Há dias perfeitos. Dias em que tudo corre como o plano, sem mudar uma virgula. Com a corrida é igual, todos nós já tivemos um desses dias. Começamos, corremos e cruzamos a meta com um sorriso enorme na cara. Passamos pela obrigatória dose de sofrimento, mas no fim tudo é esquecido e compensado quando passamos por baixo do pórtico de chegada! Vocês sabem do que eu estou a falar, de certeza!
Este sábado parti para a maior aventura da minha vida, o Réccua Douro Ultra Trail. A proposta era fazer 80km e quase 4500D+ nas encostas do Douro Vinhateiro e na Serra do Marão. Paisagens deslumbrantes, uma organização a prometer muito, amigos e família, a juntar a recentes "dias perfeitos" passados em trilhos de outras paragens, tudo fazia prever uma dessas corridas perfeitas! No entanto, no meio da minha confiança/euforia, esqueci-me de incluir um factor determinante nesta corrida: ia mergulhar de cabeça num mundo desconhecido. Sem me aperceber disso, comecei uma jornada que iria empurrar o meu corpo e principalmente a minha mente para um lugar extremo. Nas próximas linhas quero partilhar convosco a minha viagem, onde subi (literalmente) às nuvens e desci a lugares escuros e escondidos da minha mente.
Será que foi um dia perfeito?
1ª Etapa - Peso da Régua (partida) - Rede
|
Sou azelha e não consigo assinalar a parte correspondente à Etapa, mas abram a imagem e vejam :) |
A partida foi dada às 6 da manhã no Museu do Douro, na Régua. O hotel onde fiquei hospedado com o João, a Sara e a Maria Amélia ficava a 500 metros do Museu. Depois de uma noite naturalmente mal dormida, saí do hotel com o João às 5:30. Saímos descontraidamente para irmos ao encontro dos outros 3 colegas que tinham ficado em solo duro, num local designado pela organização. Nos 500 metros que percorremos na bonita avenida junto ao Douro os meus pés parecia que não tocavam no chão. Era noite serrada, temperatura amena e céu limpo iluminado por uma grande lua que deixava ver os contornos do rio e dos montes que se erguiam em todas as direcções. Sentia que ia ser um dia especial. Andei a antever isso nas ultimas semanas
A meta estava instalada num terraço com vista para o rio no Museu do Douro. Nele estava instalado o pórtico mais original e dos mais bonitos que já vi.
Os nossos amigos já lá estavam, assim como o resto dos companheiros da viagem do dia. Nesta altura ainda não saíram as classificações, por isso não sei ao certo quantos éramos, mas certamente menos que 100. A noite, o local bucólico, as poucas pessoas presentes, a juntar à musica de tom épico que passava no fundo, reforçaram a minha sensação de que algo especial se ia passar nas próximas horas.
Antes da partida o João Marinho, conhecido trailler/ciclista de montanha e organizador da corrida, fez uma breve apresentação da prova ao microfone. Este, ao contrário de praticamente todas as provas que participei, ouvi com atenção. Depois de confessar que adorava estar ali connosco, passou o microfone a outro e foi para a linha de meta dar a partida.
10, 9, .. Cumprimentei os meus colegas 8, 7, .. desejos de boa prova 6, 5, .. tempo para mais uns saltinhos de ansiedade 4, 3, .. respirar fundo, de olhos fechados, 2, 1...
Começou.
Saímos do terraço do museu e rapidamente descemos para as ruas do Peso da Régua junto ao Douro, para uma parte do percurso que eu penso ser em comum com a Meia Maratona do Douro Vinhateiro. O pelotão ia todo junto num silencio ansioso, como se todos estivessem não só a começar uma corrida mas a entrar noutro mundo. Percorremos +/- 2km ainda na Régua antes de chegar à primeira encosta a transpor.
