, já com um empeno monumental nas costas e a fazer contas à vida. 

A junção dos percursos chegou pelos 10km, a meio da subida para o hotel da Encumeada. Seguia soltinho a bastonar pelos degraus, enquanto cruzávamos com os primeiros cadáveres dos 115km. Tão bem que me lembro daquelas ultrapassagens enquanto estava do outro lado... Desejei força e boa sorte a todos os que se cruzaram comigo, percebendo perfeitamente o que estavam a passar. Já eu, com uma dúzia de km fáceis nas pernas, continuava bem disposto e espantado com a facilidade com que virei a montanha e corria na levada antes da pequena descida que nos deixava no Hotel. Entrei no abastecimento e fui direto à casa de banho, para me livrar do, até então, único desconforto do dia. Renovei a água de um dos flasks e não consegui comer grande coisa, o Tailwind que levava no segundo e que vinha a beber deixou-me meio mal disposto. Nada de grave, concluí, enquanto arranquei para continuar a descer ainda com uma rodela de batata doce na mão.

Aqui apanhei a grande novidade do percurso deste ano. O famoso tubo verde deixou de existir. Este ano descemos mais um bocado, mesmo até ao fundo do vale, e em vez de subirmos à bruta pelo tubo fomos subindo a encosta num trilho muito bom até encontrarmos o antigo percurso 2 ou 3km mais à frente. Daqui resultou mais desnível mas cumprido numa subida muito melhor e mais interessante. Nunca fui fã do tubo. A alteração acabou foi por cortar aqueles quilómetros mais corríveis a seguir ao tubo e uniram a subida inicial à subida da Encumeada. Por mim, tudo ok! Gostei bem mais assim. 

Fotografia do Vasco Carvalho

Nunca me tinha sentido tão bem a virar a montanha para o Curral. Cumpri a subida de forma muito tranquila, sem exagerar nada, e forcei metade de uma goma da Beta Fuel antes de começar a grande descida para o Curral. Apesar das pernas estarem lá, já tenho quilómetros suficientes para saber que se não tivesse juízo na descida a marretada mais tarde era inevitável, por isso desci com toda a precaução. Apesar disso, adorei descer esta encosta. A diferença que faz ter pernas ali... é incrível! O que noutros anos foi um pesadelo que parecia infinito, desta vez foi uma descida fluida e muito divertida. No entanto, por mais precauções que se tenha, são 5km e 800m de desnível negativo, e bem que os senti quando tive que subir até ao abastecimento já dentro do Curral das Freiras. Naqueles 100m de desnível positivo antes do pavilhão, feitos a subir por uma escadaria, notei as primeiras luzes amarelas do motor a acender. 

Base de vida. Detesto este abastecimento. Detesto a confusão, o calor, os cheiros... Tento mecanizar ao máximo as rotinas para me despachar. Vou buscar o saco e começo a tratar dos afazeres à pressa. Meti os frontais na mochila, alguma roupa para o frio e mais gomas. Encho os flasks. Um com mais uma saqueta de Tailwind, o segundo com goldrink e um terceiro com água. Estava muito calor e sabia bem o que me esperava na subida até ao Pico Ruivo, aquele terceiro flask ia ser usado de certeza. Fui comer, mas a má disposição que tinha na Encumeada tinha-se acentuado e só consegui meter meia banana e um bocadinho de marmelada. Não há-de ser nada. Fugi do abastecimento e meti-me ao caminho para a maior subida destes 85km.

Estava muito calor, talvez o ano mais quente que apanhei. A subida ao Ruivo, um monstro com 10km e 1300D+, é horrível nos primeiros km. No meio de eucalitptos, com terra seca, sol nas costas e sem vento. Subi esta primeira fase sem ir ao limite, consciente que apesar de ainda ter pernas não podia forçar. O calor fez-me beber sofregamente os flasks, primeiro o do tailwind e depois o do goldrink. Ao ponto de já não me saber nada bem aquela mistela com sabor e desejar ter metido mais do que a terceira garrafa só com água. Bebia 1 gole e passava 5 minutos a arrotar. Normalmente uma subida constante como esta vai-se tornando mais fácil à medida que vamos subindo, como se o corpo encontrasse o ritmo, mas desta vez estava a ser diferente. Pelos 1600m, na Boca das Torrinhas, ponto em que saímos dos eucaliptos e começamos a subir e descer escadas lá em cima, entramos nas nuvens e a temperatura baixa radicalmente, ficando muito mais confortável, mas as escadas a subir estavam a ser um sacrifício e já implorava pelo refugio quando finalmente virámos no Pico Ruivo.

