As minhas corridas na estrada

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Arada Night Race - o Martelo

Estava a ser o melhor ano desde que corro. Sem lesões, a treinar com um volume que nunca tinha atingido, a sentir-me sempre com força e vontade de carregar mais. As provas, naturalmente, também estavam a ser boas! Duas provas de 3 dígitos sólidas (Montemuro e o muito desejado sub 24 no MIUT), muito boas sensações e resultados em provas a rondar os 50km (a Serra Amarela terá sido a melhor que já fiz) e até nem faltou um record pessoal aos 10km (37 alto)! Depois veio o UTSF e...tudo mudou. Eu sei, também faz parte. Também sei que acabei por fechar a prova e que isso, só por si, já não é mau. Também podia estar aqui a enumerar uma lista enorme de razões para a coisa ter corrido mal e começar uma sessão de auto pancadinhas nas costas para acabar com o choro. Mas a verdade é só uma: por mais voltas que dê, sinto que a Freita foi uma derrota imensa. Voltei a entrar no modo walking dead, arrastei-me durante quilómetros, senti-me sem força, sem pernas e sem cabeça para o UTSF. Passei três semanas a duvidar de mim e das minhas capacidades, pus em causa o que ficou para trás e, sinceramente, estava sem a alegria e a motivação que tenho sempre para treinar.

Fotografia brutal do Paulo Nunes
Decidi ir à Arada Night Race uma semana antes da prova. Uma decisão impulsiva, depois de perceber que os planos em família que tínhamos para o fim de semana tinham saído furados. Assim que mentalmente entrei na prova, uma luz acendeu-se. Comecei a estudar o percurso e a falar com o Sérgio e o Bruno, da organização, que me falavam do que ia encontrar. O entusiasmo começou a voltar aos poucos durante a semana e, quando chegou a sexta feira, o pensamento já era só um: vou à Arada e vou à Arada para dar tudo.

A Arada Night Race é organizada pela mesma equipa da Zela e Pisão, duas provas que gosto muito. O palco é a incrível serra da Arada. Para quem não sabe, a Arada é a gémea siamesa da Freita, são duas serras pegadas. Aliás, grande parte do UTSF é corrido na Arada! O início, programado para as 18:30, permitiria correr 2h30 de dia, apanhar o por do sol e terminar de noite, o que me pareceu uma excelente proposta. A partida e base da prova foi o idílico Bioparque de Carvalhais, de onde parte também o Pisão. La cheguei, com o João Miguel, Mota e Alex, uma hora antes. Levantámos os dorsais (eu tinha o dorsal numero 1! Que desperdício...), equipámo-nos tranquilamente e 20 minutos antes da hora marcada estávamos prontos a partir. Temperatura amena, muito bom ambiente e 60 pessoas à partida. Sentia-me bem e super motivado, meti-me logo na segunda fila na partida e às 18:30 lá saí para, o que esperava serem, 40km de faca nos dentes (desculpem o cliché)!


Representação da Associação 20kms de Almeirim na ANR. Foi dia de estrear a camisola!
A Arada Night Race (ANR) teve 38km com 2400+. Bastante desnível mas nada de muito exagerado, para uma serra como esta. Dizia-me o Bruno Figueiredo, traçador do percurso, que seria menos sky e mais corrível que o Pisão.



Imediatamente após a partida começámos a somar o tal desnível positivo. Primeiro num estradão, curto, até que entrámos em trilhos de granito, muito inclinados, a exigirem quase escalada. Como o ritmo não estava muito alto colei-me logo aos 5 ou 6 primeiros, mas claro que para aguentar o ritmo dos primeiros, o "não muito alto", para mim, significa ir no limite. Subia ofegante e a escorrer água ainda nem tinham passado 2km. Os trilhos técnicos eram intercalados com partes menos inclinadas que permitiam subir a trote e de repente já estávamos com 6km e acima dos 1000m.

A trote. Foto Paulo Nunes
Seguiram-se 3 ou 4km num planalto. Trilhos muito traiçoeiros, com tufos de erva seca que escondiam pedras e buracos. Isto quando corríamos em trilho, muitas vezes estes não existiam, eram as fitas espalhadas que nos orientavam no meio do granito. Sobe e desce num ritmo muito nervoso, por paisagens incríveis. Passagem numa levada e em bosques cuja sombra parecia um oásis. Sempre que conseguia aumentava o ritmo e as pernas respondiam, sentia-me a voar por cima dos trilhos técnicos, sem sequer pensar num possível estouro! A adrenalina atingiu doses muito elevadas na primeira grande descida, por volta dos 10km. Um daqueles trilhos típicos desta serra, numa calçada de granito antiga que exigia saltitar de pedra em pedra e a concentração constante para conseguir andar depressa!

Espantado. Fotografia do Paulo Nunes
Depois do primeiro abastecimento, na aldeia do Candal, tínhamos uma pequena picada de cerca de 150+ e iniciamos a grande descida que nos levaria até Côvelo de Paivó. Aqui saímos do granito para o xisto característico desta zona. Faço esta distinção porque é completamente diferente correr em terrenos xistosos. Pedra solta e afiada, mais pequena, enganadora. O trilho parecia fácil mas uma desconcentração podia ser fatal, isto porque facilmente atingimos velocidades altas (fiz os 3km da descida abaixo de 5'/km).

