As minhas corridas na estrada

segunda-feira, 30 de março de 2015

Suunto Ambit3 Sport - O ensaio definitivo

Aqui há umas semanas recebi um mail da Suunto, de Espanha, a dizer que o meu blog tinha sido escolhido para testar o Ambit 3 Sport, o relógio novo da marca. Depois da natural reacção histérica, de ter ligado para todos os meus familiares e ter feito uma espécie de dança tribal, lá acalmei um pouco e deixei a meio a carta de despedimento que já estava a escrever, convencido que poderia viver à custa da corrida. A proposta era testar o relógio durante 15 dias, depois escrever um post sobre isso e finalmente devolver o equipamento por correio. Ok, se calhar ainda não é desta que vou deixar as obras...

Depois de ultrapassado este êxtase inicial deparei-me com outro problema: será que os milhões de leitores do Quarenta e Dois não se vão sentir defraudados por eu estar a entregar a minha criatividade ao Grande Capital e dessa forma contribuir para a sociedade materialista em que vivemos?? A resposta é: LOL! Provavelmente a meia dúzia de pessoas que por aqui passam nem se vão aperceber deste post...

Resolvidas estas questões existenciais, aceitei o desafio da Suunto. Decidi que ia fazer um teste ao Ambit3 Sport. Mas não seria um teste qualquer. Não, eu não faço as coisas por menos. Senhoras e Senhores, bem vindos ao:

SUUNTO AMBIT 3 SPORT

O DERRADEIRO, DEFINITIVO E ESSENCIAL ENSAIO!!!

Eu sou um dos pré-históricos que chegou a correr com um daqueles relógios que, pasmem-se, só registavam o tempo! É verdade, acreditem ou não, há muito muito tempo atrás (pra cima de 6 ou 7 anos!!!!) não haviam aplicações para o telemóvel, tão pouco relógios com GPS. No entanto, não sou de forma alguma saudosista. Abracei a tecnologia e tenho assistido à evolução brutal dos aparelhos nos últimos anos e a forma como isso está efectivamente a influenciar a corrida amadora. Se não, vejamos, quando partilhado no Facebook o que tem mais impacto: "Fui dar uma volta a correr ao Bilhar Grande e demorei pra cima de uma hora!" ou "Fui dar uma volta de 12.3km ao Bilhar Grande, demorei 1h10m, a minha FC média foi de 110bpm e venci um acumulado de 110D+ #running #nopainnogain #roadtomarathon"? De facto, a tecnologia arranja sempre maneira de responder às nossas necessidades básicas. 

O primeiro relógio que tive que registava a distancia foi um Polar que tinha um pedómetro, isto em 2010. Depois comprei um Garmin 310xt e finalmente um Garmin 910xt. Este meu ensaio vai ser muito na base da comparação com estes dois modelos, já que nunca experimentei outros. 

Para começar, parece que todos os ensaios de material para a corrida começam por um procedimento cujo propósito sempre interroguei. Mas como este é o DEFINITIVO ensaio tenho obrigatoriamente que incluir a:

GLORIOSA RETIRADA DO RELÓGIO DE DENTRO DA CAIXA!!!!*

*unboxing
Caixa Fechada

Caixa Aberta
Pois é, acreditem ou não, dentro da caixa estavam não só o relógio como o cabo USB para ligar ao computador, a fita para os batimentos cardíacos e nada mais nada menos que os manuais e a garantia!! ...vou-vos dar 1 minuto para recuperarem do choque.

(...)

O modelo que me enviaram é o Suunto Ambit3 Sport Blue, a evolução do Ambit2 lançado no verão passado. Quanto ao aspecto exterior, relativamente ao Ambit2, pouco ou nada é alterado com excepção de pequeníssimos pormenores e a novidade da introdução da cor "Azul Cueca". Em comparação com o meu Garmin 910xt as diferenças de dimensões são muito poucas, como podem ver pela fotografia:

Sim, é um rolo da massa.
A principal diferença está, no entanto, no elevadíssimo nível de cagança que é possível atingir com o Ambit3, nomeadamente nesta cor Azul. De facto, efectuei numerosos estudos e todos convergem na mesma conclusão: a selfie de relógio com um Ambit3 Blue é propensa a receber 26% mais likes do que com o Garmin. 

Like!
Realizei ainda um ensaio que comprovou as capacidades do Suunto actuar como um Chic Magnet de alta qualidade (err..emprestei a um amigo meu solteiro, claro...) o que reforça que o Ambit3 poderá fazer maravilhas pela vossa vida social. Além disso, é possível andar na vida real com ele no pulso sem que vos perguntem onde está o Kit.

Ultrapassadas as questões fúteis, era altura de meter a mão na massa (e não estou a falar do rolo). O Ambit3, assim como os 310xt e 910xt são relógios multidesporto, o que quer dizer que dão para registar percursos a pé, de bicicleta ou a nadar. Visto que o triciclo da minha filha é demasiado pequeno para mim e que durante as duas semanas que tive para testar ter estado mau tempo, o que impossibilitou a minha ida à barragem nadar, o meu teste vai limitar-se à corrida. Vamos então dar inicio ao novo segmento deste derradeiro ensaio:

DEIXA-TE DE MARIQUICES E VAI CORRER, OH PALHAÇO!!

O relógio tem 5 botões e os menus são bastante intuitivos. Para quem já está habituado a modelos da Suunto não muda nada, para os outros, como eu, que estão habituados por exemplo à Garmin, a adaptação é bastante rápida. Relativamente à Garmin, há uma diferença  que achei substancial. Ao contrário do meu 910, este está sempre ligado na função relógio, e só activa o GPS quando iniciamos um exercício. Se quiser ver apenas as horas, com o Garmin tenho que desactivar manualmente o GPS e programar um visor para mostrar apenas o relógio. Penso que a Suunto assumidamente quer que o Ambit seja um relógio não só de corrida mas para o dia-a-dia, ao contrário da Garmin, pelo menos os 310 e 910xt. 

Depois de entrar no menu do relógio podemos escolher logo entre vários tipo de exercícios: corrida, natação, triatlo, ciclismo, seguir um track, etc. Estes campos são totalmente personalizáveis como veremos mais à frente. Esta "triagem" inicial é bastante mais fácil do que com os meus Garmin.

Escolhida a corrida como exercício ele procura a banda cardíaca (bluetooth) e o sinal de GPS. De todas as vezes que o utilizei foi sempre bastante rápido a encontrar ambas. Destaque para o sinal GPS, que nunca demorou mais que 10 ou 15 segundos. 

1, 2, 3, 4 - BAM!
O visor da corrida tem no máximo 3 campos, todos eles completamente personalizáveis. Por exemplo, neste caso tenho a distancia no meio (mais visível), tempo em cima e em baixo posso variar entre três opções: acumulado positivo, frequência cardíaca e ritmo instantâneo. Este é apenas UM visor que defini, posso definir 8 e ir percorrendo durante o treino. Muito fácil de personalizar, principalmente através do computador e do telemóvel, como veremos mais à frente.

