As minhas corridas na estrada

quinta-feira, 28 de maio de 2015

POSTÓPICOS I

O Conan O'Brien no programa dele, entre o monólogo e as entrevistas, costuma introduzir os sketchs que faz com: "and now, a new segment called (...)". Inspirado por ele, decidi criar um novo segmento do Quarenta e Dois, a que decidi chamar: POSTÓPICOS!!

Não, não é uma criança de 4 anos a dizer que vai passar umas férias nas Caraíbas. Trata-se de um post com vários tópicos. O nome junta post com tópicos.

Eu sei, brilhante.

Ora então aqui vamos nós para a primeira edição!

1 - O que foi e o que para aí vem.

2015 tem sido um ano DO CARAÇAS (reparem que além de estar em maiúsculas ainda pus a palavra em negrito e itálico, por isso estou mesmo a falar a sério). 

Começou com um combate quase mortal, onde só faltou o fatality, nos Abutres, depois fui cilindrado na Serra de Sicó, levei um bailinho na Madeira e por fim gratinei no forno de Portalegre. Dito desta maneira parece que andei 6 meses a levar porrada.  Bem, de certa forma é verdade, MAS tive um prazer brutal em terminar estes quatro desafios!

As três provas acima de 100km em dois meses obviamente deixaram mossa, por isso decidi abrandar neste inicio de 2º semestre. Aqui está o calendário do que já está confirmado:

14 de Junho - Grande Trail das Lavadeiras (42km) - Desde que a Anabela do Run Baby Run fez um post com o cartaz do ano passado fiquei muito curioso com esta prova, e depois do João Marques me ter convidado a estar presente não pensei duas vezes. 

20 de Junho - Louzan Trail (45km) - A Lousã é brutal - ponto assente. Qualquer prova na Lousã tem potencial para ser brutal, e esta teve os maiores elogios o ano passado. Os 45km têm 3500D+ o que me deixa um pouco de pé atrás. Não pela dificuldade, mas apetecia-me ir curtir os trilhos da Lousã e parece-me que vou andar de focinho o chão muito tempo!

1 de Agosto - Ultra Trail Nocturno de Óbidos (50km) - Foi muito bom o ano passado + perto de casa = repetição!

27 de Setembro - Grande Trail Serra d'Arga (53km) - Não precisa de explicações. A presença na Zegama Portuguesa tem que ser obrigatória e vai ser este ano a minha estreia.

16 de Outubro - UTAX (110km) - O ultimo mega desafio do ano. A seguir à Madeira e Freita é de certeza a prova mais assustadora em Portugal e tem tudo para ser épico. Que chegue lá incólume de lesões é o que peço!

Por enquanto é isto. Claro que pelo meio vão aparecer mais umas quantas. Estou de olho no Mondego Ultra Trail, no Trail de Pampilhosa, numa possível repetição do Monte da Lua.... bem, logo se vê.


De seguida vou introduzir um sub-segmento no segmento POSTÓPICOS.

Toda a gente sabe que o Facebook é o Centro Mundial dos Indignados. Eu sou um confesso consumidor do Facebook, não tenho vergonha de o admitir. Já passei por algumas indignações, já fiquei indignado com os indignados e até já fiquei indignado com quem fica indignado com os indignados. Este post é dedicado a todos os Indignados do Facebook e é inspirado no "what grinds my gears", do Peter Grifin (sim, vejo TV a mais). Abordarei um foco de indignação recente e darei a minha opinião.

Bem vindos ao:

2 - Parece que há uma data de gente irritada com:

Uma prova que houve no ultimo fim de semana, na qual faltou água nos abastecimentos. 

Quanto a isso, tenho a dizer: WTF?!?!

Não pode acontecer!! Isso é pior do que tudo!! Parece que enquanto houve ainda chegaram a dizer ao pessoal para não beber tudo, ver se chegava para os próximos. WTF?!?!?! 

"Ah e tal, mas eles até são simpáticos e esforçados e tal..." NÃO! Para mim é simples, uma falha destas significa um falhanço total da prova. 

Pufff..vou beber um copo de água que tou irritado.


3 - Rábassado.

Toda a gente já teve assaduras enquanto corre. Numa ultra ou numa prova que dure muitas horas, é raro quem chega ao fim incólume. Virilhas, costas, braços... Enfim, todos passámos por isso.

Há, no entanto, uma assadura que tenho sem excepções em todas as provas longas que faço e que parece um tabu entre os corredores. 