Não chegámos a entrar em Covêlo, entrámos logo no PR13 que, num trilho assombroso esculpido na encosta de um vale apertado, nos elevou lentamente até ao segundo abastecimento, em Regoufe. O sol estava a esconder-se, fiz este vale já no lusco-fusco, uma cor perfeita para aquela paisagem tão agreste. Aquela sensação de conseguir abrir a passada cada vez que o terreno deixava continuava presente e era impagável!

No abastecimento de Candal. Foto Paulo Nunes (Dorsal nº1, não estava a mentir!)
No abastecimento apercebi-me que estava a sofrer da segunda lesão mais parva da historia da humanidade. A primeira foi a conjuntivite que tive no meu primeiro MIUT que me deixou quase às cegas, mas aqui não foi menos parvo. Logo no inicio da prova devo ter dado um jeito qualquer ao maxilar que o fez deslocar e agora simplesmente não conseguia fechar a mandíbula! Juro! Não conseguia juntar os molares sem ter dores e isto estalar tudo! Resultado: alimentação à base de geis a bananas meio trincadas, não conseguia comer mais nada. 

Saí do abastecimento com o frontal na cabeça e já com muito pouca luz natural. Mais de metade da prova estava virada, agora uma pequena picada e depois descida a Drave por um caminho que conhecia do UTSF. Virei para a descida ainda com um fiozinho de luz, que me permitiu ver mais uma vez a espectacular Garra e acelerei a fundo na descida! Depois de no inicio ter andado pela 4ª posição passaram 4 ou 5 pessoas por mim, o pior que andei penso que foi em 9º, mas a partir desta descida voltei a apanhar alguns. Era sempre uma adrenalina ver uma luzinha lá à frente e controlar a de trás pelo canto do olho.

Outra do Paulo Nunes, à saída do abastecimento de Regoufe
De Drave, onde já cheguei de noite, só me lembro do fogo comunitário, das canções dos escuteiros e da escuridão total, apenas interrompida pelo foco do meu frontal. Deixei a aldeia encantada pela subida mais dificil de toda a prova, num trilho a zigue-zaguear, muito trabalhoso, que nos fez subir 300m num quilómetro. Mais uma vez subia a dar tudo, sem deixar 1mm de descanso. Assim que viramos ligo o trote e acelero por um estradão aos ésses até ao terceiro abastecimento, em Gourim. Foi o km mais rápido de toda a prova e soube muito bem aquela pequena folga no piso logo a seguir a uma subida tão dificil.

No abastecimento, onde só comi 2 pedaços de banana meio esmagada, informam-me que o troço seguinte, no Rio Paivô, era muito perigoso, para ter cuidado. Mais uns metros de descida num trilho muito técnico e chego à margem do Rio, para o que pensava ser um atravessamento, mas não. Completamente enganado. Andámos cerca de 300m no leito do rio, a fazer lembrar muito o troço do Rio do UTSF. Pedra ultra escorregadia, água pela cintura, progressão lentíssima. A vegetação cobria-nos e deixava o ar abafado, a água fria era uma delicia. A luz do frontal reflectida na água transparente dava uma luminosidade incrível àquele túnel que atravessávamos. Uma maravilha! 

Saímos do rio a pique, para a ultima grande subida da prova. Menos inclinada que a de Drave, com o inconveniente de ter vários troços quase a direito que exigiam um trote. Eu até faria a andar, mas pelo canto do olho via uma luz a uns 200 ou 300m! 

Ultima grande subida virada e era hora de disparar em direcção ao ultimo abastecimento, na aldeia de Arada. As pernas ainda estavam soltinhas, não só me sentia bem a correr como ainda me permitia carregar no acelerador nas descidas. Primeiro num estradão, para descansar da subida, e os 2km finais num trilho super técnico onde arrisquei como há muito não arriscava!

Já conhecia esta parte final porque era coincidente com os primeiros quilómetros do Pisão, apesar de em sentido contrário, por isso sabia que me esperava uma picada super agressiva na terra, no meio das árvores. Respirei fundo  ataquei a ultima grande dificuldade. Como me lembrava, devia ter uns 40% de inclinação, com piso muito difícil em terra, que escorregava. No entanto era curto, num instante estávamos de volta ao estradão muito inclinado que nos elevaria nos metros finais da ultima descida.

Faltavam agora apenas 3km a descer para a meta, por isso decidi que esta descida ia dar o gás todo que tinha. Larguei o martelo (gosto muito da expressão inglesa drop the hammer mas ainda não encontrei uma equivalência boa em português) e, com os bastões já desarmados o que me permitia movimentar melhor os braços, voei pelos trilhos até ao final! Que loucura! Acho que nunca tinha descido assim, normalmente sou super económico nas descidas, mas ali foi mesmo a fundo.