Logo no inicio desta primeira subida verifiquei uma característica, que acredito ser única, neste trail. Como vos disse no inicio, a proposta era correr não só na Serra do Marão mas também no Alto Douro Vinhateiro. Todos conhecemos as espectaculares vinhas instaladas nas encostas do Douro que fazem desta região Património Mundial, mas não são só as vinhas que fazem a região, são as aldeias, as adegas e as pessoas. A organização é local e sabe isso melhor que ninguém, e quis fazer desta prova uma experiência completa. Com excepção da parte na Serra, todo o percurso foi feito a entrar e a sair de pequenas aldeias, passando por intermináveis e omnipresentes vinhas. Em todas as aldeias que passámos, que foram muitas e muitos isoladas, nunca faltou o apoio dos habitantes que olhavam incrédulos para aqueles astronautas. Também para eles aquilo era uma experiência diferente, via-se que estavam orgulhosos de ter ali aquela gente nova na sua terra e isso notou-se em cada "bom dia" sempre retribuído. Ora, esta ideia de experiência completa leva-me a falar doutro ponto que acredito ser dos únicos a causar alguma polémica sobre a excelência da organização. Ao andarmos dentro das aldeias foi muito comum passarmos por sectores em alcatrão. Com contas muito por alto, penso que teremos corrido entre 6 a 8km no total em alcatrão. Enquanto lá corria pensei logo que seria polémico junto dos puristas do trail, mas eu aceitei de bom grado. Para mim esta característica de poder conhecer a fundo a região é muito mais importante e significativa que arranjar obstáculos super técnicos em todos os quilómetros.
|
Uma das pequenos aldeias por onde passámos. |
Esta primeira etapa foi quase toda percorrida ainda de noite nas encostas do Douro. Uma subida lenta e pouco violenta por vinhas e aldeias. Logo nas primeiras vinhas fiquei com uma sensação que não me abandonou o resto da prova: como deve ser duro trabalhar nestas encostas!
Nesta altura ainda era a lua que deixava perceber os contornos da paisagem, já desejava que o sol nascesse de uma vez, até parecia mal empregue andar ali e não apreciar o que nos rodeia! Este apareceu de vez depois de transpormos a primeira encosta, bem a tempo de iluminar um dos famosos vales do Douro. Foram tranquilos e seguros, os 13km até ao primeiro abastecimento em Rede. Sentia-me bem e confiante quando lá cheguei. Seria um dia perfeito, só podia!!
|
Passámos por inúmeros caminhos destes, aqui a ser limpo pela organização (louvável esforço!) |
O 1º abastecimento estava super completo. Cheguei com um pouco de fome, apesar (ou por causa) do pequeno almoço que tomei. Decidi armar-me em esperto e comi uma pratada de massa com ovo ainda no hotel! O resultado foi não ter comido nada de jeito, problema que resolvi neste abastecimento. Sem pressas, demorei-me muito tempo nele.
Em todos os abastecimentos estava afixado o menu que se seguia até à próxima paragem. Distancia, desnível positivo e negativo. Como podem ver no gráfico, este estava situado na cota zero, bem na base do serra. Seguia-se a conquista à Sra. da Serra, no topo do Marão. Seriam 18km com 2000d+.
2ª Etapa - Rede - Passos
A primeira parte da subida ao Marão foi muito parecida com a etapa anterior, continuámos de aldeia em aldeia e de vinha em vinha. Passámos por Mesão Frio, de onde partiu o trail de 44km, e seguimos com a subida lenta e constante. Nesta altura o pelotão, que seguia compacto, já se tinha desfeito completamente, e dificilmente se via alguém para trás ou para a frente. Eu continuei, agora já só acompanhado pelo João. Lá ao fundo erguia-se imponente o Marão.
Por agora seguia a mesma estratégia de sempre. Subidas a andar e corrida em plano e a descer. Como sempre, estava a funcionar na perfeição. A confiança subia perigosamente, e a meio da etapa até mandei uma mensagem à Sara a dizer que estava mais rápido do que pensava, que o melhor era estar na Sra. da Serra mais cedo do que tínhamos planeado. Pobre ingénuo..!!
Durante esta etapa deu-se a primeira baixa do dia. Pela segunda vez, não aguentou um trail até ao fim, cedendo precocemente a uma falta de energia total. Mesmo após uma noite inteira a preparar-se, numa tentativa desesperada de encher os depósitos, mais uma vez a Go Pro que levei ficou-se pelos primórdios da prova! Resultado: transporte de um peso extra e zero fotografias durante o percurso! Obrigado Go Pro! O que vale é que os fotógrafos eram às dezenas em todo o lado, de certeza que vão aparecer por aí boas recordações. Por isso já sabem, a maior parte das fotos que vou aqui colocar são escandalosamente roubadas do facebook da organização :).
3ª Etapa - Passos - Sra. da Serra
O Marão.