Falo de uma assadura no....bem...como dizer....perdoem-me o francês, mas não me lembro de outro nome: rego do cú.

Em conversa com o meu companheiro de aventuras João Pedro, que também fez o MIUT, apercebi-me que não sou o único a sofrer deste flagelo que se manifesta principalmente no banho pós-prova. Atribuo esta maleita a uma necessidade de qualquer ultra: o peido corrido. Neste caso o ultra peido corrido (quem nunca se peidou numa corrida que diga o primeiro BLHÉK). 

Escrevo-vos na esperança de que todos vós que sofrem de rábassado deixem de ter vergonha quando, no balneário, fizerem "ffffffffff" quando a água chega lá.

Ouvi dizer que a Menina e o Perneta estavam a fazer um concurso de fotos mete-nojo, este é o meu contributo.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Ultra Trail de São Mamede - 100km

Na subida para o abastecimento dos 80km passei por alguém que, ao ver a minha t-shirt do MIUT, me disse "então, essa que tens ao peito é que foi difícil, esta é fácil!". Depois de resistir a um primeiro impulso de lhe mandar com os bastões no lombo, respondi-lhe: "não há provas fáceis!".

Foi no dia 30 de Dezembro de 2014 que me inscrevi. Cinco meses e meio antes da prova decidi que esta seria a terceira vez que tentaria correr acima dos 100km no espaço de dois meses. Ao contrário do que digo no parágrafo que inicia este texto, há um sitio onde as provas são fáceis: sentadinho ao computador, em casa. É tão fácil!

Mas não, não foi fácil, foi muito duro. Cem quilómetros nunca hão-de ser fáceis. Cem quilómetros com temperaturas que variaram de manhã de Novembro a tarde de Agosto, numa terra seca que levanta um pó fino a cada passo, com um vento fortíssimo durante a noite que criou uma névoa sempre presente desse mesmo pó, não foi fácil, muito pelo contrário.

Mas comecemos pelo inicio.


A meu lado, sentados na relva do Estádio dos Assentos em Portalegre, estavam o Joel e o David, colegas da Associação 20km de Almeirim. Os três nervosos, cada um com os seus motivos, fizemos ultimas verificações ao material entre sorrisos ansiosos. O ambiente era verdadeiramente brutal e correspondia às expectativas. Eram mais de 500 atletas perfilados para a grande aventura. Os espectadores, apoiantes e familiares duplicavam ou triplicavam esse número. Até aqui tudo tinha sido perfeito, desde o levantamento dos dorsais, à entrega do saco com a troca de roupa até ao rigoroso QB controlo zero. 

No palco ouvem-se os primeiros acordes de Maria, a música de Xutos que daria inicio à corrida. Foi entre guitarras distorcidas, aplausos, gritos, muitos sorrisos e uma adrenalina quase palpável que há meia noite passámos por baixo do pórtico! Fora do estádio um corredor humano com uns 300 metros embalou-nos para a empreitada brutal que nos esperava. Que início!

Três quintos dos A20KM presentes.
A previsão era de muito calor, mas a organização avisou-nos para a noite que podia ser bastante fresca. Parti com uma camisola e tshirt, mais um buff no pescoço e outro na cabeça. Na mala o corta vento e as luvas, que ganharam lugar cativo em todas as provas que faço. A noite realmente estava fresca, mas o pior era o vento fortíssimo que levantava um pó muito fino. De repente lembrei-me do Super Bock Super Rock no Meco, onde tínhamos que andar com aquelas máscaras anti-poeira. Dei uma nova utilização  ao buff do pescoço e pu-lo a tapar a boca e o nariz. Corri várias horas assim. 

Foram bastante tranquilos e rolantes, os primeiros 17km até Alegrete, onde estava situado o segundo Posto de Abastecimento e Controlo (PAC). O percurso era coerente. Com alguns trilhos, muito estradão, e passagem por muito pouco asfalto em certas ligações. Foi assim até ao final. É verdade, era maioritariamente estradão, mas quem vai ao UTSM não está à espera de encontrar os trilhos da Lousã, por exemplo. Já defendi aqui várias vezes que, apesar de gostar mais de correr em trilhos, não é por correr em estradão que acho um percurso de menos valor. Cada prova tem a sua personalidade, e o percurso de São Mamede faz sentido assim desta maneira. 