Quanto à pratica, apesar da muita informação disponível no imediato, acho que os campos inferior e superior são um pouco pequenos e de difícil visibilidade, pelo menos relativamente ao 910, cujos 4 campos são todos do tamanho do leitor do meio do Suunto. 

No fim da corrida o exercício é parado e guardado quando se faz reset ao visor, fácil. Vamos lá então ver se saiu daqui alguma coisa de jeito.

METE LÁ ISSO NO COMPUTADOR!!

A transferência de dados é feita através de um cabo USB ligado ao computador. Outra grande diferença em relação aos Garmin, cuja conectividade é feita através de uma pen wireless. Isto pode parecer um ponto negativo da Suunto mas para mim é precisamente o contrário. Gosto de hardware. Sou do tempo de soprar pra dentro de um cartucho da Nintendo e depois dar uma traulitada na consola se o jogo não entra logo. O wireless realmente é prático, mas só se funcionar a 100%, se não não podemos "dar um jeitinho ao cabo" ou limpar os pontos de contacto. E, meu amigos, o wireless da Garmin muito raramente funciona a 100% e depois lá tenho que andar a chafurdar nos fóruns de ajuda. Com o Suunto correu sempre bem, pelo menos enquanto o tive. Sacamos um programa que faz a conectividade (moveslink) que transfere os dados para uma aplicação da Suunto, o Movescount, equivalente ao Connect da Garmin, onde estão armazenadas para análise todas as nossas actividades.


Para mim, o aspecto do site não é o mais agradável, mas suponho que é uma questão de hábito. No entanto, a informação está toda lá.

visão resumida
Uma data de dados que eu nem vi bem o que são
 O meu treino nos Alpes.
Mentira, é na Serra das Fazendas.
Existem 11 opções para visualizar no gráfico, além das normais de altitude, ritmo e frequência cardíaca. Como por exemplo EPOC, VO2 e R-R. Isto deve ser espectacular, infelizmente não faço ideia do que seja! Imagino que seja informação essencial para alguém, a mim o que interessa é que tudo o que eu preciso de saber está lá e é de fácil acesso, por isso não posso dar menos que nota 10/10.

Quanto à analise dos dados, aqui sobressai O problema do Ambit3 Sport, pelo menos para mim. O Ambit3 é dividido em dois modelos, o Sport e o Peak. A principal diferença entre ambos é que o Peak tem um barómetro que regista a altitude e o Sport não. Esta foi basicamente a razão que me levou a fazer o upgrade do Garmin 310 (sem barómetro) para o 910 (com barómetro). Provavelmente vão achar que é uma mariquice mas por exemplo neste percurso levei o meu 910xt que registou 900D+ e o Ambit3 registou 511, quase metade. Isto acontece principalmente quando as subidas são curtas e não se nota quase nada em subidas muito longas. Claro que o problema fica resolvido se adquirirem antes o Peak. Ah, e pagarem mais uns euritos...

UM RELÓGIO FEITO SÓ PARA MIM

Como disse lá atrás, todos os campos do Ambit3 são altamente personalizáveis, não só no relógio mas também no computador, através do movescount. Mais uma vez, o processo é super simples e intuitivo. 


Aqui posso escolher definir os ecrans que vejo no modo "corrida". Como vêem posso definir até 8 ecrans, e em cada um deles escolher o que quero ver em cada linha.


Além do modo "corrida" podem escolher ciclismo, natação, indoor, triatlo, etc. ou até criar o nosso próprio modo, como por exemplo "trail", e nesse colocar apenas ecrans com informação relevante para o trail.

Através do Movescount podemos ainda alterar as definições básicas do relógio, como por exemplo o tempo de retro-iluminação, a qualidade do registo de dados GPS (com influencia na duração da bateria), as unidades, etc.

PARTE GEEK DO ENSAIO

Uma diferença importante entre o Ambit2 e 3 é a possibilidade do relógio ser emparelhado com um telemóvel através de Bluetooth. O Movescount existe também em versão móvel e tem todas as opções da versão PC, como a analise dos exercícios, personalização do relógio, criação de percursos ou criação de treinos personalizados (por exemplo, programar um treino intervalado). Podemos ainda fazer o upload do exercicio directamente para o movescount através do telemóvel por Bluetooth e partilhar imediatamente no Facebook, porque a cagança não pode esperar.

Visão no telefone
O nível de geekice aqui ultrapassa-me muito, já que nunca me interessei muito por isto. Mas, por exemplo, quando o emparelhei com o telemóvel comecei a receber notificações do Facebook no relógio!! Calculo que haja uma infinidade de opções que me estão a escapar através deste emparelhamento, mas sinceramente não são coisas que uso correntemente, por isso, mesmo que o relógio fosse meu dificilmente as exploraria. 

FINALMENTE, A CONCLUSÃO!

Todos os ensaios têm que ter uma secção de prós e contras, para o pessoal que não tem paciência de ler o resto poder saltar. 

Pontos positivos:
  • Aspecto - Normalmente ligo zero ao aspecto do equipamento que uso, interessa-me muitíssimo mais a funcionalidade. Mas não podemos descurar o cuidado que a Suunto teve com o aspecto deste relógio. 
  • Menus no relógio - Bastante intuitivos e fáceis. No outro dia deixei o relógio esquecido aqui por casa e quando fui a ver a minha filha de ano e meio já andava a programar um treino intervalado para fazer no corredor.
  • Transmissão de dados - Viva o cabo USB, abaixo o wireless!
  • Movescount - Como disse lá atrás, não gosto muito do aspecto, mas é bastante funcional e por outro lado TUDO é melhor que o Garmin Connect. Além disso, gosto muito da opção de personalizar os campos do relógio através do computador.
  • Bateria - as anunciadas 20 horas são muito importantes para quem anda nestas coisas de ultras. Uma ressalva, estou a confiar nos valores fornecidos pelo fabricante, nunca testei até ao fim.

Pontos negativos (ou menos positivos, vá):
  • Barómetro - Claro, eu sei que o Ambit3 Peak tem essa opção, mas custa os olhos da cara. Como disse lá atrás, troquei de relógio precisamente para ter o barómetro.
  • Bateria (não, não me enganei) - as anunciadas 20 horas apenas são possíveis se baixarmos a qualidade de registo dos dados GPS, um contra relativamente ao meu 910xt que é sempre igual.

O Suunto Ambit3 Sport é um excelente relógio que cumpre exactamente o que promete. Não é uma evolução milagrosa do Ambit2, pelo que li as principais diferenças são a possibilidade de sincronizar com um telemóvel e a captação de batimentos cardíacos dentro de água. Penso que a estratégia de marketing da marca não foi a melhor neste aspecto. Mas se estão a pensar comprar um relógio novo, esta é uma óptima opção. 