Chegada à meta, pelo Paulo Nunes
Cruzei a meta em 5h29, literalmente a sprintar pela pequena rampa final. Que adrenalina brutal! Adorei cada metro da prova, subidas difíceis e descidas um misto de técnicas com segmentos muito bons para correr e abrir a passada. Correr ao fim do dia foi espetacular e a temperatura ajudou muito, depois à noite torna-se menos interessante a nível de paisagem, claro. De resto, como é apanágio nesta organização, tudo correu na perfeição. Desde os abastecimentos (apesar do meu problema maxilar fui vendo que não faltava nada), passando pelas marcações, ambiente na partida e chegada, porco no espeto no fim... Outra coisa que gosto neles é a importância que dão à imagem. Além de terem uma comunicação muito atractiva, vê-se o cuidado com as fotografias da prova. O Fritz e o Paulo Nunes são muito provavelmente os dois fotógrafos em melhor forma no trail nacional! 

Quanto à minha prestação, o meu objectivo de vingar a prestação do UTSF foi plenamente cumprido, senti-me muito forte e solto. Terá sido das minhas provas mais sólidas de sempre!

A descansar depois de cruzar a meta. Foto Paulo Nunes
Só mais uma coisa que não quero deixar passar. Quando passei a meta informaram-me que tinha sido o 5º! Ia jurar que estava em 6º e não passei por ninguém, mas ao consultar a classificação reparei que o 6º chegou a 9 segundos de mim. Não sei o que se passou, mas provavelmente ter-se-á enganado na parte final e antes de voltar ao trilho eu entrei à frente dele sem reparar. Se tivesse visto tinha-o deixado passar, afinal de contas fez uma prova melhor que a minha. Peço desculpa por isso, companheiro (se estiveres a ler). 

Com isto, acabei por ir ao pódio do escalão sénior! Mas isso da classificação pouco ou nada interessa, o que me deixa com um sorriso na cara apesar das dores musculares que tenho hoje e não tinha há muito (o tal martelo na descida dá nisto) é que, depois da derrota do UTSF, sinto que estou de volta!

O pódio sénior. Foto do Paulo Nunes

PS - O maxilar parece que foi ao sitio depois da prova. Nem dei por isso. Talvez por já não estar tenso. Só sei que as duas bifanas de porco no espeto foram bem mastigadas!

quarta-feira, 3 de julho de 2019

UTSF - A minha opinião da prova

Se leram a crónica que fiz sobre a minha participação no Ultra Trail Serra da Freita perceberam que em quase nenhum lado teci comentários sobre a minha opinião da prova em si. A ideia era separar a experiência fantástica que tive, as dificuldades, a história e recordações que ficam do que achei do percurso e da prova no geral. Pois bem, neste texto vou comentar o que achei da Freita.

Começo com um cliché: a Freita é a Freita, que é como quem diz, a Freita é uma prova única. Uns dias antes de partida ouvi o Moutinho no X-Trail Forum e fiquei encantado pela maneira como ele descreveu o processo de criação do percurso. O Traçador, como ele se intitulou, explicava que na prova haviam sítios obrigatórios para passar, o grande trabalho seria a maneira de os interligar de forma a melhorar a experiência. Chegou a falar em números. Por exemplo: depois de passar por uma subida que exigisse 80% de esforço, seguia-se uma secção para compensar, com 40 ou 50% de esforço. Adorei a justificação para a nomeação de certos trilhos, acho isso uma excelente ideia. A Besta, as Almas Penadas, as Escadas do Martírio, a Escarpa, Bradar aos Céus, o Rio, etc.... Quem, no mundo do trail, não conhece estes nomes? É impossível para quem lá passa não identificar imediatamente os locais e, principalmente, as sensações em cada um dos segmentos. Isso não aconteceria se disséssemos "aquela subida ao km 64", ou "aquela descida que vai dar à Pena".

Mas a coisa mais importante que ficou daquela "entrevista", e que é a principal característica da prova, foi quando ele explicou que quem participa na distância Elite tem que perceber que vai passar por uma experiência única. Vai, literalmente, ter que sofrer para cumprir o percurso e é tão meritório aquele que o faz em 14 como em 28 horas, porque o traçado é pensado com um único objectivo: lentamente devorar-nos até que não reste nada.

Nesse aspecto o UTSF - Elite é perfeito. É, de facto, um percurso que passa em sítios fantásticos, incrivelmente exigente e imagino que perfeitamente à imagem do que o seu Traçador pensou. A isso alia muito boas marcações, excelentes e bem distribuídos abastecimentos, cortes apertados (como acho que devem ser) e um ambiente único.

Quem conhece o meu percurso sabe que eu não fujo da dificuldade. Se fosse esse o caso não faria provas como a Mitic, o X-Alpine ou 5 vezes o MIUT (ainda há uns dias li alguém a dizer que o MIUT é para meninos...não brinquem com coisas sérias). Não, não tenho medo da dificuldade. Mas não escolho provas de ultra endurance, as de três dígitos, cuja principal característica é serem difíceis. Não fico entusiasmado quando alguém me diz que uma prova tem 60% de desistências. Encolho os ombros quando dizem que aquela é A mais dura. Não quero, de maneira nenhuma, entrar numa prova com o único objectivo de sobreviver e percorrer 100km desconfortáveis e a gerir dores.

Eu adoro a Serra da Freita e a Serra da Arada, onde passa o percurso da UTSF. Adorei alguns dos segmentos, são até dos melhores que já fiz, como o Rio ou a Besta. Acredito piamente que teria gostado muito da versão antiga, dos 70km. Mas, com alguma desilusão minha, enquanto a versão Elite tiver 100 ou mais km esta foi a primeira e única vez que fiz o Ultra Trail Serra da Freita.