A chegada ao PAC2 coincidiu com o primeiro castelo conquistado, na pequena vila de Alegrete. Já dentro da muralha, ruas estreitas, muito arranjadas e bem iluminadas levaram-nos até uma praça central repleta de gente a apoiar. Falava da personalidade de São Mamede, e também passa muito por este orgulho visível que as pessoas têm em mostrar a sua terra. Em todo o lado foi assim!



Cheguei aos 17km em muito boas condições e agradado com o ritmo médio que levava até aqui. Nunca tinha levado esta informação no relógio, mas experimentei depois de ler o post do Paulo Pires e confesso que achei motivador. No entanto, estes tinham sido os quilómetros de aquecimento, íamos finalmente entrar no Pente de São Mamede, nome pelo qual é conhecido este bonito perfil de altimetria:

Lindo.
Os 13km seguintes seriam quase sempre a subir, até ao topo da Serra de São Mamede, nos 1025 metros de cota. A subida não foi tão agressiva como seria de pensar ao olhar para o perfil, mas apanhámos alguns troços bastante agressivos, no que julgo ser uma pista de downhill. No UTSM as subidas nunca são longas de mais, e quase sempre são intercaladas com troços bons para correr.

Sentia-me bem a subir e os músculos pareciam frescos. Abrandei algumas vezes quando começava a ficar entusiasmado, à cabeça vinham-me os primeiros 30km do MIUT que praticamente acabaram comigo. Nos troços mais inclinados aplicava o conselho do Luís Mota e seguia com passos muito curtos, sem nunca parar. Parti para esta prova com a mesma estratégia de todas as ultras que faço: tentar controlar ao máximo e gerir o esforço para sofrer o menos possível. Mas secretamente tinha outro objectivo, queria chegar ao fim sem entrar em modo Walking Dead. 

Quase a chegar ao topo o vento era inacreditável. A noite era de lua nova, muito escura. A luz das estrelas, apesar de quase rivalizar com a dos nossos frontais, não era o suficiente para fazer perceber se estávamos ou não no meio de floresta, mas isso era logo perceptível quando apanhávamos rajadas de vento que nos faziam andar de lado. Houve alturas que tive dificuldades em bastonar porque o vento empurrava os bastões! 

A chegada ao topo, nos 30km, foi às 4 da manhã. Tenho muita pena de ter feito esta parte do percurso de noite, mas se calhar teria mais pena de fazer esta subida com 80km nas pernas :)


Como previsível, ali tão alto a temperatura baixou muito. Ouvi dizer que andou entre os 4 e 5ºC e sentia-se bem na pele. Quis demorar-me o menos possível no abastecimento, com medo de arrefecer, e trinquei qualquer coisa rapidamente antes de atacar a descida. Quando saí senti as mãos geladas e um certo desconforto, mas adiei a decisão de vestir mais roupa por uns minutos, tinha quase a certeza que a descida não seria violenta e conseguiria aquecer. Foi a decisão certa.

Um pequeno aparte: gostaria de reforçar, meus caros leitores, que nesta parte do texto me estou a queixar de temperaturas BAIXAS. Era só isso, vamos continuar.

Seguia-se um troço de 9km quase sempre a descer até ao próximo abastecimento. Como tinha pensado, não foi muito difícil. Maioritariamente estradões com muita pedra e trilhos largos, pelo menos nos primeiros 7km, até entrarmos numa descida muito acentuada e bastante técnica.

No inicio da semana anterior à prova torci o pé no trabalho. Daquelas torções feias que até fazem TREC! Como foi logo na segunda feira, não corri mais até ao dia da corrida. Muito gelo e voltaren depois, cheguei a sexta feira sem dores. No entanto, há alguns quilómetros que sentia uma pequena impressão que apesar de não me doer deixava-me com pouca segurança e fui sempre a defender-me. Foi nesta descida mais difícil que me desconcentrei momentaneamente e TAU, mama lá com um pé torcido! Cinco asneiras, três uffffffs e 200 metros a usar os bastões como moletas a dor lá foi atenuando e quando aqueceu já conseguia correr novamente. Tinha consciência que o mal estava feito e fiquei ainda com menos segurança, mas decidi continuar com reforçada concentração.

Ouch!
Cheguei ao abastecimento de São Julião, aos 39km, com bastante fome. Felizmente este era dos abastecimento mais bem apetrechados e comi umas bifanas, a juntar à habitual banana e alguns salgados. Uma voluntária ainda me deu um pouco de pomada anti-inflamatória que espalhei no tornozelo e no pé. Estava fino e pronto para enfrentar o petisco seguinte.

