Foi
aqui, no Sicó, que há 6 anos acabei a minha prova de 3 dígitos. Desde então já
passei essa barreira por 18 vezes. Umas melhores, outras piores, em todas
aprendi e evoluí. Adaptei o treino, alimentação, corpo e mente à grande
provação que é estar tantas horas em prova. Agora, dois anos depois da prova
Elite da Freita, era hora de voltar aos 100km!
O problema é que o corpo e
mente que estavam adaptados em 2019 ficaram em 2019, na era pré-COVID. Percebi
isso no fim da Zela, há 3 semanas. Tinha a perfeita noção que não estava com o
treino adequado para os 111km do Sicó. Mesmo assim as saudades de embarcar numa
aventura de 3 dígitos foram maiores que a razão e, na sexta feira às 22:08, lá
parti na oitava vaga de 20 atletas para a 18ª vez acima dos 100. O que eu não
sabia ainda é que ao passar o pórtico tinha entrado numa máquina do tempo que
me levaria de volta a 2015. E que viagem foi...
Não tenho uma única foto da prova e só sairam meia duzia. O desespero por fotos neste post vai ser muito. Tenham paciência. |
25, 30km... Continuamos sem
grandes subidas e com muito estradão. Percurso desinteressante mas com destaque
para a chegada à bonita Penela, onde apanhámos uma primeira subida mais longa.
Lá em cima, no castelo, mais um magnífico abastecimento, como é apanágio do
Sicó. Comi e bebi bem e depressa, para não povoar muito o abastecimento.
Castelo de Penela, tirado do sr. Google. |
40, 45km... O trote já não era de todo tão leve como até aos 30km. Se dantes ainda fazia algumas subidas a correr, agora já nem tentava. Corria no plano e a descer e mesmo aí já com algum esforço. É o problema de me ter desabituado das distâncias grandes. Elas não perdoam e o meu corpo estava a começar a sentir os quilómetros...
52km, base de vida em Santiago
da Guarda. Cheguei lá com 6h19 de prova e, pode-se dizer, foi mesmo a tempo.
Estava mesmo a precisar de me sentar um bocado e assentar ideias.
Entrei, sentei-me, fui buscar o
meu saco e, calmamente mas sem perder tempo, tratei dos afazeres. Troquei de
t-shirt e buff, que estavam transpirados, comi uma canja, bebi o meu compal de
pêra, mensagem para casa e ala que se faz tarde! ...quer dizer, não sem antes
lavar os dentes! Estão a gozar?? Experimentem lavar os dentes numa base de vida
para tirar aquela nhanha dos dentes. Ganham uma vida nova!
Eram 4 e meia da manhã quando
saí do abastecimento, ainda faltava hora e meia para o nascer do sol. Sabia que
a partir dali a prova ia mudar completamente por causa do percurso. O que não
esperava era que eu também me alterasse tão bruscamente. A máquina do tempo
tinha aterrado. Bem vindo a 2015.
Lá para as 5 da manhã comecei a andar dentro de um nevoeiro denso e uma ligeira morraça. Não conseguia ver mais que o circulo branco e brilhante provocado pelo meu frontal refletido no nevoeiro e no tout-venant branco dos estradões infindáveis. Seguia sozinho, acompanhado pela minha respiração e o eventual tilintar de bastões lá ao longe. O branco tornava-se cada vez mais pastoso, a brita dos estradões parecia que ondulava à frente dos meus olhos e provocada ligeiras tonturas. O declive nunca era acentuado, já não sabia se descia ou subia. Só via o branco da luz, misturado com o branco do estradão, e a cabeça a andar à roda e à roda..
Às 6 da manhã, enquanto cumpria
a primeira grande subida num trilho muito bom que nos levaria ao ponto mais
alto da prova (553m), já havia claridade suficiente para desligar o frontal. Lá
em cima, ao pé das famosas letras a dizer "SICÓ", o ar frio
despertou-me um pouco, mas logo a seguir, naquele que para mim é o melhor
trilho da prova e nos levaria, a descer, até ao abastecimento aos 66km, o sono
voltou a atacar.
Foto do Zé do Zé das Fotos. |
No fim do meu primeiro MIUT, em 2015, quando passei pelo mesmo ao nascer do dia, descrevi a sensação como quando estamos a ver televisão à noite no sofá e não conseguimos controlar o sono, mesmo que tentemos. Nunca mais voltei a passar pelo mesmo até esta madrugada. O trilho era bom de correr e as pernas até estavam a responder, mas as tonturas eram cada vez maiores e os olhos insistiam em fechar. Era incontrolável.
Mesmo antes do abastecimento
temos cerca de 1km feito em estrada, aí fechei mesmo os olhos durante alguns
segundos. Cada vez que os abria via tudo a andar à roda! Que desespero.
Cheguei ao abastecimento, olhei
para o relógio, sentei-me à mesa e deitei a cabeça em cima dos braços.
Imediatamente adormeci e apaguei completamente.
Um barulho. Despertei. Olhei
para o relógio, tinham passado 5 ou 6 minutos. Não sabia se seria o suficiente,
mas lembrava-me bem do relato da Courtney Dauwalter que no MOAB 240 (uma prova
de quase 400km que ela venceu) dormia sestas de 2 ou 3 minutos. Bem, tinha que
dar. Levantei-me e fui comer qualquer coisa e beber mais um copázio de
café.
Saí do abastecimento, fiz uns
metros a andar para assentar a comida, experimentei a corrida e....não é que
estava bem melhor?! Não só estava mais desperto como as pernas até ganharam
algum ânimo!