Ok, talvez não tenha sido O DERRADEIRO, DEFINITIVO E ESSENCIAL ENSAIO por que estavam à espera. Há outras pessoas muito mais competentes para o fazer do que eu, como poderão constatar numa pesquisa rápida no Google. Procurei mostrar-vos como é a utilização quotidiana do relógio e dar a minha opinião sobre as funções básicas que utilizo enquanto treino. Espero que na meia dúzia que vai ler isto haja alguém a quem tenha ajudado a decidir. Por outro lado, provavelmente hipotequei todas e quaisquer hipóteses de voltar a testar equipamento para alguma marca! Definitivamente, ainda não é desta que deixo as obras, mas..

MUCHAS GRACIAS SUUNTO!

terça-feira, 24 de março de 2015

I Trail de Almeirim

A véspera começou às 6 da manhã. Foi a hora que acordei para ir dar uma última volta teste ao percurso dos 30km. A manhã tinha acordado muito cinzenta e com chuva, o que aliado a uma noite anterior muito longa, originou uns primeiros 3 ou 4km de muito sacrifício e outros 27 corridos de forma quase mecânica. O percurso de 30km foi dividido em 6 e a cada secção foi atribuído um responsável, incluindo eu que fiquei com os primeiros 8km. Cada um de nós ficara encarregue de limpar e marcar a sua secção de um percurso idealizado pelo Omar (lembram-se dele de Sicó?). Parti com o objectivo de verificar o trabalho no percurso, mas sabia que nada falharia. Assisti nas ultimas semanas ao empenho de toda a gente para assegurar isso mesmo.

Gastámos cerca de 7km de fita nas marcações!
Assim que cheguei ao centro nevrálgico da prova, o Centro Cultural das Fazendas de Almeirim, recebo uma chamada do Omar, a perguntar se está tudo bem. Respondo que sim, impecável! Digo-lhe que antes de ir a casa ainda ia marcar os 2km iniciais, dentro da vila. Enquanto marco a recta da meta passo pelo Valter, que andava de casa em casa a bater à porta e a informar os moradores do que se ia passar. O Omar e o Valter são os pais deste trail (hey, não sou preconceituoso, vocês é que dizem que a vossa relação é quase um casamento ehehe), foi muito devido ao seu empenho e trabalho que tudo funcionou.

A tarde de sábado foi o climax de toda a preparação. Enquanto eu organizava os cerca de 40 voluntários que iam ficar espalhados nos abastecimentos e percurso, outras pessoas estavam encarregues de distribuir dorsais, outros organizavam a cobertura fotográfica e de video do evento, outros orientavam as barracas de expositores, montagem da estrutura do palco e pórtico e outros ainda andavam no terreno a colocar as placas indicativas dos quilómetros e com algumas mensagens humorísticas. Pessoas com muito poucas horas de sono e muito cansaço acumulado mas que vestiram a camisola desta corrida que era a nossa. Pessoas como o David, que durante mais de 3 meses perdia pelo menos 2 horas por dia a gerir uma por uma todas as inscrições que foram feitas e a responder aos mails enviados pelos participantes.

O despertar ansioso no dia D foi novamente às 6 da manhã. Para trás ficaram 2 ou 3 horas muito mal dormidas, mas isso não interessava nada. Era altura de rumar ao local do meu abastecimento com a comida e bebida carregada no carro, enquanto a Sara foi buscar os 3 espectaculares voluntários que o geriram. Chegámos, montámos tudo, ultimas explicações dadas e eram 8 horas, a uma hora do inicio.

A hora que com que fiquei de folga serviu para percorrer, a caminhar, a minha secção do percurso. Como sempre, ando pelos trilhos preocupado com a hipótese de alguém se perder. Passo pelo trilho que andei a limpar há umas semanas com a Sara e pelo outro que quase me levou à exaustão de enxada na mão a semana passada. Pouco antes das nove sento-me no fim do meu trilho favorito do percurso, no km 6, o que nós chamamos o Trilho do Javali. Não foi uma escolha inocente, sabia que se havia a remota hipótese de os atletas estarem felizes, no fim daquele trilho era a minha melhor chance de os ver a sorrir! Ligo a todos os meus colegas dos abastecimentos para um rápido OK e ficar descansado.

3, 2, 1.... Pronto, agora era tudo ou nada.


Estavam neste momento a percorrer o quilómetro e meio em alcatrão e estradão, logo antes de entrar no primeiro trilho. Sabia que aquele quilómetro era das secções mais duras do percurso, mas o meu medo era que alguém se perdesse naquela zona. Aos 3.5km estariam a passar pelo meu abastecimento. De certeza que não se demorariam, era muito cedo na corrida. A seguir iam entrar num trilho que serpenteava no meio dos eucaliptos que há uns dias tinha limpo com uma vassoura (sim, leram bem, vassoura ehehe), até desembocarem no estradão que os ia levar a uma das subidas mais compridas, no Cerro da Águia, não sem antes passar pela Sara que estava a fotografar no meio do mato. No fim da subida estavam dois voluntários que avisam para a descida perigosa logo a seguir, para depois subirem mais uma parede e finalmente entrarem no Trilho do Javali.

Tanto trabalho a varrer isto e já estava cheio de folhas..
Eram 9:28 quando vi o primeiro atleta, vinha num ritmo brutal. Logo a seguir passa um grupo onde vinha o Luís Mota e pouco atrás o João Colaço.  Fiquei por ali a ver passar os 200 atletas da prova longa de 30km. Vi desde os concentrados e intensos primeiros 20 ou 30 classificados aos descontraídos e sorridentes últimos 50. A todos analisei as expressões, à espera de um vislumbre que me contasse como estaria a correr a prova. Vi muita gente conhecida, da terra, da internet e de outras paragens. Aplaudi e incentivei cada um deles, como bem mereciam! Estive no meu Trilho do Javali até encontrar a Anabela que fez uma grande festa quando me viu! A Anabela vinha sorridente e com uma cara de satisfeita, o que me sossegou. Só a conheço do seu blog Run Baby Run (quer dizer, "só", entre aspas, porque se há coisa pessoal são estes nossos blogs!), mas é o suficiente para saber que se estivesse desagradada tinha-me dito logo ali! Com ela vinha o nosso Francisco Gaio, um super atleta de elite que vinha a fazer de vassoura neste dia.

O Francisco ao lado de um rapaz que começou agora a dar umas corridinhas :)
Comecei então a fazer o percurso em sentido contrário, até me cruzar com os 350 atletas dos 18km, desta vez na subida do Cerro da Águia. Na altura em que estava a arrumar as coisas dentro do carro os atletas já deviam estar a passar pela secção do Vasco (sim, o do Sicó!). Lembrei-me dele, da mulher Rita e a pequena Daniela que nos últimos fins de semana foram os 3 todos contentes limpar os trilhos e fiquei descansado, ali não ia falhar nada de certeza! Já tinham passado pelo David, que geria o 2º e um dos mais concorridos abastecimentos. A julgar pela foto, a coisa não correu mal!

