As minhas corridas na estrada

sábado, 2 de maio de 2020

O dia que corri 100km à porta de casa

Ontem corri 100km à porta de casa.

Porquê? Bem, antes de chegarmos aí, vou descrever como foi!

Meti o despertador para as 4 da manhã. Na noite anterior naturalmente custou-me a adormecer, estava agitado e ansioso, como numa prova. Dormi mal e desconfortável mas lá me levantei às 4. Comi 3 torradas, um copo de água, equipei-me, abri a porta de casa e entrei no meu circuito: um loop circular de 500 metros quase certinhos, com 3 ou 4 metros de desnível positivo por cada volta.


A madrugada estava meio abafada e húmida. Pousei uma mesa pequena no passeio com o abastecimento (tailwind, água e umas amêndoas) e às 4:45 da manhã, sem respirar fundo ou pensar muito nisso, liguei o relógio.

O pórtico da meta.
Tinha planeado começar logo a correr entre os 6' e 6'30''/km mas cedo percebi que não era confortável. Sentia-me a travar e o movimento não era muito natural, por isso estabilizei entre os 5'30'' e 5'45''. As voltas foram sendo dadas praticamente sem esforço durante as primeiras duas ou três horas. Ainda deu para apanhar uma grande molha entre as 6 e 6:30 da manhã, mas logo parou e voltou o tempo quente e húmido. Pelos comentários que fui lendo, acho que a parte que faz mais confusão a toda a gente é andar num circuito fechado e curto, mas, sinceramente, não me fez grande confusão! Nunca cheguei a pensar muito nisso, ia correndo e pronto. Era essa a minha missão, palmilhar metros, tudo o resto era acessório. 

Passei à maratona com 3h56, 5'36''/km de média, mesmo muito confortável. Ainda não tinha comido nada, mas estava a ser certinho com o tailwind, já ia no 4º flask, por isso não sentia ainda nenhumas quebras. Passei o equador dos 50km lá para as 4h40, ainda a um ritmo muito constante, até que finalmente, lá para os 60km, a coisa começou a pesar.


Já me sentia preso há algum tempo, tentava de tempo a tempo fazer umas passadas que dobrassem mais os joelhos para contrariar o movimento repetitivo das ultimas 5 horas. É o grande problema de estar tanto tempo a correr sem desnível numa estrada, o movimento é seeeeempre igual, milhares e milhares de vezes. Sentia a lombar a pesar e sem dar por isso corria mais dobrado para a frente, tendência que contrariava assim que me apercebia (isto também acontece muito no trail), os pés a ferver e as articulações dos joelhos e tornozelos cada vez mais perras. 

72, 73, 74km.. O ritmo mantinha-se abaixo de 5'40''/km, mas agora muito mais em esforço. O desconforto era cada vez maior e comecei a fazer as primeiras voltas acima de 6'/km. Foi por esta altura que comecei a combater uma vontade cada vez mais irresistível de caminhar uns metros, coisa que ainda não tinha feito. Continuava exclusivamente alimentado por tailwind o que, parece-me, foi um erro. 

77, 78km. Cada vez mais difícil. Olhava para o relógio de 100 e 100 metros. O conforto tinha desaparecido por completo e agora já era uma luta constante para dar cada passo. Lá para os 78km a Sara ofereceu-me uma canja quentinha, o que recusei. Por incrível que pareça, a chegar aos 80km, já a sofrer muito, continuava com a mentalidade de "não posso parar, quero é despachar isto o mais depressa possível!"

79, 80km.. Corria dobrado com um semblante de agonia. A tentação de caminhar ecoava como uma sirene dos bombeiros na minha cabeça, luzes vermelhas por todo o lado. Até que finalmente...cedi. Pedi à Sara que me voltasse a trazer a canja e, depois de passar os 80km, sentei-me no nosso abastecimento a comer. 

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Apesar de pelo menos há 10km andar a correr ligeiramente acima de 6'/km, o ritmo continuava bastante aceitável, mas ali, sentado, decidi deitar isso borda fora e concentrar-me unicamente em sobreviver ao quinto final daquela insanidade. 

Comi a canja e estive ali 2 ou 3 minutos sentado, a primeira vez que parei de correr em quase 8 horas. Assim que me levantei os musculos e articulações das pernas gritaram de agonia, mas passados 200 ou 300 metros de corrida já estava novamente em piloto automático. Senti-me ligeiramente melhor depois da canja, por isso decidi que, até ao final, se tivesse que parar de novo não iria hesitar. 