Boa sorte a todos os que lá forem, têm o meu respeito!



segunda-feira, 1 de julho de 2019

Ultra Trail Serra da Freita (100km) - Sangue, Suor e Lágrimas.

Não sei quem nomeou aquela subida a seguir à aldeia de Covas do Monte, no quilómetro 50, mas não podia ser mais apropriado para o que se passou no sábado. A Freita já se tinha apresentado, mas até ali vinha forte física e psicologicamente. Estava a ser tudo o que diziam e mais alguma coisa, uma loucura que não dava 1 metro de descanso, mas a minha prova estava a correr bem! Até que, no fundo do vale antes da subida, pico do calor, uns minutos depois de ter tomado banho numa bica, limpei a cara com o braço. Quando olhei para o braço estava vermelho. Vermelho sangue. Começou no Portal do Inferno a minha viagem às profundezas da Freita.

Atingi um novo baixo neste post. Fui roubar fotografias ao Miguel Cadalso da prova do ano passado. É verdade, não tirei uma única. Pior. Blogger. Do Mundo. Querem saber o que é esta foto? Têm que continuar a ler)
Nove horas antes, às 6 da manhã, o tempo ainda estava fresco. Éramos cerca de 150 prestes a enfrentar os 100km da mítica UTSF. A Freita era uma pedra no sapato para mim, andava há anos para a fazer, mas por estar nalguma prova no estrangeiro ou coincidir com outras que também queria ir, a minha estreia acabou por acontecer apenas na 14ª edição. Hoje, depois de tudo o que se passou nas quase 24 horas que lá andei, acho que foi na altura certa. Apesar de tudo o que ouvi sobre a prova, e foi muito, nada me podia preparar para aquilo. A Freita é tudo o que diziam e muito mais!

Sim, voltaram as imagens do perfil com os risquinhos vermelhos. Desculpem mas é uma maneira de eu não me perder no percurso.
Começámos de mansinho, na subida mais longa e mais fácil de toda a prova. Um tricotado de trilhos de terra escura, com pouca pedra, no meio das árvores, levou-nos até ao miradouro da Freita, no Detrelo da Malhada. A meio dos 800 e poucos metros de subida ainda passámos pelo Moutinho, ele próprio tão mítico como a prova, cujos gritos se ouviam a centenas de metros. Havia de me cruzar com ele várias vezes durante o percurso.

Enquanto me cruzada com o Moutinho. Foto do Paulo Nunes.

Detrelo da Malhada. Foto do Paulo Nunes.
A Freita começou a mostrar-se no planalto seguinte, que percorremos antes de descer ao segundo abastecimento. Gostei muito desta parte, trilhos difíceis mas bons de correr, com pouco desnível e muita pedra. O esforço para fugir dos estradões era óbvio, à medida que nos embrenhávamos em paisagens mais graníticas, com passagem entre gargantas de pedra cinzenta. As facilidades continuaram na descida ao Tebilhão, segundo abastecimento, aos 21km. Vejam bem que a certa altura fizemos um estradão que devia ter perto de 1km, sempre debaixo de sombra, fresquinhos!



Da Malhada até ao Tebilhão
Apesar do percurso até aqui ser, digamos, amigável, nesta fase da prova não me estava a sentir muito bem. Tinha acordado com dores no peito e tosse e estava a custar-me entrar na prova. Nada de novo, já passei por isso. No Tebilhão comi uns quadrados de pizza e enchi os flasks pela segunda vez, nunca levei tão a sério os cuidados com a hidratação, estava a beber água mesmo sem sede desde o início.

Se bem se lembram da descrição da Alice, a Freita ia começar aqui, depois do Tebilhão, na separação das provas. O que se seguiu até à Base de Vida foram os 35km mais inacreditáveis da minha vida. Sem comparação com o que quer que seja que já tenha feito. Só para perceberem, demorei 10 horas a percorrê-los! A Alice dizia, e bem, que estes 35km são A prova. Não podia concordar mais com ela! Vamos então começar.

Tebilhão até Covêlo do Paivô.
A primeira etapa seria a do Rio Paivô. A seguir ao abastecimento descemos primeiro por umas aldeias e logo nos embrenhámos num PR chamado Caminho do Carteiro. Um trilho não muito difícil, com toros de madeira enterrados no chão a fazer de degraus, que nos embalou para caminhos esculpidos na encosta cada vez mais inclinados. Fizemos uma primeira abordagem ao fundo do vale junto ao Rio de Frades, nesta garganta passámos por instalações mineiras abandonadas muito interessantes, tivemos que atravessar uma mina abandona onde só se via com um frontal, e voltámos a sair do vale. A próxima pequena descida levou-nos finalmente ao mítico Rio Paivô.

Trilhos esculpidos na encosta. Foto do Miguel Cadalso.