Aqui com a simpática malta do Correr na Cidade
Quando chego ao Centro Cultural vou imediatamente descarregar as sobras do meu abastecimento para o da meta, que tinha obviamente muita procura. Vejo o Omar de microfone na mão e dezenas de pessoas por ali. Pergunto-lhe rapidamente se está a correr tudo bem, ele pensa que sim. Vou falando com alguns participantes dos 18km que já tinham chegado e todos me dizem que a prova lhes correu bem. Mas o que eu queria mesmo saber era: 1) perderam-se? 2) faltou comida nos abastecimento? 3) divertiram-se??

Abastecimento da meta (6º), que contava entre outras coisas com dezenas de bolos de pastelaria e chouriço :)
Entretanto já deviam estar a passar na Ponte D. Clemente, assim baptizada em homenagem ao seu Engenheiro/Arquitecto/Frade, o sempre simpático David Clemente, que estava responsável por aquela secção. Foi também ele o responsável pela utilização de quase metade da fita gasta (alguém notou naquela vedação a seguir à ponte?) ehehe


David Clemente
A fase seguinte incluía uma parede aos 20km gentilmente escolhida a dedo pelo Omar, que gostava muito de ter visto a ser subida! Esta era talvez a parte mais chata do percurso, com 2 ou 3km em estradão. Este desembocava finalmente num trilho aberto pelo pessoal do BTT da região que ia dar à famosa ponte que apontei como alternativa à 25 de Abril.

Aposto que houve meio-maratonistas que se arrependeram da escolha!
Estavam agora a chegar ao 5º e ultimo abastecimento no percurso, na Torre do Vigia. Este era gerido pelo humilde e incansável Joel, uma das pessoas mais voluntariosas que conheço. Era no percurso dele que estava o ultimo singletrack da prova e uma das subidas mais chatas, porque estava cheia de pedras. Depois entrariam em estradões e finalmente 500 metros de alcatrão que os levaria até à meta.

Joel
O primeiro classificado dos 30km chegou pouco tempo depois com o extraordinário tempo de 2h14 minutos! Um tempo incrível, mesmo em estrada! Assisti à sua chegada e de vários participantes enquanto entrava constantemente em contacto com os meus colegas nos abastecimentos. Um a um, foram acabando as suas funções e entregando as sobras na meta, de onde desaparecia tudo.

Entretanto, o ponto quente do trail transferira-se para outro lado: os banhos e o almoço. Não sei o que será mais difícil, organizar uma corrida para 800 pessoas ou um almoço para quase 1000! Era um ponto de honra e não podíamos de maneira nenhuma falhar ali. Prometeramos obviamente Sopa da Pedra, mas tínhamos como prenda bifanas e pampilhos, o bolo típico de Santarém. Na cozinha estava uma profissional contratada (melhor contratação da prova!) mas também voluntários e membros da equipa, como o nosso Iron Man Victor Rodrigues, que nem chegou a ver nenhum atleta equipado porque esteve das 8 às 16 enfiado na cozinha! 

Atenção, aquela coisa que se come nas Casas das Sopas com massa e couves NÃO é Sopa da Pedra!
Percorri os 500 metros que separavam o Centro Cultural dos banhos e almoço a pé e fui perguntando a toda a gente se estavam satisfeitos, se o banho tinha água quente, se a sopa estava boa, se a prova tinha corrido bem... Todos me respondiam com sorrisos! Sim, correu tudo muito bem! Alguns nem precisava de perguntar, vinham ter comigo pra dar os parabéns!

Quando cheguei ao refeitório havia uma fila razoavelmente grande, de umas 50 pessoas. Temi o pior! Pensei que o espaço era insuficiente, que não estavam a dar vazão! Mas não, haviam mesas e a comida saía a bom ritmo, simplesmente era MUITA gente! Eram 2 da tarde e não comia nada desde as 6:30, mas só me lembrei que tinha fome quando vi as bifanas em pão caseiro e a sempre saborosa Sopa da Pedra. Comi nos "bastidores" com uma companhia de excelência, o nosso padrinho Luís Mota, que me contou histórias do MIUT impressionantes o suficiente para me tirarem o sono mesmo num dia cansativo como este!

A fila entretanto foi estabilizando e finalmente reduzindo. Fui mais uma vez ao Centro Cultural, onde o David Alfaiate terminava a entrega de prémios. Confesso que esta foi a parte que correu pior. Esperámos demasiado tempo e os premiados já não estavam na zona... Provavelmente porque não temos lá grande experiência a subir a pódios :)

No Centro Cultural onde colegas de equipa e voluntários já arrumavam algumas coisas. Todos os atletas ou já se tinham ido embora ou estavam a acabar as suas refeições. Numa breve reunião entre os membros da equipa dividimo-nos por algumas tarefas. Uns foram lavar a cozinha e refeitório, outros lavaram os balneários, outros arrumaram o Centro Cultural e outros foram buscar as mesas e os caixotes do lixo espalhados pelo percurso. 

O dia acabou já ao fim da tarde. Não foi como nos filmes, com toda a gente abraçada e a fazer juras de amizade eterna. Acabámos todos completamente esgotados, drenados, cansados. Com dores nas costas, uns sem voz e outros sem paciência. Não nos lembramos de tirar uma foto de família! Nem nos apercebemos do que tínhamos acabado de fazer, na realidade! Não nos apercebemos que tínhamos criado um evento a partir do zero, para 800 pessoas. Uma equipa de 13 atletas amadores, sem qualquer experiência, a custo de muitas horas de sacrifício, tinha criado uma prova que vai ficar na memoria de muita gente que participou. Nem nos lembrámos que as nossas famílias também fizeram parte disto, quer a ajudar activamente quer pelo tempo que estiveram sem nós. Não demos imediatamente valor às dezenas de voluntários que foram incrivelmente competentes e empenhados.

Não nos lembrámos até que aterramos e olhamos para dentro. E então vimos, tinha tudo corrido bem. Não, tinha tudo corrido na perfeição. Melhor era quase impossível. Então sim, lembrámo-nos de toda a gente envolvida, de todos os participantes, de todas as entidades, de todos os patrocinadores, os vizinhos, os autarcas, os atletas da Associação 20km de Almeirim, os alunos da Escola de Alpiarça, lembrámo-nos do fabuloso Daniel e a sua incansável equipa. E eu lembrei-me dos meus colegas de equipa, os que estiveram há um ano nas reuniões iniciais e que discutiram um plano maluco de criar uma prova de trail na Lezíria Ribatejana!

Conseguimos.