Chegada ao Pico Ruivo. Única foto que tenho da prova, pelo Nelson Graça

Como previsto, os 3 flasks estão quase vazios, só me sobrou metade do que tinha goldrink. Completei esse com água, ficando ainda a saber a goldrink, e enchi o segundo só com água. Entrei no abastecimento e estive aí um minuto a olhar antes de me decidir por um quarto de banana, a única coisa que comi. Estava muito mal disposto e só de olhar ficava agoniado. Ok, isto vai ser um problema...

Travessia entre os picos. Os últimos 5km verdadeiramente difíceis do percurso. Aquelas escadas antes do Ruivo serviram como um preview do que se apanha a seguir, mas em muito pior. E se serviu de preview a coisa não estava com bom ar. Primeiro km a descer, no meio do fresco das nuvens, fez-se bem, mas assim que começo as primeiras subidas percebi que estava muito perto de estar vazio. Pronto, nada a fazer. Cerrei os dentes e forcei. Tantas e tantas vezes que já estive naquela situação ou pior, sabia que era inevitável. Era lidar e tentar sair pelo outro lado da melhor maneira possível. 

Quase todo o percurso foi feito no meio das nuvens, tornando a temperatura muito agradável. Foi a minha oitava travessia entre os picos, tive pena dos estreantes que não puderam usufruir verdadeiramente da vista brutal naquele sitio, mas a mim soube-me pela vida. Só saímos do meio delas na parte final da subida para o Arieiro, mesmo no sitio certo. Pudemos apreciar o manto branco e os picos angulares que o rompiam. Um espanto! 

Fotografia muito boa da Bernardete Morita a captar precisamente aquele momento que falei

Se os degraus finais a subir já foram um sacrifício o que dizer dos degraus a descer a seguir ao Pico. Estes são dos km que menos gosto de todo o percurso. Uma descida desconfortável, com degraus, muita pedra e uma pequena subida deixam-nos finalmente no abastecimento do Chão da Lagoa. Entrei na tenda e sentei-me na primeira cadeira que encontrei. Estava já completamente amassado, com um restinho de pernas a ameaçar seriamente esgotar. Luzes laranja no tablier piscavam incessantemente e mesmo assim não consegui levantar-me para comer. Lá tentei comer uma rodela de batata doce, dei uma dentada e empapou tanto que só consegui empurrar com água. Nem tentei comer mais nada. Voltei a encher com água e fiz-me ao caminho desanimado. 

Até à Portela seriam 11km sempre a descer, quase sempre quilómetros fáceis. Havendo pernas são 11km para se fazerem muito bem. Mas a minha esperança de sair do túnel onde entrei na subida ao Ruivo desvaneceu-se à medida que ia descendo. Os metros foram-se tornando cada vez mais custosos de cumprir, movimentos perros, dores e mais dores nas pernas, na lombar, nos ombros. Cada vez mais mal disposto.... 

Merda. Merda pra isto. Fiz tudo bem até aqui. Não abusei nas subidas, não exagerei nas descidas. Fiz tudo bem e mesmo assim estava outra vez no poço do costume. Nos 85km, aquele refugio seguro e agradável. Mais uma vez, como em todas as grandes ultras que fiz até hoje, e já foram 19 acima dos 100km, sentia-me completamente quebrado. Entrei frustrado no abastecimento da Portela. Não, era mais que frustrado, estava mesmo irritado. Quando em 2021 decidi que não voltava a fazer os 115km era precisamente para evitar chegar àquele ponto, agora ali estava eu. Claro que não era nada de novo, já lá estive dezenas de vezes, mas estava irritado com aquilo. Mesmo asem perceber ainda porquê, estava mesmo enervado!

Entrei no abastecimento e sentei-me outra vez na primeira cadeira que encontrei. Calor, abafado e muita confusão lá dentro. Nem consegui pensar em comer, quanto mais tentar comer. Saí irritado para continuar a descer, 7km separavam-me de Porto da Cruz, local do ultimo abastecimento.