A mina abandonada, pelo Miguel Cadalso.
Os 3km ao longo do Rio Paivô são dos segmentos mais conhecidos do UTSF. Por esta altura já toda a gente terá visto as imagens de pessoas a atravessarem o rio agarrados a uma corda com água pelo meio do peito, mas o que não viram foram as centenas e centenas de metros que se fazem antes de chegar a esse ponto. Foram dezenas de travessias do rio, milhares de saltos de rocha em rocha, correntes e vias ferratas, cada passo medido milimetricamente para não escorregar. Foi o trilho plano de mais difícil progressão por onde passei e adorei cada metro. Curiosamente foi este o trilho que me acordou para a prova! As dezenas de banhos (e atenção, quando digo banho é mesmo da cabeça aos pés) revigoraram-me, bebi água do rio cada vez que o atravessava e sabia tão bem, fui ficando cada vez mais motivado e bem disposto, vinha só a pensar que a próxima vez que visse o Moutinho lhe ia dar os parabéns e agradecer por ter metido aquilo na prova!

Um exemplo do tipo de caminho onde andámos junto ao rio

A tal travessia da cordas. Nesta fotografia está o meu amigo Rui Nascimento, na prova do ano passado, claro. 
Encontrei-o logo a seguir ao trilho, no terceiro abastecimento, em Covêlo de Paivô. Claro que fiquei com vergonha e não lhe disse nada, mas pode ser que ele leia isto.

Eu, a chegar ao abastecimento do Covêlo. Foto do Paulo Nunes.
Com 32km estava finalmente dentro da prova. No abastecimento comi uma pratada de esparguete com atum que me soube espetacularmente bem. Bom sinal, estava a comer e beber bem desde o início e sem sinal da coisa fechar. Com cabecinha e a coisa vai lá, pensava eu.

Covêlo do Paivô até à Pena
Saí do abastecimento e ataquei a etapa seguinte com a confiança no máximo. Estava a subir bem, num trilho daqueles que gosto, em caminhos de pedra de granito arrumada. Subia a bom ritmo e metia trote quando o terreno deixava. A parte final, antes de virar para a descida, foi feita no leito de um rio quase seco, onde corria pouca água, já perto do planalto. Muito bonito, parecia um oasis no meio da paisagem agreste da serra.

Nesta altura tudo me maravilhava na prova. Até a descida seguinte, que nos levou até Regoufe me encantou, com as suas pedras soltas, o xisto a ferver e inclinação brutais. Um bocado mais difícil que as outras, pensava eu, mas não há-de ser nada. A Freita é linda e eu quero é chegar à Escarpa para ver se é assim tão difícil!

Miguel Cadalso

Miguel Cadalso
A escarpa é aquele primeiro montículo no perfil ali em cima. Gostava de vos dar os dados da subida, mas é tão inclinada que quando mexo o cursor no Strava ele passa logo para a descida! Uma alarvidade de subida, curta e grossa, onde íamos a ver a sola dos sapatos do colega da frente. Não devia ter mais que 200+, mas a inclinação era certamente sempre a rondar os 40%. Nesta subida baixei um bocado a crista, a prova começava a cobrar o seu preço.

A parte final da escarpa pelo...sim, Miguel Cadalso!
O calor apertava e o meu litro de água, que durava desde o ultimo abastecimento, estava perigosamente perto do fim. Antes da Pena ainda faltava a famosa subida das Almas Penadas, tinham-me dito que havia uma bica de água na base desta. Estava a contar com isso quando sorvi o ultimo gole do flask ainda na descida da Escarpa. Ainda passaram uns 15 minutos até a encontrar, o suficiente para perceber que ficar sem água nesta prova seria o fim. Foi um alívio quando vi a torneira. Molhei a cabeça e o corpo, bebi meio litro de rajada e voltei a encher os dois flasks para a subida. Faltavam 3km para o próximo abastecimento, mas haveria de lá chegar novamente seco. Sim, o dia estava assim tão seco e quente!

As Almas Penadas foi tudo o que me tinham dito e muito mais. A subida típica da Freita: curta (a rondar os 400+) e grossa (esta tem segmento do Strava, por isso consigo ver os dados: 400+ em 1.5km!). Esta tem a particularidade retorcida de por 3 vezes parecer que já se vê o pico e depois quando lá chegamos temos mais um bocado pela frente. Dizem que o homem da marreta estava por lá, mas o que eu senti foi o calor a apertar, e muito, naquela encosta completamente exposta. No entanto virei-a calmamente e fiz-me à descida, mais uma vez ultra técnica, que é como quem diz, cheia de pedra de todos os tamanhos, muitas vezes sem trilhos, com inclinações brutais.