Até para o ano!

terça-feira, 17 de março de 2015

4 Semanas

Faltam, a contar com esta, quatro semanas para o MIUT. Serão duas semanas de carga máxima, seguidas de uma de pouca intensidade e de uma de descanso: a da prova. Ao contrário do que é fortemente aconselhável, sou um daqueles corredores auto-medicados, ou seja, todo o meu plano de treinos é idealizado por mim com base em conversas com outros atletas e muita leitura. Claro que isto não é uma situação ideal, ainda mais quando me proponho a certos objectivos, como a prova na Madeira. Mas é o que é e tem sido assim desde que comecei a correr com mais frequência em 2011, quando completei a minha primeira Maratona. 


Quando decidi embarcar na aventura da Madeira pensava que sabia onde me estava a meter, mas a verdade é que estava longe de saber. Pensava que um treino diligente e intenso, sem azares de lesões, algumas provas/testes e muita força de vontade seriam suficientes para atravessar a ilha. No entanto, mesmo sem nunca ter pisado o solo da Madeira, estes 6 meses de preparação especifica deram-me outra perspectiva.

O treino não falhou. Trabalhei como nunca tinha trabalhado na vida para uma corrida. Quase sempre sozinho, muitas vezes no limite. Diminuí a quilometragem e aumentei brutalmente o trabalho de reforço muscular. Como disse aqui há uns tempos, não vai ser por falta de treino que não vou chegar a Machico. 

As lesões felizmente não apareceram de uma maneira muito significativa (a bater na madeira neste momento). Como sabem, houve aquele azar nos Abutres que me retirou 3 semanas de treino, mas isso está ultrapassado e compensado. Neste aspecto, culpo o reforço muscular. Tem ajudado muito também na prevenção de lesões.

As provas/testes que tinha idealizado eram os Abutres (muito técnico) e Sicó (muito longo). Se seguem o blog sabem que com maior ou menor dificuldade as superei. Não foi fácil, principalmente Sicó, mas cheguei ao fim com uma certeza: não vai ser a dureza do terreno ou a altura das montanhas que me vão parar. Vou ser lento, como sou sempre, mas vou conseguir transpor esses obstáculos. 

Quanto à força de vontade... bem, quem me conhece sabe que isso não vai ser definitivamente um problema.

Então o que mudou? Se todos os pontos estão a ser cumpridos, porque é que a cada dia que passa fico mais e mais receoso? A resposta é simples. A cada treino, prova, rampa, agachamento, série, aquecimento ou arrefecimento fico a conhecer um pouco melhor as minhas limitações. 

Não estou a ser humilde quando vos digo que apesar de estar a trabalhar com todo o empenho do mundo e de ter chegado aqui exactamente como queria, não sei se conseguirei cumprir os tempos limite. É tão simples como isso. O meu melhor pode não ser suficiente.

O MIUT é brutal. Podemos olhar para a prova de todas as perspectivas e a conclusão é sempre essa. É uma brutalidade de prova, quase desumano. A primeira barreira horária (8 horas) está situada aos 30km. Quando lá chegarmos já vamos com 2900D+, incluindo dois quilómetros verticais, e nem quero imaginar os 1300D- que de certeza não vão ser menos violentos. Para os cumprir vou ter que estar 100% focado desde o primeiro minuto. Se conseguir lá chegar antes das 8 horas, vai ser de certeza com muito pouca folga para enfrentar os próximos 30km em 7 horas. Vai ser assim até ao fim, de barreira horária em barreira horária. Não tenho qualquer problema em admitir isso, nem é modéstia da minha parte, para mim uma vitória no MIUT é chegar a Machico na madrugada de Domingo.


Até lá, vou continuar a treinar no limite e a dar tudo o que tenho. Vamos ver se será suficiente. Ah, e vou enchendo a alma com imagens destas :)


segunda-feira, 9 de março de 2015

Duas pontes - uma escolha óbvia

No dia 22 de Março há duas corridas muito diferentes mas que têm um ponto em comum: em ambas será possível passar por cima de uma ponte.



Para passar na primeira a tua corrida começará pelo menos um dia antes da prova, quando fores levantar o teu dorsal. O dia D vai começar 3 ou 4 horas antes do tiro de partida (se fores da grande Lisboa). Depois vais apanhar pelo menos um transporte público que te levará a um segundo transporte público (comboio) que, como sempre, seguirá COMPLETAMENTE sobrelotado até à outra margem do rio. Se tiveres sorte e fores madrugador, só vais demorar 1 hora a percorrer a pé os 800m que depois te separam da meta e de outros 30 mil participantes. Se tiveres azar e só chegares algumas horas antes à outra margem, corres o risco de passar a meta e já estarem a desmontar o pórtico.

Para a segunda, se morares na grande Lisboa, sairás no teu carro cerca de uma hora antes da partida, estacionarás num dos parques sinalizados pela organização. Vais levantar o teu dorsal descansado e a tempo de voltares ao carro para te equipares com os teus amigos para depois te juntares aos cerca de 700 atletas que estão inscritos.

Quando for dado o tiro de partida na primeira vais começar logo por passar por cima da ponte. Quer dizer, "logo" é uma maneira de dizer, porque primeiro vão ter que escoar pelo menos 30 mil atletas. Provavelmente só vais conseguir correr largos minutos depois da hora marcada. 

Depois de passar na primeira vais percorrer o mesmo percurso duas vezes, numa estrada que serve de palco a pelo menos uma dezena de provas. Na segunda vais passar num percurso imaginado e executado por uma dúzia de atletas amadores que tudo farão para que se divirtam em casa deles. Os mesmos atletas que abriram a punho cada um dos trilhos e caminhos que vais pisar.

Na primeira vais ouvir falar de um grupo de atletas de elite, mas não os vais ver. Na segunda vais poder partir ao lado da elite nacional do trail, junto a atletas como o Luís Mota e a Carmen Pires. Vais poder falar com eles e certamente ser retribuído com um sorriso.

No fim de passares por baixo do pórtico da primeira vais-te juntar a milhares e milhares de atletas suados que seguirão em cima uns dos outros durante algumas centenas de metros até receberem um calipo meio derretido. Na segunda, assim que terminares terás à tua disposição banhos quentes e a Sopa da Pedra que quiseres. Poderás comê-la descansado enquanto conversas com os teus amigos sobre a aventura vivida. Ao mesmo tempo, alguém está a entrar num transporte público para voltar a casa, onde chegará um par de horas depois. Isto se tiver passado por cima da primeira ponte.

Eu sei qual a ponte que vou passar no dia 22 de Março. E vocês? Ainda têm dúvidas?

Inscreve-te aqui.




domingo, 1 de março de 2015

Terras de Sicó (111KM) - ULTRA a sério!

Assim que saí do ultimo abastecimento, a 11km da meta, comecei com uma contagem decrescente. Não de quilómetros, mas de metros! Cada passo em frente ouvia uma voz no cérebro a dizer "já chega Filipe, não vês que estás desfeito? Não aguentas, já chega...". Olhava 10 vezes por minuto para o relógio e a porcaria dos metros não passavam. Quando tentava correr era uma dor agonizante nas articulações dos pés que eu forçava até ao limite, até ceder e voltar a andar. Não me lembro se foram 11km a subir, a descer ou em plano, já era tudo igual. O que eu sei é que se aumentassem 100m àqueles 11km era como se me apresentassem uma nova ultra pela frente.
Há aquele pessoal que diz que anda à procura dos seus limites. Não sei, não gosto muito de frases feitas. Mas uma coisa é certa, a palavra "limite" adquiriu um novo significado durante as mais de 18 horas que andei pela Serra de Sicó.