Esta alteração depois da Portela foi introduzida apenas o ano passado. Se a descida para Porto da Cruz me tinha parecido má o ano passado, este ano fiquei mesmo com a certeza. Gostava muito mais do percurso antigo! Apesar de provavelmente ser mais duro, não gosto mesmo daquela alteração. A descida é horrível, quase sempre em escadas muito desconfortáveis, depois numas levadas manhosas onde parece que andamos nos quintais das pessoas e finalmente 2km em alcatrão. Ali, no alcatrão, apanhamos uma pequena subida. Tive que me sentar na berma da estrada! Que frustração...

Entro no abastecimento e... adivinhem. Sim, sentei-me na primeira cadeira à esquerda da porta! Baixei a cabeça entre os joelhos. O corpo todo doía-me, dos dedos dos pés à ponta dos cabelos. Estava super mal disposto, não conseguia pensar sequer em comer. Saí da cadeira e sentei-me no chão encostado à parede, cabeça entre os joelhos. A seguir deitei-me de costas. Que nervos! Só queria desaparecer dali, já chegava! Perguntaram-me 3 vezes se precisava de ajuda. Não, não precisava. Eu sabia bem onde estava. Estava na merda! Como em tantas ocasiões no passado! Mas se dessas vezes mantive a calma e a certeza que ia sair bem do outro lado, desta vez não tinha a mínima vontade de tentar. Algo tinha mudado em mim, simplesmente não queria estar ali e nem sequer a meta servia como luz ao fundo do túnel. Os 15km que faltavam até chegar a Machico soavam-me a uma missão não impossível, porque sabia que de costas ou de barriga conseguia lá chegar, mas algo que não me apetecia mesmo nada, nada, NADA fazer! Puffff. Pronto, chega disto. Levantei-me, não comi, não bebi, não enchi flasks e pus-me a caminho. 

Vereda do Larano. Tirado do site da prova

Antes de entrar no Larano ainda tínhamos uma subida muito chata em escadas, a sair da praia. 400 metros D+ feitos com sacrifício, a sentar-me nos degraus de vez em quando, a ser ultrapassado por muita gente. Depois o Larano. Ainda de dia. Quase sempre a correr, com todas as fibras do meu corpo a pedir para parar e uma nuvem negra por cima da cabeça. Boca do Risco, ultima descida antes de entrar no massacre das Levadas de Machico. Descer já era pra esquecer, as dores eram tantas que mesmo a andar custava. Sentia-me completamente vazio, não conseguia comer nada há muitas horas. Baaaaaah! Levadas. Mais uma vez, a trote. E nem estava a andar mal, mas foi outro sacrifício, principalmente mental! Liguei o frontal a meio das levadas, quando comecei a ver as luzes de Machico, com o piloto automático ligado há muito tempo, lá fui correndo levadas abaixo, até à descida da Santa Casa e finalmente a praia de Machico. Estava feito!

Cortei a meta 14h40 depois de partir. Para mim foi uma boa prestação! Não estava confiante nem bem preparado, estava à espera de fazer pior, mas até correu bem. Cheguei a tempo de estar com os meus amigos, tomar um banho, comer uma pizza enquanto bebia a coca cola mais fresca de Machico e conversar com eles. 

Com os companheiros deste ano. Nunca faltam almeirinenses no MIUT! Este ano nem tenho é uma fotografia da meta.

Parecia tudo perfeito e só mais uma empreitada daquelas, mas sentia-me triste, vazio e irritado. Passei pelas tormentas, é certo, mas a recompensa ao fundo do túnel não chegou como chegava sempre noutras ocasiões. Percebi que subestimei muito a prova dos 85km. É claro que não era só por não ter aqueles primeiros 35km que a coisa se tornava fácil. Não sou nenhum pré-destinado, as coisas comigo saem sempre com sacrifício, mesmo que não cometa nenhum erro, e 85km com quase 5000D+ nunca podem ser feitos de ânimo leve. Mas o que me deixou triste não foi isso. O que me deixou triste e a precisar de arrumar as ideias, daí ter demorado tanto tempo a escrever esta crónica, foi ter percebido que aquela espirito de sacrifício, de sofrimento, aquela luz ao fundo do túnel que me guiou por tantas metas, se apagou. Não foi agora, foi há 2 anos, quando corri a ultima vez os 115km, decidi que não queria passar por isso. Desde então foi a primeira vez que voltei àquele lugar escuro e simplesmente não me apetece repetir. O contraste com os 60km do ano passado ou outras provas que tenho feito até essa distância não podia ser maior, é aí que quero estar. Talvez um dia volte às grandes epopeias, mas agora preciso de uma pausa. Correr, particularmente em montanha, continua a ser das coisas que mais gosto na vida. É nisso que me vou focar. 