Almas Penadas vistas de cima. Sim, já conhecem esta foto do post da Alice

Por esta altura havia uma característica da Freita começava a ser evidente, eram raríssimos os trilhos confortáveis, o caminho era sempre super agreste e de difícil progressão. O pé nunca assentava por completo, estávamos sempre em desequilibro! A consequência mais imediata deste facto era a destruição total dos pés. É inevitável, não acredito que haja uma única pessoa que faça esta prova, ainda para mais num dia de calor, que acabe bem dos pés. Entramos e saímos da água centenas de vezes, os pés aquecem brutalmente por causa da temperatura ambiente mas principalmente pelo xisto que emana quase tanto calor como o sol, os pés literalmente cozem dentro das sapatilhas, as solicitações são de todo o tipo.. É uma combinação letal. Ainda assim, mesmo a chegar à Pena passamos por um ribeiro e o que é que eu faço? Pois claro, entro lá pra dentro e molho-me todo :)

Exemplo de uma descida tipica da prova. Também da Alice.
O abastecimento da Pena estava instalado na esplanada de um restaurante muito giro. Uma rapariga serviu-me uma sopa de legumes com massa e perguntou-me se queria cerveja ou água. Sentei-me à sombra e comi dois pratos da deliciosa sopa. O estômago continuava a 100%. Excelente. Aqui já vi algumas desistências e muitas pessoas em mau estado, felizmente não era o meu caso. As 8 horas de prova estavam a ter os seus efeitos, principalmente nos pés, mas continuava a comer e beber bem e sentia-me com força. Siga lá então.

Pena - Portal do Inferno
Estava prestes a fazer uma das únicas partes que já conhecia do percurso, a subida do Portal do Inferno, que percorri no Pisão o ano passado. Na altura adorei a subida, por isso parti motivado. Depois de superada uma pequena subida iniciei a descida que me levou até Covas do Monte. Foi aqui a primeira estocada. Talvez a mais difícil de todas, ou pelo menos uma das que me afectou mais. Quase a direito, cheia de pedra de todos os tamanho, sem a mínima hipótese de descer confortavelmente. Desci de maneira atabalhoada por entre o xisto pontiagudo, espetado na terra. Quando comecei a ver Covas do Monte estava abananado, não só pela violência da descida como pelo calor intenso das 3 da tarde. Parei numa bica na aldeia, mesmo na base da subida. Molhei-me todo, enfiei o chapéu com água na cabeça, voltei a encher os flasks e tomei um gel. Estava sôfrego, desconfortável... Era hora de subir ao Inferno.

Uma foto minha a subir o Portal do Inferno, pelo Friz Fritz. No Pisão. Sim, é o desespero por fotos. 
Meti o passo igual ao de todas as subidas: curto e seguro. O trilho desenhava-se numa incrível garganta, esculpida por entre duas encostas muito íngremes. Um trilho abismal, talvez o meu sitio preferido de toda a prova. Estava com aquele sabor esquisito na boca por causa do gel, cuspi. Algo se passava, o cuspe estava vermelho escuro, o gel era branco, não tinha comido nada.... Voltei a cuspir. Vermelho, outra vez. Limpei a boca com o braço, quando olhei para a mão estava toda vermelha. Sangue.

Assustei-me e parei. Assoei-me para o chão, voltou a sair sangue. Limpei a cara e voltei a ficar com o braço todo vermelho. Fiquei um bocado em pânico, mas tenho que confessar que o primeiro pensamento foi limpar antes que alguém visse e me obrigasse a parar! Assim foi, fui para um ribeiro (há sempre algum à mão na Freita), bochechei, lavei a cara e as mãos e a coisa parecia ter ficado controlada. Fiz um check up mental, não me sentia tonto nem em fraqueza, atribuí aquilo ao facto de estar cheio de dores de peito e a tossir, mas ainda não consegui perceber o que se passou. Terá sido do calor? Se alguém tiver uma teoria, que me diga.

Voltei a subir, mas algo tinha mudado. Não sei se fisicamente, mas algo estava diferente. Sentia-me pouco confiante. O vermelho não me saía da cabeça, pensamentos negativos começaram a minar-me. Será que é prudente continuar? Será que isto é alguma coisa séria? Estarei desidratado? Será que não é melhor.....desistir?!?

E pronto, a semente estava plantada. Desde o instante em que pensei que talvez fosse melhor desistir a minha prova virou. Nunca mais me consegui livrar disso. Continuei a subida imerso em pensamentos negativos, cabisbaixo, nem olhei para a paisagem. Mesmo antes de chegar ao topo, novo revés. Decido ir fazer xixi e reparo que este está castanho escuro. Novamente ligeiramente em pânico, nunca me tinha acontecido tal coisa! Estava a beber água abundantemente, mas seria desidratação? Não sei, mas era mais um sinal, mais uma facada na confiança. Comecei a projectar na minha cabeça os cenários para a desistência vezes e vezes sem conta.

Alguém a sair do Inferno, numa foto que a Alice mandou, provavelmente da prova do ano passado...
Cheguei atónito ao abastecimento e sentei-me logo. Tinha que conseguir comer, felizmente esse aspecto ainda estava a 100%. Comi bem e rematei com uns bons bocados de melancia. A semente da desistência estava plantada, não havia volta a dar, mas decidi continuar pelo menos até à Base de Vida e depois decidir. Afinal de contas, a parte da comida e bebida estava a correr bem, podia ser que a coisa virasse.

Portal do Inferno - Póvoa das Leiras

A Alice avisou-me que a descida para Drave era abismal e não desiludiu. Já conhecia esta zona de quando fiz o Pisão, as encostas aqui são inacreditáveis. Ao longe dava para ver a Garra, que haveríamos de subir ainda nesta etapa, mas até lá chegar tínhamos que descer abruptamente uma encosta, sem trilho, percorrer um vale até Drave e finalmente subir pelo trilho dos Três Pinheiros. 