Cartaz oficial da prova
Tinha tirado a sexta-feira de férias, e com a miúda na creche consegui dormir bastante, relaxar em casa e preparar tudo calmamente para a aventura. É engraçado, por várias vezes pensei para mim mesmo "o dia não acaba sem antes fazer 111km!" mas sinceramente ainda me parecia um bocado irreal, como se ainda não me tivesse apercebido da epopeia que me esperava mais logo à noite, o que até nem foi mau já que andei muito pouco ansioso durante o dia. 

Chegámos a Condeixa às 18h e fomos levantar o dorsal, processo que decorreu normalmente. Volto para o carro e mostro o dorsal à Sara: "Hãn?? Esse é mesmo o teu número??" ahahah nem me tinha apercebido!

A sério que não foi de propósito!! :D
Como já por aqui disse, tento sempre aliar às provas que vou fazendo um programa familiar. Desta vez encontrámos uma casa para alugar em Casmilo, local de passagem da prova e a cerca de 8km de Condeixa. Uma casa super confortável que aconselho a toda a gente que esteja a pensar fazer uma escapada de fim de semana! Foi lá que jantámos calmamente os três e ainda tive tempo para descansar um pouco na cama até às 23h. Era hora de rumar a Condeixa!

A "nossa" casa. A miúda não fazia parte da mobília.
Estava um ambiente espectacular na praça da meta, parecia quase aqueles arraias de verão, nas festas da cidade. Eram centenas de pessoas a apoiar, não sei se familiares ou habitantes de Condeixa, mas em número como nunca tinha visto numa prova de trail! Rapidamente encontrei os meus colegas de equipa. Era altura de me despedir da Sara e da Maria Amélia e juntar-me aos outros cerca de 260 atletas que já tinham feito o controlo zero. 

David (em 1º plano), eu, Omar, Joel, Vasco e Jorge
A ansiedade e o nervosismo eram palpáveis. Risos nervosos, ultimas verificações quase maníacas do material, algumas fotos de grupo, incentivos aos amigos, despedidas de familiares... Toda a gente que anda nisto já sentiu o que são aqueles últimos minutos antes da partida, é incrível! Nesta altura tive um breve momento de introspecção e comecei a pensar na aventura brutal que cada um de nós ia enfrentar. Como cada uma daquelas almas viveria nas próximas horas, quem conseguiria e quem sucumbiria, os pensamentos que passariam pela cabeça de cada um e a maneira como aquele desafio lhes toldaria a vida. 

Bem, lamechices à parte, vamos lá a isto!


Depois da partida percorremos cerca de 5km ainda dentro de Condeixa. Notava-se o respeito que todos tinham pelos 111km, já que não se viam muitos dos habituais aviões que gostam de bater recordes pessoais de velocidade nestes primeiros quilómetros. Muito pelo contrário, todos iam muito descontraídos e bem dispostos. 

O percurso podia ser dividido em duas partes, com uma passagem aos 50km pelo ponto de partida. Mas não era só no papel que as duas partes eram distintas, iríamos perceber, e bem, no terreno. Quase como se fossem duas corridas diferentes!


Com a primeira subida, aos 6km, apareceu também um inimigo que nos iria acompanhar até ao fim: a chuva. Não era a chuva grossa dos Abutres, mas antes uma chuvinha molha parvos acompanhada por um nevoeiro denso que não nos largaria nunca mais. Estas condições podem parecer até óptimas para a corrida, mas sendo esta uma prova que duraria muitas horas, temos que nos lembrar de certas condicionantes. Primeiro nunca consegui sentir-me confortável, a chuva não era grossa mas era forte o suficiente para nunca me sentir seco. Segundo e mais importante ainda, era o nevoeiro. Durante cerca de 90% do percurso não conseguíamos ver mais que 50 metros à nossa volta. Agora imaginem o que é correr durante mais de 18 horas e só conseguem ver o trilho, estradão ou estrada à vossa frente! Nada de paisagens brutais, nada de distracções, só o caminho à vossa frente. Psicologicamente foi terrível!

Antes de chegarmos ao primeiro abastecimento, aos 10km, tive o meu momento "Calma Lá Oh Artista, e Mete-te No Teu Lugar!". Um senhor mais velho meteu conversa comigo e começou a falar-me do antigo circuito nacional de montanha, e de como estas provas eram diferentes há 30, 35 anos. Elah, 35 anos?? Nem era nascido ainda! Pois bem, o senhor tinha 64 anos, estava a fazer os 111km e tinha no currículo pequenas provas como as 100 milhas Ehunmilak, no país Basco!

O primeiro abastecimento apareceu depois de umas subidas +/- difíceis e uma descida complicada, mas vim sempre a resguardar-me e sentia-me super bem. Quando percebi que o abastecimento estava ali em baixo pensei logo que não valeria a pena parar ou então só comia uma bananita. Isto pensei eu, até ver o banquete que nos esperava! Bem, não há palavras para descrever os abastecimentos desta prova! Nunca vi nada parecido! Mas quanto a isso, falaremos à medida que formos avançando. Digo-vos apenas que estava a pensar comer apenas uma banana e acabei por comer pão caseiro com presunto e queijo fresco! :)

Depois do abastecimento surgiu a primeira de algumas subidas mais agressivas, daquelas de fazer os gémeos entrar em combustão. Felizmente não se prolongou durante muito tempo e ainda não seria esta a deixar marcas. O percurso nesta primeira parte seguia bastante acessível. Algumas, poucas, subidas, alguns trilhos bons de correr e alguns, muitos, estradões. 

O segundo abastecimento surgiu aos 16km. Outra das características desta corrida era o perfeito posicionamento dos abastecimentos. Nunca estavam a mais de 10km e muitas vezes a distancia até era menor. Estamos a falar de 11 abastecimentos MUITO completos! Por exemplo, neste segundo (e reforço, segundo) aos 16km comi uma bifana quentinha super saborosa! 

Não, não era um casamento. Era um abastecimento à Sicó!
Na chegada a Penela, onde estava o terceiro abastecimento, encontrei os meus amigos Omar e Joel. Tinham passado por algumas dificuldades (principalmente o Omar, que vomitou algumas vezes) e estavam a aproveitar o abastecimento para se recomporem. Juntaram-se a mim, ao David e ao Jorge e seguimos por alguns quilómetros os 5. 