domingo, 8 de janeiro de 2023

Vouga Ultra Trail - Um dia de inverno no Vale do Vouga

Depois de na noite anterior ter visto a lua num céu limpo, cheguei a pensar que o IPMA se tinha precipitado ao decretar o alerta laranja, mas as dúvidas dissiparam-se na manhã seguinte. Pela janela da nossa confortável e quentinha casa em Paçô vi as árvores a balançarem violentamente, fustigadas pela chuva e o vento, num daqueles dias de inverno em que tudo parece cinzento. Franzi o nariz e vesti o impermeável por cima da mochila já toda arrumada, na esperança de, a certo ponto na prova, o poder tirar. Pensava eu que o tempo mais severo seria até ao meio dia e que a partir daí melhorava.

Passagem na Ponte do Poço de Santiago, fotografia do grande Samuel Fritz. Aliás, todas as fotos deste post são dele, fica já apresentado!

Na partida a perspectiva nem era má. Sim, estava muito vento, mas a chuva era miudinha. Durante a noite ouvi-a a cair com força, talvez o pior já tivesse passado! Bem, não interessa, às 8:30 deu-se a partida para os 210 participantes na prova aberta do Vouga Ultra Trail, uma hora depois de terem partido cerca de 300 atletas no campeonato nacional de ultra trail, que percorreria exatamente o mesmo percurso. Este é um facto importante na historia das próximas horas, já vão perceber porquê...

Não passou muito tempo de corrida para o Vouga Trail se apresentar. Depois de um primeiro km a subir ainda dentro de Sever, entrámos nos primeiros trilhos. Terra escura, folhas caídas, raízes e muita água. Não era só água da chuva, toda a serra parecia que transbordava água, como se estivesse viva!  O branco da água agitada que corria nos ribeiros contrastava com o verde das árvores e pedras cobertas de musgo e o castanho escuro da terra dos trilhos, coberta de matéria orgânica. De todo o lado brotavam cascatas quase que improvisadas, como se os montes já não soubessem o que fazer a tanta água! Corríamos em trilhos técnicos, num constante sobe e desce, ora dum lado ora do outro de algum ribeiro, muitas vezes dentro deles! Ora, terra macia + água com fartura + 300 pessoas a passar por cima dos trilhos uma hora antes só pode dar um resultado: lama com fartura e trilhos completamente empapados. 


Nada de novo ou extraordinário, todos nós que corremos em trilhos já fizemos uma ou outra prova nestas condições. E durante as primeiras horas nem me pareceu assim tão mau! A progressão era naturalmente mais lenta e custosa, estar constantemente a escorregar implica que estejamos sempre a esforçar-nos para repor o equilíbrio. As descidas eram muito difíceis, não só tinham que ser feitas devagar (pelo menos por mim) como dispendíamos muita energia para as fazer. Muitas delas foram feitas de rabo no chão! Mas os trilhos na primeira metade da prova eram tão bons que todo aquele ambiente acabava por nos absorver.

Passagem pela espetacular Cascata da Cabreia.

A primeira grande subida levou-nos aos 850m, ponto mais alto da prova. O perfil desta prova engana. Saltam à vista duas grandes subidas, uma de cada lado do vale, cada uma a elevar-nos acima dos 800m. O que não se vê logo é o constante parte pernas, com pequenas subidas e descidas, que compõe praticamente todo o percurso. Raramente estamos só a subir ou só a descer durante muito tempo. 

Conseguem ver os dentinhos?

A passagem pela barragem de Ribeiradio marcou sensivelmente o meio do percurso, em todos os sentidos. Os próximos quilómetros seriam agora corridos na margem esquerda do Vouga, subiríamos à serra do Ladário, antes de voltar a cruzar o Rio para a ponta final da prova. E foi mesmo neste virar de margem que tudo mudou.