Nunca tinha ido à Serra do Marão, por isso foi tudo uma completa descoberta. A sensação que fiquei foi que é uma serra muito pouco explorada, tudo parece virgem. Não se vêm estradas em lado nenhum, a única maneira de apreciar o local é percorre-lo como nós o fizemos - por trilhos e estradões. E, meu amigos, como o Marão tem potencial para ser apreciado!
|
Só um exemplo |
A subida começou por um estradão na encosta de um vale monstruoso. O que vale é que o caminho não tinha grandes obstáculos, porque passei mais tempo a olhar para o que me rodeava do que para o chão. Não vi uma única estrada de alcatrão a dar acesso àquele vale, fomos uns privilegiados! Nesta altura o meu companheiro João afastou-se de mim. Fortíssimo a subir, deixei de o conseguir acompanhar assim que as inclinações aumentaram. O resto do percurso fui sempre sozinho.
|
O tal estradão ao longo da encosta. |
Há umas semanas a organização fez um post no facebook a apresentar-nos a Diana, uma subida com 1km e 30% de inclinação. A Diana estava à nossa espera no km 27, e confesso que desde há algum tempo que estava ansioso por a conhecer. Foi exactamente nesse quilómetro que se fez a separação do trail para o ultra. O pessoal dos 44km seguiu pelo estradão, os tontos dos 80 viraram à esquerda, para enfrentar a encosta.
Um conselho que dou àqueles que, como eu, são inexperientes no trail: quando vos disserem que uma subida tem um nome, desconfiem!
|
Senhora e senhores, a Diana! |
|
Aqui noutra perspectiva, que também a favorece |
Uff.. A Diana tem uma personalidade forte, há que dizê-lo.. Os 30% de inclinação são exactamente aquilo que se espera deles, demolidores. Num trilho super técnico a cortar a encosta virgem, esta ergue-se por centenas de metros à nossa frente. E como qualquer boa subida, é daquelas que quando pensamos que já está conquistada, ela saca de um pontapé rotativo que nos acerta em cheio no peito! Toma lá com mais uma escaladazinha que ainda não estás estafado o suficiente! Foi sem dúvida das melhores subidas que já percorri. A Diana passou mas deixou-me marcas, nunca mais me esqueço dela. Peço desculpa Sara, mas há que admiti-lo..
Transposta a Diana entrámos no coração do Marão. Descemos por estradões entre as grandes éolicas durante cerca de 1km até novo desvio à direita para mais uma escalada. Aqui foi a primeira e única vez que me enganei. Não que o percurso estivesse mal assinalado, mas ia distraído a olhar para o chão e não reparei. Dei por isso uns 200m depois, quando oiço um colega a assobiar lá BEM acima! Grande sorte, se não fosse ele tinha continuado embalado na descida. Quanto às marcações posso dizer que estiveram perfeitas. Nota-se quando o percurso é marcado por um praticante de trail, as fitas estão exactamente onde têm que estar. Além disso em quase todos os cruzamentos estavam voluntários (bombeiros, escuteiros, membros da organização ou simplesmente locais) que nos ajudavam e invariavelmente davam uma palavra de incentivo! Incansáveis do primeiro ao ultimo km, muito bem!
Antes da prova tinha dito à Sara que chegaria ao alto do Marão entre as 11 e 11:30 da manhã. Apesar do acesso de euforia a meio da subida, às 11:30 em ponto cheguei lá acima. No abastecimento estava a Sara e a Mel à minha espera, assim como o habitual banquete da organização.
|
Uma imagem do abastecimento, bem no cimo da Serra. Na fotografia o Omar e uma parte da minha comitiva de recepção :) |
Mais uma vez demorei tempo QB no abastecimento. Comi com calma e recuperei o fôlego da grande subida. Falei durante uns minutos com a Sara que me informou da situação dos meus colegas de Almeirim e fiquei descansado quando soube que todos estavam bem e animados.
Depois da grande conquista da Sra. da Serra era altura de descer. Despedi-me delas e pus-me a andar. Estava na altura de descer das nuvens, literal e figurativamente.
|
Ao nível das nuvens. |
4ª Etapa - Sra. da Serra - Soutelo
Quem corre em trilhos sabe de uma verdade incontestável: subir é difícil, mas descer pode ser tão ou mais penoso. A descida da serra começou por um troço de cerca de 2km em alcatrão, num caminho municipal muito rudimentar. Mergulhámos de novo na serra pouco depois. O João Marinho avisou-nos que este lado da serra teria muito mais vegetação que a encosta que subimos, e isso verificou-se imediatamente. Entrámos numa floresta densa, com árvores gigantes, daquelas que só vemos em postais dos Alpes.