Os 20km que se seguiram até à Base de Vida, em Penela, foram a minha melhor fase na prova. Sentia-me muito bem e o desconforto intestinal tinha sido resolvido numa casa de banho de um abastecimento. Sim, usei uma sanita num trail, espero não ser penalizado por isso! O Omar, já restabelecido, começou a aumentar o passo (normalmente ele é muito mais forte que eu) e eu fui acompanhando. Ficámos os dois sozinhos e assim seguimos até ao fim. Não tive medo de estar a abusar porque não me sentia a fazer esforço nenhum! A chuva até tinha abrandado e só sentia frio imediatamente após os abastecimentos, onde me estava a demorar sempre um bocadinho de mais, viria a perceber depois.

Ah, pequeno aparte, no abastecimento dos 40km existia nada mais nada menos que Sopa da Pedra!! ahaha Não tive coragem de comer, mas deixo aqui um louvor à organização! Fiquei-me por uma taça de arroz doce :)

Chegámos ao Pavilhão de Condeixa, à Base de Vida (53km), local onde estava o primeiro saco com muda de roupa, com 6h50, um pouco antes do nascer do sol. Ainda bem, estava muito saturado de correr à noite e o frontal aleijava-me na testa e nas orelhas. Não troquei de roupa nem de sapatilhas, mas decidi demorar-me bastante tempo. Sentei-me, estiquei as pernas, conversei com quem lá estava... Estive perto de meia hora no pavilhão, muitíssimo tempo. Mas era por uma boa causa! Certo..?

Não sei... Algo de estranho se estava a passar. O descanso, em vez de me dar energia, estava a ter o efeito precisamente contrário. O sorriso que trazia à entrada do pavilhão tinha desaparecido e comecei a sentir-me muito desconfortável. Decidi arrancar um pouco à frente do Omar para o abastecimento, que ficava numa escola a 200m do pavilhão. Eram 7:20 da manhã e o dia já tinha nascido, talvez o sol e a visão da manhã me dessem alento. 

Assim que saio do pavilhão foi como se me tivesse caído uma bigorna em cima. O dia que eu pensava que tinha clareado era afinal cinzentão. Uma rajada de vento frio gela-me e empurra a chuva que era agora muito mais forte que há pouco. Foram 200 metros completamente desanimado até chegar à cantina da escola, onde havia massa à bolonhesa para comer. Quando lá entrei até estava atordoado. Não tinha fome, sentia-me pesado, triste, desanimado. Como é possível uma mudança tão radical desde que entrei até que saí do pavilhão? Sentei-me numa mesa sem comer nada à espera do Omar. Ele chegou e comeu um prato de massa. Eu pedi o mesmo mas não consegui comer nada. Ficámos ali mais 10 minutos e eu a afundar-me cada vez mais. Vesti o impermeável e fiz-me ao caminho.

Ia começar a segunda parte da prova. Agora era a sério.

Foi assim, fisicamente bem mas psicologicamente de rastos, que percorri um dos trilhos mais espectaculares de todo o percurso, logo à saída de Condeixa. Muito técnico, a fazer lembrar a loucura dos Abutres (sem a lama), junto a um ribeiro de águas cristalinas e uma cascata daqueles que só se vêem nos postais! 


Nesta altura comecei a ficar preocupado. Enquanto percorria este trilho ouvia tudo quase como se fosse um eco e a minha visão estava sempre a tremer. Sentia uma dormência nos lábios e temi não conseguir continuar. O Omar perguntava-me se estava bem, respondia-lhe que me estava a ir abaixo. Pedi-lhe para ele seguir sozinho (algo que repeti 675 vezes aproximadamente durante a prova), que precisava de estabilizar. Ele insistia em esperar por mim e ir ao meu ritmo. Felizmente, mais uma vez o abastecimento não tardou e pude sentar-me um pouco enquanto comia uma sopa quente. As tonturas passaram, mas o mal estar insistia em ficar.

Se os 20km até ao pavilhão de Condeixa foram a minha melhor fase, os 20 que se seguiram foram de longe a pior. Falava com o Omar das famosas mortes e renascimentos que acontecem nas ultras, como tanto eu como ele já tínhamos passado por isso. Foi a essa esperança de segunda vida que me agarrei com todas as forças, mas ela estava a tardar em surgir. 

A tal chuva molha-parvos acompanhada de nevoeiro nunca deu tréguas, o que aumentava o desconforto e enlameava os trilhos. Não calamiticamente como nos Abutres, mas o suficiente para dificultar as subidas mais inclinadas. O percurso variava entre estradões longos e trilhos muito interessantes. Quanto à paisagem: zero. Praticamente não dei por ela. No fim de uma grande subida ouvia as eólicas com o seu barulho característico, sabia que provavelmente ali existia daquelas vistas de encher a alma, mas eu só via 50 metros de estradão à frente. Era quase como se corrêssemos de palas, muito muito desgastante! 

Um exemplo da vista que tínhamos. Ah, e reparem no colega lá em baixo a subir de gatas!
Os 70km coincidiram com a subida ao ponto mais alto do percurso, com 500m. Depois de alguns quilómetros a subir tínhamos agora um estradão ligeiramente a descer pela frente. 

"Vamos a isso", disse para o Omar. 

Começámos a correr.

Corremos até uma grande e divertida descida por um trilho inclinado e técnico que serpenteava pela encosta. Fizemos a descida sempre a correr até desembocar em novo trilho plano onde continuámos a ... correr! 

Algo estava a mudar. O Omar disse-me que estava com melhor cara e a verdade é que estava a começar a sentir-me bem! Conversávamos e riamos, falávamos dos trilhos e da vida em vez de mortes de renascimentos. Foi assim com este espírito que cheguei ao abastecimento de Degracias, aos 74km. Assim que começo a descer a rua para o abastecimento vi o tónico que me faltava para me trazer de novo para o mundo dos vivos: a Sara e a Mel!

Nota-se muito que fiquei contente por as ver? :)
Fartei-me de comer neste abastecimento, que mais uma vez era completíssimo! Insisti no pão caseiro com presunto e queijo fresco, que era o que me sabia melhor, mas variedade não faltava. 

Normalmente não gosto nada que esperem por mim, percebo que me querem ajudar, mas a verdade é que não gosto de pensar que estou a empatar alguém nem de me sentir pressionado a aumentar o meu ritmo. Depois dos 53km, quando eu fui abaixo, o Omar sentiu a necessidade de não me abandonar. Sei que ele podia bem ter feito pelo menos hora e meia a menos do que fez. O que me impressiona mais no Omar é que apesar de ter um potencial brutal (de certeza que vai andar lá na frente muito em breve) para ele há sempre valores mais altos que se levantam. Ajudar os amigos é um deles. Obrigado por isso Omar!