Eram cinco da manhã e estava prestes a entrar naquela que para mim é a parte mais terrível de uma ultra - o nascer do dia. Nas outras duas experiências que tive as horas que se seguiram ao nascer do sol foram devastadoras e quase ditaram a minha derrota. Desta vez ia apanhar o clarear a meio da subida de 550 metros verticais que em 5km nos levariam de volta aos 1000 metros de altitude. Bebi um grande copo de café quente no abastecimento e ataquei a subida com confiança. 

Esta terá sido das mais complicadas do percurso, mas nada de transcendente. Subíamos na face oeste da montanha e por isso ainda sem conseguir ver os primeiros raios de luz. Assim que a dobramos começa um dos espectáculos mais brutais que já tive oportunidade de assistir. 

A Serra de São Mamede é uma espécie de oásis no meio da planície alentejana. No topo, num dia de céu limpo como aquele que apanhámos, o horizonte prolonga-se por quilómetros e quilómetros de terreno plano. Lá bem ao fundo via-se o céu vermelho e uma pontinha do sol que haveria de nascer dali a pouco. Do outro lado, o da serra, o sol rasteiro iluminava algumas montanhas cobertas de verde, o que provocava um contraste fabuloso entre montanhas escuras e outras verdes já "acesas". Foi por acaso que cheguei àquele ponto àquela hora, mas se soubesse o que ia apanhar tinha andado stressado os primeiros 40km para não perder aquele espectáculo. O terreno ajudava, ligeiramente a descer por trilhos e estradões fáceis de correr. Saquei da Go Pro e tirei as únicas imagens de toda a corrida.



Por volta do quilómetro 45, pouco antes do quinto abastecimento, começamos a ver lá ao fundo o Castelo de Marvão. Era lá o sexto abastecimento (60km) e simultâneamente a partida para o Trail Longo de São Mamede, onde estavam alguns amigos. No inicio da corrida defini o objectivo de chegar lá antes das 9 para os cumprimentar. Naquela altura ia bem dentro do objectivo e com o castelo à vista cheguei a pensar que estava garantido, mas, perguntem aos Mouros, conquistar um castelo nunca foi nem nunca será fácil!

Marvão. Reparem na planície que vos falava.
Chegado ao quinto abastecimento estava novamente com fome e o efeito nascer do sol já tinha passado. Comi uma bifana quentinha e bastante saborosa antes de atacar a tortuosa jornada da conquista de Marvão, mas sentia o sono a atacar e o corpo a querer desligar. Já tinha passado por isto e de repente voltaram os receios de uma morte anunciada. Depois da Madeira investiguei um pouco sobre isso e cheguei à conclusão que há mais gente a passar pelo mesmo, e foi-me aconselhado um produto da Gold Nutrition. Uma espécie de shot altamente concentrado de cafeína. Um Red Bull aditivado. Um actimel do inferno!

BOOM!!!!
Eu sei que isto é muito um bloqueio psicológico, mas a verdade é que não voltei a sentir sono o resto da corrida! Animado pelo renascer ainda antes de morrer, passei pela minha melhor fase nesta altura, que coincidiu com a conquista de Marvão. A temperatura estava agora perfeita, os estradões deram lugar a muitos trilhos e corríamos várias vezes ao lado de ribeiros. O castelo estava cada vez mais perto. Estava agora a cerca de 2km, mas cá em baixo, na base do monte. Faltava apenas subir uns 200 metros verticais e estava lá! O caminho entrou numa estrada de seixo antiga. A subir, subir, subir...


Andámos nesta "estrada" uns bons 2km, quando comecei a ouvir o speaker. Eram 8:20 e estava bem dentro do objectivo! Já conseguia cheirar a comida do abastecimento e quase que toquei na muralha!

Sucesso!! 

Mas...

Hãn? Estas fitas estão mal não estão? Isto deve ser do Trail Longo!

Não estão? Então mas..aquilo é um trilho a descer!

Pois é. Eu disse-vos que a conquista de um castelo nunca era fácil, e isto estava a ser fácil de mais. A 100 metros da muralha, o trilho manda-nos de volta para baixo, numa descida interminável em pedra. 