Era meio dia. A tal hora a partir da qual eu achava que o tempo ia mudar. À minha espera no terceiro abastecimento, Paçô aos 29km, estava a Sara com os miúdos o Pedro e a família, que foram passar o fim de semana conosco. Tinha previsto passar lá ao meio dia, já ia pelo menos com meia hora de atraso. Senti-me mal por os fazer esperar, mas a progressão estava bastante mais lenta do que eu achava que conseguia. 

São estas figurinhas que ando a fazer.

Chovia torrencialmente há pelo menos meia hora quando lá cheguei. Estranhei, era àquela hora que devia começar a abrir. Comi umas bananas no abastecimento, muito pobre, por sinal. Os 300 do campeonato nacional tinham debelado completamente todos os abastecimentos, situação a rever no futuro. Enfim, combinei com a Sara só nos vermos na meta e parti para enfrentar a segunda grande subida do dia. 

Agora sim, subíamos a sério. Uma boa subida. Já a chuva, estranhamente não só não abrandou depois do abastecimento como era agora cada vez mais pesada! À medida que nos aproximávamos dos 800m esta era incessante, o vento cada vez mais forte e mais frio. Não conseguia fechar completamente o impermeável porque tinha as mãos geladas, por isso sentia-me a gelar. Assim que chegamos perto do cume e as árvores desapareceram, foi como se tivéssemos entrado noutro mundo! O vento era monstruoso, a chuva picava como agulhas na cara e na cabeça já sem capuz, sentia-me cada vez mais desconfortável e com dificuldade em produzir calor. Comecei a ficar preocupado! Pensei parar e tirar da mala um buff grosso que levava comigo e umas luvas mais grossas, mas isso implicava tirar o impermeável e passar muito tempo parado, péssima ideia. Decidi forçar o ritmo na descida, para produzir mais calor, mas a lama e água era tanta que dificultava muito a progressão. 

O abastecimento apareceu logo após o cume, em Lameiro Longo. Numa casa muito pequena e abafada. Consegui, aqui sim, comer uma canja quentinha. Pedi a uma pessoa para me ajudar a apertar o impermeável, o que me deu um grande alento, e parti logo de seguida, para não deixar o corpo habituar-se ao calor. Lá em cima vi pelo menos 10 pessoas embrulhadas em mantas térmicas ou a entrar dentro de carros a desistir. Estava realmente perigoso, como há algum tempo não sentia. 

Mais confortável pelo impermeável fechado e com a barriga satisfeita, enfrentei o resto da descida até cruzar novamente o Vouga com outro alento. A chuva, essa, é que não deu tréguas. Desde o meio dia que caía sem parar um segundo e sempre a intensificar, tornando impraticáveis todos os caminhos, desde os trilhos aos estradões, que às vezes pareciam autênticos rios, e às vezes até perigosos, como algumas levadas que percorremos, com pouco mais de 30cm de trilho enlameado, uma levada do lado direito e um precipício do lado esquerdo. Por isso, foi com alguma satisfação que percorri 500 metros da Ecopista do Vouga, um caminho de alcatrão, direitinho e sem lama!

Um bocadinho de alcatrão nunca fez mal a ninguém!

Antes da chegada ao Parque Urbano de Sever do Vouga, onde estava a meta, ainda tivemos que mamar com um estradão a subir com quase 3km. Sempre debaixo de chuva torrencial, sempre com os pés de molho ou dentro de lama até ao tornozelo! Nesta altura já ia bastante saturado daquilo tudo e só queria chegar ao fim, o que não tardaria muito. 


Até os estradões pareciam rios

Tinha previsto chegar à meta a rondar as 7h30. Demorei mais uma hora que isso a completar os 56km com 3100+. Confesso que fiquei um pouco desiludido com a minha prestação, até porque não tive quebras nenhumas ao longo do percurso, simplesmente não estou em forma para mais. No entanto, esta é daquelas provas que deixam um certo orgulho e sensação de vitória por apenas e só ter chegado ao fim. Para terem uma ideia, dos 200 que começaram a prova aberta, apenas 120 chegaram ao fim. E nada melhor para celebrar uma vitória que comer uma vitela n'O Cortiço, em Sever do Vouga, acompanhado por um tinto, com a família e amigos! Bate lá isto, André Rodrigues!