Infelizmente, foi sol de pouca dura. Que é como quem diz, o conforto da canja durou 2 ou 3km, depois voltei a entrar no poço. Comecei a caminhar cerca de 100 metros por cada volta, sempre a mesma distancia, a começar e a acabar no mesmo sitio. Era uma espécie de prémio por cada volta dada, só tinha que aguentar os outros 400 metros, depois tinha aquela pequena recompensa. 

Já não sei o que me custava mais, se resistir à tentação de me mandar para o chão assim que começava a caminhar, se voltar a correr depois daqueles 100 metros. Tinha planeado voltar a comer uma canja aos 90km, mas depois de 2 ou 3 voltas que foram uma verdadeira agonia, voltei a sentar-me logo aos 89km. 

Faltavam 11km, mas parecia-me uma eternidade. A partir daí foi um martírio! Demorei 1h20 a fazer estes 11km finais, a andar os tais 100 metros em praticamente todas as voltas e por quatro ou cinco vezes sentei-me mesmo no passeio durante uns segundos.

O ritmo médio tinha obviamente baixado nos ultimos 20km, mas continuava bem real a hipotese de acabar antes das 10 horas e foi mesmo à justinha, com 9h58, que terminei esta loucura de correr 100km à porta da minha casa!

Sentado na meta, já descalço 
Sem pórtico da meta, musica, ou entrevistas do Joca e do Hugo Água, acabei os 100km como quem acaba um treino de 10km. Desliguei o relógio e desfaleci no meio da estrada. Mantive-me sentado no chão uns bons 15 minutos até que me arrastei 20 metros até uma cadeira, onde estive uns 30 minutos.  As dores nas pernas eram agonizantes, não tinha posição. Como acontece sempre depois de uma prova muito dura, estava sem voz, não por rouquidão mas porque não tinha energia para falar. Lá ia balbuciando qualquer coisa entre pensamentos dispersos e sorrisos de satisfação. Estava feito. Agora era arrumar a tralha e voltar para dentro de casa!

Antes de tentar explicar o "porquê", isto se ainda não deu para perceber depois deste texto, tenho que fazer uma referência. Estive sempre na dúvida se devia falar disto ou não, mas foi um factor tão importante que não faria sentido não o mencionar. Tinha planeado fazer isto tudo sozinho, por causa das regras da quarentena. Umas horas antes de começar a empreitada, fiz referência a isso na página de facebook do blog, e logo uns bons amigos de Almeirim se ofereceram para me fazer companhia por algumas voltas. Acabei por correr sozinho apenas nas primeiras 3 horas, a partir daí foram chegando uns, partindo outros, mas corri sempre acompanhado por 2 ou 3 amigos. Passaram por aqui várias pessoas, da espectacular comunidade de corrida de Almeirim. Foi lindo voltar a correr acompanhado, já não o fazia desde o inicio de Março, ainda melhor por alguns dos meus melhores amigos. Não vou fazer aqui referência a nomes porque não sei se ficariam confortáveis com isso, mas agradeço-vos do fundo do coração. Acho mesmo que para o ano podemos pensar em meter um porco no espeto ali no meio, umas colunas a bombar e tornar oficial os "100km da Adema"!!


Agora, a pergunta do milhão de dólares. 

Porquê?

Acho que se leram o texto e, principalmente, se também fazem desporto de endurance perceberam perfeitamente. Nós somos como drogados. Junkies, viciados. Precisamos daquela dose de endorfinas, das pernas rebentadas, da voz rouca no fim de um grande esforço, de acordar doridos... Os problemas do trabalho, a angustia do Covid, todo o stress do mundo real, tudo isso passa para segundo plano quando andamos no fio da navalha, no limite das nossas capacidades. Quando chegamos a esse ponto, a única coisa que importa é conquistar o próximo metro, dar o próximo passo. Principalmente hoje em dia, estamos a viver uma época surreal. O mundo está virado ao contrário. Adormecemos mal, angustiados, a pensar como vai ser a partir de agora. Mais do que  nunca sentia que precisava deste reset, de desligar tudo à minha volta, de fazer alguma coisa extremamente difícil e fazer disso, pelo menos momentaneamente, o meu mundo.