Antes de voltar a subir ainda tive tempo de torcer novamente o pé e passar por aquelas dores horríveis! Mais uma vez num momento de desconcentração, alguém ia a passar por mim e eu quis facilitar saindo do trilho. Irritei-me comigo mesmo e chamei nomes muito pouco fofinhos ao tornozelo, ao castelo e à porcaria da pedra que se meteu debaixo do pé. Bah, bora mas é subir esta porcaria!

Ataque final ao Castelo. Não sou eu mas não faz mal.
Ainda irritado com o tornozelo, fiz os duros 500 metros finais com raiva. Entrámos pela porta da traição e estávamos dentro do Castelo de Marvão. Eram 8h40, objectivo cumprido!

A Sofia Roquete (2ª classificada) a entrar pela porta da traição.
Fui directo para o abastecimento onde estava a troca de roupa. Tirei a camisola e vesti a t-shirt que levaria até ao final. Também aqui funcionou tudo na perfeição em termos organizativos. De seguida fui comer uma sopa de legumes muito boa e ainda tive tempo de besuntar o tornozelo com Voltaren que me deram. Enchi a mochila com 2 litros de água e isotónico, que já estava na reserva. Quando acabei todo este processo passavam 1 ou 2 minutos das 9 e não tinha visto ninguém do Trail Longo. Fiquei com pena, mas paciência. Fiz-me ao caminho.

Já me tinham avisado para a descida de Marvão, que não era pêra doce. De facto era bastante inclinada e com muita pedra, mas o que me chateava mais era ter zero confiança no meu pé esquerdo. Fi-la sempre muito concentrado e em muitas zonas com a ajuda dos bastões. Já não me doía novamente, mas sei que um movimento em falso podia originar nova torção.Foram 3km sempre sozinho e a bom ritmo.

Conformado que tinha perdido a partida do trail longo foi completamente inesperado quando passa por mim a voar o primeiro classificado, que ia com 2km! Logo a seguir vem o Luís Mota, um dos atletas portugueses que mais admiro (não apenas do trail) e que viria a ganhar a prova dos 42km. Nunca tinha ficado tão contente por ser ultrapassado! De seguida vieram todas as caras conhecidas que eu queria ter visto antes da partida. Todos, conhecidos ou não, viam o dorsal laranja e davam uma palavra de incentivo! Foi muito engraçado ver este espírito de respeito que os atletas dos 42 tinham pelos dos 100 e deu-me muita força e animo.

Um momento tantas vezes repetido...
Foi com esta boleia que fiz os 10km que nos separavam do 7º abastecimento, aos 70km, que estava situado em Carreiras. Já eram 10 da manhã e o calor começava a apertar, por isso ainda soube melhor aquele km a descer, num trilho que serpenteava entre árvores que ofereciam uma sombra bem fresca, mesmo antes de chegar ao abastecimento. No fim da descida, a poucos metros do abastecimento, tive um momento um pouco aflitivo quando vi um amigo deitado no chão desidratado, exausto, quase inanimado. Não vou dizer quem era, penso que nos próximos dias será ele próprio a contar, mas foi um grande susto e não saí de lá até ter a certeza que ajuda vinha a caminho. O momento assustou-me e confesso que baixou-me um bocado o ânimo... Mas ele já está bem, é o que interessa.

Cheguei ao abastecimento novamente com fome, mas neste já não havia "comida a sério". Comi uns biscoitos e banana à pressa, era o primeiro abastecimento dos 42km e a afluência era mais que muita. Não me senti muito confortável neste abastecimento, confesso... Uns metros à frente haviam uns balneários públicos, aproveitei para encharcar o buff, molhar braços e reforçar a dose de vaselina que tinha nas coxas (gastei um boião só nesta prova). Muito raramente fico assado, mas nesta prova acabei quase em carne viva! Provavelmente por causa do tempo quente e seco, suponho.

Vaselina.
PS - Já devem ter reparado que estou com alguma dificuldade em arranjar fotos para ilustrar este artigo eheh
Foi nos 7km até Castelo de Vide, onde estava o próximo abastecimento, que começaram as grandes dificuldades da prova. À medida que o dia avançava o calor apertava mais e mais. Ao meio dia já passava dos 30 graus e começou a ter um efeito devastador, tanto em mim como em toda a gente que ainda estava em prova. O ar era extremamente seco e quente, misturado com o pó que andava no ar provocava uma sensação de secura permanente. Bebi litros e litros de água, isotónico e água com eletrólitos, mas a sede estava sempre lá! Uma sensação muito desconfortável a que não estava habituado.