Já na floresta, a primeira parte da descida foi a mais técnica. Gostava de ter uma foto para vos mostrar, mas vou tentar ilustrar. Imaginem um rio a correr numa encosta. Agora imagem que em vez de água estão a correr pedrinhas. Agora imaginem que essas pedrinhas são rochas que vão desde o tamanho de uma bola de ténis a uma cadeira. Por fim imaginem que essas rochas são super angulosas e soltas. Pronto! Penso que é mais ou menos isto. Nesta descida arrisquei zero. Progredi de forma mais lenta que na subida, mas aquelas pedras soltas estavam mesmo a pedir um pé torcido e eu não quis arriscar.
Depois do rio de pedra continuámos a descer por estradões embrenhados na floresta, até mais um desvio à direita. Um desvio, e que desvio. Os próximos 500 metros foram os meus preferidos de todos os 80km.
Saímos do estradão e entrámos a fundo na floresta densa. As árvores que se erguiam a dezenas de metros estavam baseadas num solo verde da vegetação densa e fofa. A organização abriu aqui um trilho que serpenteava entre os troncos gigantes das árvores. Corremos por este trilho encantado durante cerca de 300 metros até que saímos finalmente da linha das árvores e deparamo-nos com isto:
|
Tentem imaginar a vista sem a equipa da organização que fazia a limpeza dos trilhos :) |
Dei três passos e tive que parar. Senti um arrepio no corpo todo, e lembro-me perfeitamente de ter pensado: é por isto que faço trail.
O 4º abastecimento estava situado em Soutelo, uma aldeia pequeníssima no coração da Serra. A descida, como previsto, tinha-me massacrado bastante as pernas, apesar de ter vindo ultra cauteloso. A cautela ficou reforçada quando a meio do percurso ouvi um membro da organização a dizer "poupai-vos nas descidas que ainda vão sofrer muito até Fontes!" Ok amigo, se tu o dizes, toca a abrandar!
No abastecimento estavam mais uma vez a Sara e a Mel, que como sempre me encheram os depósitos de ânimo. Disse-me que na Sra. da Serra ainda tinha apanhado o 5º elemento da comitiva Almeirinense, o David, que teve problemas de desidratação na subida e progredia com muita dificuldade. Vim a saber depois que mesmo com grandes dificuldades conseguiu terminar a prova. Um guerreiro, como sempre!
Ao contrário das previsões meteorológicas que apontavam para aguaceiros e trovoada, estava um dia de fim de verão perfeito, com céu limpo e temperaturas amenas. Ah, e muita humidade! Desde o primeiro quilómetro que corria completamente ensopado em suor. Depois da má experiência há duas semanas no Almonda, não facilitei e bebi quantidades enormes de água e isotónico.
Saí do Soutelo com o mau pressentimento que a próxima etapa seria determinante no desenrolar da prova.
Não me enganei.
5ª Etapa - Soutelo - Fontes
É a velha questão e uma regra básica do trail: não se fiem nos gráficos de altimetria! De facto, ao analisar o desta prova, parecia que depois da subida ao Marão o percurso seria bastante acessível até à meta. Não podia estar mais enganado.
Com as pernas doridas da descida, comecei a percorrer os 14km que me separavam de Fontes com pouca confiança. O percurso foi um sobe e desce constante, não com segmentos muitos compridos, mas cada um mais duro que o anterior. A certa altura subimos uma encosta no meio das árvores daqueles que temos que nos agarrar o tudo o que podemos. O suor escorria em bica e sentia o coração a saltar pela boca. Agora que olho para o gráfico parece um pequeno saltinho...
A partir dos 45km comecei a olhar para o relógio de 5 em 5 minutos. Mau sinal. Sentia-me cada vez mais preso, cada vez mais fraco. O percurso não perdoava e quando começava a ganhar uma restea de confiança por uma descida menos violenta ele logo me atirava com uma dificuldade. A subir ou descer, já tudo me custava. Nesta altura os bastões tornaram-se os meus melhores amigos, utilizava-os nas subidas para me puxar, nas descidas para retirar alguma pressão das pernas e nos planos para conseguir correr.
Aos 53km olhei para o relógio e pensei "ok Filipe, estás a entrar em território desconhecido". Vamos a ele então.
Os 53km coincidiram com o inicio de uma subida de cerca de 1km para entrar numa aldeia. Nessa subida, uns metros acima, vi o meu amigo João, o tal que é forte a subir. Tinha recuperado algum tempo e imediatamente animei com a perspectiva de fazer o resto da prova com ele, só tinha que o apanhar...!