Embalado pelo descanso e comida do abastecimento, consegui descer bem até Drave, mas as pequenas subidas até chegarmos à base dos três pinheiros já eram todas feitas de maneira muito sofrida. Esta parte da prova até tinha vários sítios que dariam para meter um bom trote, mas eu estava totalmente afectado psicologicamente. Constantemente a pensar na desistência, a pensar no sangue e na urina, quase à procura de uma desculpa para parar. Arrastava-me cada vez com mais dificuldade, até que comecei a sentar-me no trilho para descansar. Tanto a subir como a descer, já começava a desligar a máquina, era só chegar à Base de Vida e atirava a toalha ao chão, mas primeiro ainda tinha os Três Pinheiros para subir.

Drave
Trilhos à saída de Drave, numa foto sacada da net que o Rui Nascimento me enviou.
A subida é feita pela crista de um dos dedos da Garra. É lindíssima. Uma subida bem a meu gosto, não demasiado inclinada, 400+ em 2km (lá está, a subida típica do UTSF), sem trilho, pela encosta exposta. 

Antes de me fazer a ela tive que encher os dois flasks num ribeiro, já estava no limite e era muito perigoso começar a subir sem água. Sei que não é muito aconselhável beber água directamente do rio, mas devo ter bebido em todos os ribeiros da serra!

A subida acabou por me fazer bem, continuava a conseguir avançar bem no terreno e não perdi demasiado tempo nela, apesar de ir bem devagar. Foi-se conquistando, até passar pelos dois grandes pinheiros esbranquiçados (reza a lenda que o terceiro não resistiu ao Moutinho) isolados no topo da montanha. Ainda antes do abastecimento percorremos o inacreditável Trilhos dos Incas, esculpido numa encosta granítica, cheio de escadas e com um precipício de um dos lados. Só me fez lembrar a Madeira e o caminho entre os picos! 

Fotografia abismal do Cadalso no trilho dos Incas. Prova do ano passado. 

Adivinharam? São os Três (dois) Pinheiros! 
Na Base de Vida estava à minha espera a comitiva almeirinense que tinha ido aos 26km, o Rodrigo, Bastos, Dourado, Chico e Simão. Que luxo! A meio dos 3 pinheiros tinha ligado à Sara a dar conta da minha ideia de desistir, que tinha estado a sangrar há umas horas. Muito má ideia. Deixei-a a ela e aos meus amigos preocupados, o que ficou reforçado quando me viram a cambalear com mau ar antes do abastecimento. Lá troquei de roupa, comi e fiz-me ao caminho, com a promessa de que se acontecesse outra vez pararia de certeza.  

Póvoa das Leiras - Bondança
A Besta. Finalmente, a Besta. Anos a ouvir falar dela e agora estava finalmente à minha frente. Tenho que dizer que não desiludiu nem um bocadinho, para mim foi a melhor subida da prova e uma das mais espetaculares que já fiz! Subimos pelo leito de um rio, que quando corre deve fazer mesmo uma cascata, enfiados num vale debaixo de árvores. Nada mais nada menos que 400+ em menos que 1km. Quase 50% de inclinação média! Um absurdo. Subida a pés e mãos, autentica escalada. Ainda corria alguma água, por isso vários pontos foram feitos com as mãos e pés dentro de água, em rochas com musgo, agarrados a tudo o que oferecesse alguma resistência! Uma brutalidade! É impossível descrever por palavras, mas vejam este video que o Rui Nascimento me mostrou, já ficam com uma ideia.

A BESTA. O melhor é verem o video. Ou, ainda melhor, irem lá!
Cheguei ao abastecimento de Bondança, 71km, já com lusco fusco. Sentei-me cabisbaixo e estive ali uns minutos em silencio antes de começar a comer. O pensamento de desistir continuava bem presente, reforçado pela chegada da noite. A perspectiva de passar uma noite inteira em prova era exasperante. Como sempre acontece quando chego à parte final das provas, começo a descurar a alimentação. Não é que estivesse a deixar de comer, mas quase nunca me apetece e não faço um esforço, deixo andar. Antes de sair ainda perguntei no abastecimento se se quisesse desistir haveria algum ponto bom no caminho para me irem buscar, mas responderam-me que não, que até à Lomba, próximo abastecimento, era sempre no mato. Enfim, vamos lá ver o que dá...

Bondança - Lomba
Não sei se a descida que nos leva até às Porqueiras, aquele ponto mais baixo no perfil, tem algum nome. Mas devia ter. Gostava de chamar pelo nome a filha da mãe da descida que fez parecer a da Degolada uma brincadeira de crianças! Faço esta comparação com a descida da Madeira porque a parte final é muito parecida, num trilho de terra com muitas raízes e uma inclinação brutal. Parecia interminável, à medida que nos íamos afundando no vale até à cota mínima de toda a prova. 

A subida pelas Escadas do Martírio fez-nos chegar ao abastecimento da Lomba, uma aldeia isolada na serra. Mais uma subida clássica da Freita, com os seus 400+ da praxe, esta foi feita quase toda em degraus de pedra, de todos os tamanhos e feitios, mais uma vez a fazer lembrar a Madeira! Confesso que esta não foi das que achei mais difíceis, os degraus são bons para bastonar e é tipo a besta, a inclinação é tanta que aquilo passa de repente!