No abastecimento de Degracias
Seguimos novamente juntos e com um andamento confortável até entrar no Vale do Poio. Quando começámos a descer para o vale olhámos para a outra encosta e vemos um grupo a correr num estradão. Nãooo, pensámos nós, de certeza que já ali passámos! Se numa prova de estrada já chateiam os retornos, imaginem num trail! Começamos a correr num estradão muuuuuito chato, ligeiramente a subir que nunca mais acabava. Foram 3 ou 4 quilómetros ali, na base do vale, com metros e metros de estradão pela frente. Assim que inclinava um bocadinho começava logo a andar! O Vale do Poio estava a tornar-se uma valente poia até que vemos uma placa a dizer "Trilho do Poio" a entrar pra dentro das árvores. Trilho? Pronto, menos maus, vamos a isso!

Parecia que nos tinham dado um doce, desatámos logo a correr pelo trilho! Foi dos que gostei mais do percurso. Perfeitamente corrível, sempre aos ésses no meio de uma vegetação muito densa que até nos cobria a cabeça! Andámos naquele paraíso cerca de 1.5km até que saímos da vegetação e damos de caras com a zona mais impressionante da prova: o Canhão do Poio.


As fotos não lhe fazem justiça, muito menos print screens de uma filmagem que fiz com a go pro, mas era uma espécie de Grand Canyon. Duas grandes escarpas que se erguiam à esquerda e à direita e nós ali a andar num trilhozinho na base de uma delas! Ainda por cima o tempo ajudou e até abriu nesta altura! Fez-me pensar novamente na monotonia que é correr com nevoeiro, ter o privilégio de ver estas coisas ajuda muito. 

O posto de abastecimento de Poios, no fim do Canhão, situava-se ao quilómetro 83. Antes de lá chegarmos devemos ter passado por um carro dos bombeiros. Digo "devemos" porque eram tantos ao longo do percurso que a probabilidade de fazer 5km sem ver bombeiros era muito pequena! Impressionante, é o que me ocorre dizer! Eram centenas de bombeiros sempre com carros e ambulâncias. Nunca estive numa prova assim. 

Comi uma canja no posto de Poios (havia comida quente em praticamente todos os postos) e segui caminho, sempre com o Omar. Continuava a sentir-me bastante bem, mas naturalmente desgastado pelos muitos quilómetros que levávamos nas pernas. Principalmente os pés, que estavam cada vez mais doridos. Decidi fazer a prova toda com as minhas Salomon velhinhas o que pode ter sido um erro, mas não tinha confiança nenhuma nas Skechers. Infelizmente, penso que desta é que foram para melhor :(

Já não é só a malha exterior, já tem mesmo buracos :(
A segunda Base de Vida era em Tapéus, aos 93km. Aqui podíamos mudar novamente de roupa. Mas o que é que interessa mesmo em Tapéus? A mudança de roupa? Os massagistas que lá estavam? A assistência de bombeiros? Não, nada disso. Em Tapéus o que interessa reter é que havia leitão para comer!!! ahahah Sinceramente, nunca vi nada assim. Até comentei com o Omar que ao contrário de todas as provas, nesta ia acabar com mais peso em vez de perder!

Saímos de Tapéus para enfrentar a ultima subida antes da meta. seriam cerca de 7km até Casmilo, onde estava situado o ultimo abastecimento. Foi neste percurso que terminou o meu estado de graça. Desta vez já não era nada psicológico, nem tonturas ou tremores. Estava pura e simplesmente esgotado!

Infelizmente era este o meu estado quando, a meio do trajecto, atingimos a marca dos 100km! 


Porra, são 100km, foi a primeira vez! Que se lixe o cansaço e a porcaria da saturação, deste momento nunca mais nos esquecemos!!


Antes de Casmilo passámos por uma das zonas mais técnicas do dia, o Trilho das Buracas. As Buracas são uma formação geológica muito interessantes nas escarpas daquelas montanhas. Segundo percebi, eram antigas salas de grutas que ficaram a descobertos depois do desabamento de algumas encostas. O trilho era muito dificil e a progressão lentíssima. Fizemos as contas e demorámos 50 minutos a percorrer 5km!

Buracas de Casmilo
Chegados a Casmilo tínhamos tinha mais uma vez à minha espera a Sara e a Maria Amélia! Infelizmente, a primeira coisa que ela nos diz é que o nosso colega de equipaVasco estava na ambulância a receber assistência médica! Tinha-se sentido mal e vomitado. Lembram-se da Sopa da Pedra? Pois, o amigo Vasco achou por bem comer! ahah Fomos logo a correr para a ambulância onde estava o Vasco embrulhado numa manta térmica a receber assistência com uma cara chateada. 

Atão pah, vais ficar por aqui?

Perguntei eu.

A médica vira-se para mim e abana a cabeça a dizer que sim.

Ao que o Vasco responde:

Hãn? Nem pensar, isto é pra acabar! ahaha

Depois de alguma negociação com a médica, lá ficou decidido que iríamos os três juntos até ao fim! Ele ficou na ambulância a aquecer um pouco enquanto eu e o Omar fomos comer. Nada mais nada menos que caldo verde e uma bifana! 

Os três e a ambulância!
O Vasco rapidamente se apressou em dizer para nós seguirmos sozinhos, que ele não se importava de ir atrás porque estava mais lento. Mas eu sabia que tinha estoirado há algum tempo e que iria ser eu a fazer de âncora. E assim foi.

Voltámos ao inicio deste post. Estes 11km foram os mais difíceis dos 116. Começou com cerca de 2km sempre a descer por um trilho corrivel e bastante divertido. Percorri-o a correr, com dentes serrados e dores horríveis a cada passada. Quando acabava a descida e começava a subida era um sacrifício voltar a apoiar-me nos bastões, os braços estavam super doridos. Os pés, mais uma vez, eram o pior de tudo! Não a nível de bolhas, mas as articulações no tornozelo latejavam. A somar a isto tudo estava completamente drenado de energia e muito saturado de ali estar.

Mas já faltava tão pouco...

O Vasco e o Omar estavam a ganhar nova vida com o aproximar da meta e eu só os puxava para trás. Sentia-me pior que nunca por os estar a prender, mas simplesmente não tinha mais nada para dar!

A cerca de 500 metros da meta disse-lhes: pronto, vamos a isso.  


A uns metros do pórtico estava a Sara e a Mel, que puxei para o meu colo antes de passar a meta. Que ela fique orgulhosa do pai daqui a uns anos, é a única coisa que eu quero. 

Dizem que se vive uma vida cada vez que se corre uma ultra. Esta, vivi-a com o Vasco e principalmente com o Omar. Dei-lhes um abraço sentido no fim e digo-lhes agora que nunca me vou esquecer desta ultra aventura. Obrigado aos dois! Obrigado também à minha super mulher Sara, que percorre o que for preciso para me apoiar em todas estas doideiras. 


Quantos aos ensinamentos desta prova de como vai influenciar a minha preparação para o MIUT... Bem, falamos disso noutra altura. Agora vou ali comer o queijinho curado que ofereceram no fim e continuar a aproveitar esta nuvem de endorfinas onde me encontro a flutuar no preciso momento :)