Ataquei a subida.
Cada vez mais apoiado nos bastões prossegui numa marcha muito lenta e penosa. Ficava sem fôlego a cada investida e sentia as forças a diminuírem cada vez mais.
Andava 50 metros e parava para descansar.
O João já tinha desaparecido há muito e com ele o ânimo. Demorei uma eternidade a entrar na aldeia e quando cheguei lá acima devia ir com muito má cara, porque uma rapariga da organização disse-me logo que tinha uma fonte a uns metros, para abastecer de água antes de atacar a próxima subida! Praticamente tomei banho nessa fonte. Bebi água, molhei a cara e os braços, ensopei o buff e voltei a mete-lo na cabeça. Senti-me refrescado e aliviou um pouco, o sol nesta altura estava a pique.
Antes da próxima subida tinha uns metros bons em plano, decidi que nem ia tentar correr. Tinha os níveis de energia tão em baixo que queria guardar tudo o que sobrou para a escalada.
Faltavam 2km para o abastecimento de Fontes, e este estava no fim da subida. Assim que a ataquei percebi que ia ser dificil. Na minha cabeça era inconcebível que a rampa se prolongasse por 2km.
Andava 20 metros e parava para descansar.
O sol estava agora na máxima força, e talvez por estarmos na encosta não corria uma brisa. Parecia que tinha uma torneira aberta na cabeça porque o suor não parava de escorrer para o chão, já que ia curvado para a frente, apoiado nos bastões.
Andava 10 metros e tinha que parar para descansar.
Tal como a Diana, esta era daquelas subidas que não paravam de crescer e crescer a cada curva. Mas se na Diana cheguei a achar piada a isso, esta estava a assustar-me. Estava a sentir a força a desaparecer e com ela o ânimo. Cada vez mais...
Andava 5 metros e parava curvado a respirar fundo.
De repente a subida ganhou novo fôlego e inclinou ainda mais, num trilho pedregoso que dificultava a progressão. Comecei a ficar com tonturas. Parei e olhei para a minha mão, tremia. Respirei fundo, bebi mais uns goles de água e voltei a pegar no bastão.
Andava 4 passos e parava 1 minuto.
Sentia-me constantemente com sede. Bebi água e mais água mas não passava. As tonturas continuavam, lembrei-me que podia ser fome. Comi sofregamente as 3 barras que levava comigo. Era mesmo fome, porque me souberam a pouco! Voltei a beber água e tentei subir de novo.
Andei 3 passos.
Parei.
Aqui a minha mente começou a viajar por locais estranhos. Estava com 57 quilómetros, não conseguia dar 5 passos seguidos. Se no resto do percurso andei sempre sozinho nesta altura passaram por mim 3 ou 4 atletas, que me perguntavam se estava bem. Respondia orgulhosamente que sim, mas não estava. Comecei a pensar que não ia conseguir acabar. Não a prova, mas aquela subida! Como é que ia fazer? Será que alguém me ia lá buscar? Não sejas parvo Filipe, tens pelo menos que chegar lá acima, a Sara está à tua espera!
Andei 4 passos.
De repente, ao olhar para cima vi uma casa. Era Fontes, a terra prometida!
Andei 20 metros.
Bebia água como se a minha vida dependesse disso, mas a sede não passava. Faltam mais de 30km, não vou conseguir. Só tenho que chegar ao abastecimento.
Andei 50 metros.
Estava finalmente no topo do monte. À minha frente tinha um estradão plano e não uma íngreme subida, como na ultima hora. Em vez de passos pequenos comecei a caminhar. Arrumei a ideia de desistir num canto escondido da minha mente e arrastei-me desta maneira até ao Quartel dos Bombeiros de Fontes, onde estava a Sara.
Quando cheguei ao abastecimento não sabia o que havia de fazer. Era aqui que tínhamos o saco para mudar de roupa e podíamos comer algo quente, mas eu não conseguia fazer uma coisa nem outra.
Tenho fome, é isso, tenho que comer! Pousei os bastões e agarrei-me a um prato de massa servido por uma bombeira.
Voltei a beber vários copos de água e isotónico, comi mais banana, bolachas, amendoins, batata frita...tudo o que por lá havia. Não havia de desistir pela fome!
Não disse à Sara que a ideia de desistir me tinha passado pela cabeça, mas avisei-a que ia chegar mais tarde que o previsto. Agora já só me havia de ver na meta, de uma maneira ou de outra.