Entre os 66 e os 85km foi mesmo
a minha melhor fase em toda a corrida. Estava com um trote fácil, seguia bem
disposto e ganhei várias posições. O percurso nesta fase era bem mais
interessante, com passagem pelo incrível canhão dos Poios. Havia mais trilhos e
tudo corria melhor. Não voltei a ter sono (até ao fim da prova) e, apesar de
muito cansado, sentia-me razoavelmente bem. A coisa estava bem
encaminhada!
Canhão do Vale de Poios, uma das zonas mais interessantes do percurso. Tirado do Google |
Até que o Marty meteu plutónio no DeLorean, ligou o Flux Capacitor, acelerou a 142km/h e, SNAP, estava de volta a 2015!
Tapeus, 85km. À minha frente
estava a maior subida do percurso, a primeira mêmo a sério, com 400m de
desnível. Normalmente é nestas subidas que eu ando melhor nas provas. À João
Almeida, não vou atrás de ninguém, meto o meu ritmo e lá vou recuperando. A
parte de não ir atrás de ninguém estava a resultar. Fui passado por uma dúzia
de pessoas. Já a parte de ir recuperando.... bem, isso já não foi conforme o
plano.
Foi com muito esforço que
cheguei lá a cima e com ainda mais esforço que tentei trotar no estradão a
descer. Não estava a dar. Doíam-me as pernas, as costas, os braços...tudo! Cada
passo era um sofrimento. Desci para o trilho das Buracas de Casmilo, um dos
mais técnicos do percurso, com muita dificuldade. Arrastei-me por ali a cima e
caminhei o km de estrada até ao abastecimento de Casmilo, aos 95km. Foi aqui
que deitei a toalha ao chão e acionei o malfadado modo Walking Dead. Já não era
um homem que estava em prova. Era um autêntico zombie.
Buracas de Casmilo, tirado do Facebook da prova |
No abastecimento dei uma mordidela numa bifana e estive ali com aquilo enrolado na boca uns 5 minutos. Forcei para engolir, comi um bocado de banana e saí. Para ajudar, as nuvens começaram a limpar e o céu ficou limpo. A temperatura que até ali estava fresquinha aumentou brutalmente e agora suava em bica.
Claro que já não ia desistir
ali, afinal cansados estamos todos, mas detesto entrar neste modo em prova. Foi
um autentico arrastar de cadáver. Fui metendo o trote sempre que dava, mas
parecia um enfezado a correr e já olhava para o relógio de 5 em 5 segundos.
Até ao final ainda haviam dois
obstáculos chatos para transpor. O horroroso estradão a subir, antes do
abastecimento do Poço, e o dificílimo trilho da Cascata do Rio de Mouros.
Cascata do Rio de Mouros, que ontem estava sequinha sequinha. Tirado do Google. |
Mesmo na base do estradão, uma rampa super inclinada com sol de chapa e 150+, ainda passei por um oásis. O Fantástico João estava com a sua Liliane a dar água fresquinha e dois dedos de conversa a toda a gente que ali passava! Foi o suficiente para transpor o estradão e nem dar por ele. Obrigado, amigo!
Ultimo abastecimento. O meu
relógio diz que faltam 6km, mas foi a medo que perguntei a quem lá estava
quanto faltava. "6km!", responderam-me eles simpaticamente! Ufa! Mas
eu sabia que não eram 6 simples quilómetros. Pelo menos 2 deles eram passados
no super técnico trilho da cascata. Um infindável sobe e desce de pedregulhos,
cordas e degraus, ao lado de um leito de rio agora completamente seco, a fazer
lembrar alguns trilhos da Lousã nos Abutres. O suficiente para destruir o pouco
que ainda tinha!
Saí das entranhas da cascata e
faltavam 2km fáceis, mas já nem nas descidas corria! Guardei o último miligrama
de energia para correr na reta da meta e cruzei-a com 16h48, uma hora a mais do
que tinha idealizado.
Está feita a 18ª. Voltei a ter
sensações que já não tinha há muito. Voltei a ligar o modo walking dead, a ter
sono durante a prova, a desesperar com o percurso, a ter dores no corpo todo, a
sofrer muitíssimo, a ter dores de barriga, a ter assaduras em todo o lado, a
ter calor, a ter frio...a viver!
Caraças..que saudades disto!
Chora, chora, chora... E no fim, uma hora a mais do que tinha idealizado! Ai o meu caralho, estas máquinas partem-me todo! Grande prova de o resto é conversa! Já agora e para não ter de ir seis anos atrás, porque não tenho plutónio, quanto tempo demoraste em 2015?... Pois 😜
ResponderEliminarMais uma epopeia 👏👏👏 Filipe, tens é de entrar em "mais" aventuras para ir tendo leitura integrante ou fazer "rewind" de aventuras passadas face à experiência actual... Escrita maravilhosa 👏👏👏 Parabéns. Mais uma no currículo 💪💪💪
ResponderEliminarSó vim escrever que só o facto de ter ido ao Senor Google ver o significado de "tout-venant" e as alusões ao ciclismo já valeu a pena :)
ResponderEliminarAfinal mesmo com afinco não deixamos de ser humanos e a Natureza sempre pronta a relembrar quem manda😊 bela prova e melhor recuperação
ResponderEliminarParabéns pela superação, Filipe💪
ResponderEliminarTambém já tenho saudades dos 3 dígitos, mas optei pelos 57k, e levei com a marreta no trilho antes do Casmilo😝🔨 Bons treinos de recuperação
Parabéns Filipe!!!! Mesmo assim, fico com inveja, isto para estes lados ainda está longe dessas aventuras ;)
ResponderEliminarMuitos parabéns, épico Filipe :)
ResponderEliminarGrande abraço
Boa recuperação Filipe. É sempre um gosto ler estes teus relatos do walking-dead 😂✌️
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