A chegada ao abastecimento de Castelo de Vide foi muito sofrida, passei provavelmente pela minha pior fase nestes quilómetros.

Castelo de Vide. Não chegámos a conquistar o castelo, a vista do abastecimento era +/- esta
Assim que cheguei ao abastecimento enchi novamente os 2 litros de líquidos que a minha mala carrega e depois quis comer, o que já não acontecia desde Marvão, 3 horas antes. Nas mesas do abastecimento voltava a não haver comida a sério, como sopa, bifanas ou carne... Informaram-me que apenas no próximo abastecimento, dali a 13km, a encontraria.

Infelizmente aqui vou apontar aquela que para mim foi a única falha em toda a organização. Do quilómetro 60 aos 90 andei a batata frita e banana e fez-me muita falta comida a sério. Reparem que os PACs 4, 5 e 6 tinham comida quente, depois deixaram de ter a seguir a Marvão. Percebo que eram coincidentes com os dois primeiros da prova de 42km, e que para essa prova não fazia sentido terem mais comida, mas para o pessoal dos 100 fez falta. Eu sei que os puristas que estão a ler isto vão dizer que devemos ser auto-suficientes e que eu sou um menino. Enfim, se for só eu a queixar-me sou eu que estou mal, se mais gente achou o mesmo tenho a certeza que para o ano vai ser diferente, tudo o resto foi perfeitamente impecável.

Saí do abastecimento um bocado irritado e comi um gel e uma barra que levava comigo. A birra passou-me pouco depois. Encontrei companhia que me acompanhou em 2 ou 3km muito corriveis e fizemo-los a bom ritmo. A verdade é que já estávamos com 80 e tal quilómetros nas pernas e estávamos a correr perto dos 6min/km. A prova estava a correr bem, o pior já tinha passado e agora era gerir até ao fim. Esta constatação devolveu-me o ânimo.

Alguns quilómetros antes do abastecimento passámos por uma fonte de água de água potável. Praticamente tomei banho nessa fonte. Meti a cabeça debaixo da água fresca durante algum tempo, encharquei o buff, molhar braços, pernas, peito... Era quase uma da tarde, o calor estava a ficar insuportável. Este foi um ritual que passei a repetir em todas as fontes e ribeiros que passava. 

Cheguei finalmente ao PAC 9, no Convento da Proença aos 90km.

Sim, havia uma piscina no abastecimento.
Não, não tomei lá banho.
Sim, devia ter tomado.
:/
Esfomeado, fui a correr buscar 3 ou 4 fatias de pizza que enfardei sentado à sombra. Deve ter sido das vezes que a comida me soube melhor e imagino a minha figurinha a comer. Devo ter bebido um litro de água para empurrar a massa que entretanto tinha empapado na boca. Enchi novamente os depósitos de líquidos e perguntei o menu seguinte a uma voluntária. 6km até ao próximo mais 6km até à meta. Fácil? Nesta altura se me dissessem que a meta estava a 1km mesmo assim tinha feito um esgar de sofrimento!

Os primeiros 6km eram bastante corriveis, mas nesta altura já tinha muitas dificuldades em correr, principalmente por sentir as articulações dos joelhos e pés doridas. Mas o pior era mesmo o calor. A sensação de secura piorava cada vez mais e já não conseguia beber a água com eletrólitos, que quente sabia quase a gasolina e provocava-me azia. Sentia a barriga inchada de tanta água e mesmo assim não passava a sede. Os pulmões também estavam a ceder, comecei a tossir e ficava com um sabor metálico a sangue na boca, o ar muito quente e seco, misturado com os kilos de pó que já tinha inalado não podiam estar a fazer bem... Nesta altura cheguei a parar num ribeiro que não era mais que uma poça de água e encharquei o buff numa água que já não era muito recomendável!

Um quilómetro antes do abastecimento, numa pequena descida, voltei a torcer o pé quando ultrapassava uma atleta dos 42km. Que estúpido! Fiquei super irritado e apeteceu-me mandar pontapés nas árvores! A coitada da atleta que tinha ultrapassado ficou super preocupada e perguntava-me se eu precisava de alguma coisa, mas só me apetecia dizer asneiras. Bah, faltam 7km, agora nem que seja ao pé cochinho! 