Escadas do Martírio, fotografia da Alice, provavelmente no Inverno. Este ano não tinha tanta água.
Cheguei à Lomba e a previsão da Alice estava certa, cheirava mesmo muito mal e a canja soube mesmo muito bem! ahah Sentei-me a comer, ligeiramente mais animado. A subida tinha-me corrido bem e estava a conseguir progredir relativamente bem nas descidas. De costas ou de barriga havia de conseguir virar aquilo. Mal sabia eu que ainda havia de....sim, adivinharam, de BRADAR AOS CÉUS!

Da Lomba a Albergaria da Serra
Saí da Lomba, reconfortado pela canja e bifana, em direção ao Pico da Gralheira, que já conhecia do Freita SkyRunning. A subida, baptizada de Bradar aos Céus, era mais uma clássica do UTSF, com os seus 400 e tal de desnível positivo. Mas se já estava a levar uma grande abada da Freita, ela aqui fez-me um TKO. Todas as gotas de energia e pensamento positivo que ainda tinha ficaram naquela encosta inclinadissima, naquele trilho demoníaco que parecia cada vez mais absurdamente difícil. 

Adoptei a estratégia das grandes subidas e decidi descansar a cada 100 metros subidos, mas estava cada vez mais difícil lá chegar. A cada paragem me custava mais recomeçar, já que as feridas nos pés acordavam ao mínimo sinal de descanso. Se tivessem sempre a andar iam adormecidas. Nesta pequena subida passaram-me pelo menos 15 pessoas, tinha dado um verdadeiro estoiro e o pensamento da desistência estava mais forte que nunca.

Virado o pico ainda tínhamos mais uns obstáculos antes de chegar ao abastecimento de Albergaria da Serra. Primeiro um planalto, que fiz a andar devagar, depois uma descida das Pedras Parideiras, onde ainda em Outubro no SkyRunning passei a voar, mas que aqui fiz a andar e, finalmente, porque o sofrimento não era já suficiente, ainda nos fomos enfiar no ultra técnico PR7! Meu Deus. Quando entrei no abastecimento tirei imediatamente a mochila e procurei um sitio para me deitar. Indicaram-me um colchonete. Perfeito. Estiquei-me e...adormeci!

Pumba, tirei uma selfie no abastecimento. Estava com bom aspecto!
Acordei passados poucos minutos, completamente derrotado. Mantive-me de olhos fechados uns minutos, enquanto ouvia as conversas à minha volta. Lá me sentei, enquanto lutava interiormente com o tentação de ficar ali. Justificava a mim mesmo que era o melhor, que não estava a ter prazer nenhum, que ia ser só sofrer até ao fim, que nem merecia acabar a prova, que tinha os pés destruídos, que o sangue e o mais não sei o quê e bla bla bla... Tudo a pesar do lado da balança que dizia para desistir. No outro prato estava algo que o Helder Baptista me disse há uns anos no Estrela Grande Trail, provavelmente a ultima prova onde passei assim tão mal. "Filipe, cansaço não é razão para desistir, cansados estamos todos!" Pois, Hélder. Tens razão. Vamos lá virar esta merda.

Albergaria da Serra - Arouca
Levantei-me, olhei para o relógio e fiz as contas ao que faltava. Cerca de 13km, 8 deles a descer. Calculei que se fizesse aquilo tudo a andar (não tinha outra hipótese) demoraria umas humilhantes três horas, no máximo. Que seja, de qualquer maneira para o corte ainda faltavam quase 8 horas, havia de lá chegar. 

Mas custou tanto... Normalmente nas partes finais das provas grandes, mesmo quando estou completamente derrotado, vou encontrar alguma energia para fazer as ultimas descidas a correr. Mas não foi o que aconteceu aqui. Foi um martírio absoluto fazer aquela descida. Na parte inicial, a mais inclinada e com mais pedras, parei de 100 em 100 metros. Não eram 100 metros de desnível negativo, eram de distância! A cada passo tinha dores horríveis nos pés, que aumentavam pelas dezenas de vezes que voltei a passar por dentro de água. Quando chegámos à estrada comecei a correr mas não conseguia fazer mais que 200 metros de seguida. 

Completamente de rastos, derrotado, humilhado e sovado pela Freita. Já com o sol a nascer subi as escadas do pavilhão muito devagar, sem sequer pensar em correr até estar mesmo à porta. No pavilhão, quase deserto, estavam ainda o Moutinho e a Flor Madureira, à espera de todos os que ainda estavam em prova. Há muito tempo que não acabava uma prova assim, derrotado. Senti durante muitas horas que não merecia sequer estar a entrar naquele pavilhão. Desde então tenho pensado muito em tudo o que aconteceu, consigo arranjar mil desculpas esfarrapadas para a prova não me ter corrido como eu imaginava, mas no fundo eu sei que não há desculpas. Parece que, nesta prova, a montanha ganha sempre, mas no fim alguns conseguem sobreviver.

A camisola.
Quase 24 horas depois de partir, cruzei a meta e recebi a medalha das mãos do Moutinho, que me a colocou no pescoço e disse-me, olhando-me nos olhos: "Hoje cobriste-te de glória. Parabéns."