6ª Etapa - Fontes - Medrões
Mais uma vez olhando para o gráfico, esta etapa não parece nada de especial, com excepção daquela ultima subida para Medrões, mas eu aprendi bem na ultima etapa a não ligar a isso, ia avançar com a máxima precaução.
Nos 2km a seguir ao abastecimento nem tentei correr, conformei-me que não ia conseguir voltar a fazê-lo até ao fim. O bom é que já pensava em "até ao fim".
Fui alargando a passada da caminhada e pela primeira vez em algumas horas não dei pelo tempo a passar. O que estava a acontecer?
Tentei correr um pouco em plano. As pernas responderam afirmativamente. Parei pouco depois, não queria abusar. Transpus uma e outra subida a bom ritmo, desci sem ajuda dos bastões e até ganhei velocidade.
Aos 65km entrámos em Santa Marta de Penaguião, uma vila maior que as habituais aldeias por onde passámos. Aqui tivemos o momento mais "fora" da prova, ao passar pelo relvado da equipa de futebol local eheh A corrida a sobrepor-se ao futebol, pelo menos durante aquele dia!
Ao passar no centro de Santa Marta perdi o respeito e comecei a correr. Mais uma vez as pernas responderam! Mas..ainda há pouco não dava 3 passos seguidos! Não pensei muito nisso, estava a sentir-me cada vez melhor, siga!!! Mais uma e outra e outra vinha sobe socalco, desce escada... Como disse no inicio, as vinhas são omnipresentes!
Cheguei à base da ultima subida. Era agora ou nunca. Estava com 70km, era o ultimo obstáculo, a seguir era a descer até à meta! Ataquei-a com muita precaução, estava avisado depois da ultima. Desta vez as pernas trabalharam e seguiam o ritmo imposto pelos bastões. Parei a meio para comer o ultimo gel e mais uma barra. Voltei à carga e mais uma vez obtive resposta. Está quase..
A meio da subida tivemos o abastecimento de Medrões. Mais uma vez "gerido" por pessoas muitíssimo simpáticas e prestáveis, super atenciosas e sempre dispostas a dar uma palavra de motivação. Confortaram-me dizendo que faltava apenas mais 1km a subir, a seguir era uma descida até à Régua! Foi o abastecimento onde demorei menos tempo, já não conseguia comer nada, só pensava no momento de voltar a entrar no Museu do Douro!
Neste abastecimento enviei uma sms à Sara: "72km, esta já não escapa!"
7ª Etapa - Medrões - Peso da Régua (META)
Cumpri o tal quilómetro a subir cada vez mais motivado. A Sara tinha-me respondido a dizer que estava muito orgulhosa e que já me esperava na meta. Está quase..!!!
|
Já te despachavas pai.... |
Assim que cheguei ao topo do monte e vi a descida comecei a correr. Faltavam 6km. Já nem sequer pensava nas pernas, nos pés ou nos braços que ainda há pouco latejavam. Corri, corri, corri... Desci por caminhos entre as vinhas, por aldeias, em estrada, em estradões.. Corri por descidas de pedras soltas e de calçada. Olhava em frente e lá em baixo via a cidade. Corria cada vez mais, mais depressa!
Entrei em Peso da Régua já com o sol a por-se, mas de dia. Desci mais uma estrada e estava agora à beira rio. As pessoas aplaudiam enquanto passava, nos passeios, nas varandas, até ouvi um incentivo de um automobilista!
Faltava 1km e o percurso mandava-me para uma ciclovia. A mim pareceu-me um tapete vermelho estendido de propósito!
Corri o quilómetro que faltava nesta ciclovia. Olhei para o relógio e seguia a ritmos impróprios, mas já não importava, estava QUASE!!!
Uma ultima e pequena subida para voltar a entrar na cidade, já via o Museu lá à frente e ouvia os aplausos e musica. Entrei com os braços no ar a segurar os bastões, vi o João Marinho que recebeu todos os atletas, também ele levantou os braços. Vi a Sara com a maquina fotográfica na mão e a Mel em pé junto ao carrinho. Vi o espectacular pórtico a 50 metros. Corri uns últimos metros na relva e...
ESTÁ FEITO!
13 horas e 40 minutos depois estava de volta ao terraço do Museu do Douro!
Foi um dia em que tudo correu bem, em que não senti dificuldades e andei com um sorriso durante as 13h? Não, de modo algum...
Foi um dia perfeito :)