Depois do abastecimento, na Penha de Portalegre, faltavam 6km de alcatrão até à pista do estádio. Aproveitei o abastecimento mais uma vez para encher a barriga de água fresquinha e voltei a tomar banho numa torneira que lá estava. 

Esta já ninguém ma tirava, mas ainda faltava penar um bocado.

À saída da Penha, lá estavam elas, as famosas escadas do UTSM!

Ah.... o MIUT... :')
Confesso que os 269 degraus a descer não me custaram nada e fi-los em passo de corrida. Mandei uma mensagem à Sara a dizer que faltavam 6km e fiz-me à estrada. 

Uma dica para os serviços secretos americanos: essa cena do water boarding é para meninos, tortura a sério é meterem um gajo que já vai com 90km nas pernas, com 35ºC, a correr no alcatrão! C'um caraças! Os meus pés assaram completamente e fizeram duas bolhas gigantes nas palmas. 

Ora a correr, ora a andar, lá me arrastei pelos 6km a um ritmo estonteante de 7 e tal ao quilómetro. O cronómetro indicava uns 20 minutos antes das 16 horas quando entrei no estádio, o que excedeu muito as minhas expectativas (estava a apontar para as 17/18 horas) e me colocou confortavelmente num quase inédito lugar do segundo quarto da tabela (147 em 500 e tal que começaram).

Gostei da prova. Gostei muito da dedicação de todos os envolvidos, do entusiasmo das centenas de pessoas que encontrei no percurso e do perfeccionismo das marcações. Mas principalmente senti o amor que foi empregue na organização desta mítica corrida de 100km, que já vai na quarta edição e que esgota num par de dias. O Alentejo já trouxe muitas coisas boas à minha vida, e esta foi mais uma.

Este relato deve ser dos menos dramáticos que já escrevi, porque sinceramente a prova correu-me muito bem. Mas por incrível que pareça foi das provas que me emocionei mais na chegada. Desde que na entrada do estádio li uma inscrição no chão a dizer "já está, és finisher!" (ou qualquer coisa parecida) até cruzar a meta 400 metros depois foi um turbilhão de emoções. Percorri a pista com um sorriso estampado enquanto acenava à Sara e à Mel que esperavam por mim na meta. Mas o melhor foi mesmo no fim. 

Penso que neste aspecto a organização foi um pouco injusta com o Ricardo Silva e a Ana Rocha, vencedores dos 100km, porque a minha chegada à meta foi MUITO melhor que a deles e fui 147º!!

Ora vejam lá:




:D

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Walking Dead

Sou um gajo lento. Sou daqueles que mesmo que recorram à classificação por escalão nunca vão ter um resultado com menos que dois dígitos. A única maneira de estar no top 10 de uma prova era se houvesse um escalão só para a minha rua, e mesmo assim tinha que ser só para gajos nascidos em 1983 e com olhos azuis. Sou daqueles que, pasmem-se, em certas alturas andam durante uma ultra-maratona. Pior que isso, há alturas em que pareço mais morto que vivo e arrasto-me sem ponta de dignidade!

Felizmente sei que não sou o único. Há um grande grupo de "atletas" como eu, uma espécie de clube muito elitista. Eu chamo-lhes os Segundo-Metadistas, grupo reservado àqueles que, como eu, raramente saem da segunda metade do pelotão.

Ultimamente tenho notado, principalmente no Facebook (essa fonte de bons debates), que há uma tendência para menosprezar os Segundo-Metadistas. Chamam-nos ultra-caminheiros, andarilhos, walking dead... De forma irónica, meio a brincar, meio a sério, lá vão dando umas ferroadas. 

Tenho uma teoria quanto a estes opinadores. Não acredito que sejam os super atletas, esses são uma minoria e pelo que tenho visto quase sempre pessoas impecáveis e respeitadoras. Não, para mim são uma de duas espécies: alguns (poucos) são os Segundo-Quartistas, que é como quem diz aqueles que ficam no segundo quarto da tabela e bem vistas as coisas nem fazem muito diferente de nós, mas a maior parte são aqueles que até correm mas que nunca saíram da sua zona de conforto e deixa-lhes um certo amargo de boca que alguém o faça. 

Eu sei, todos temos mais que fazer do que preocupar-nos com comentários facebookianos, mas como orgulhoso membro efectivo na segunda metade do pelotão, gostaria de esclarecer alguns pontos a esta aparente elite de super atletas.

  • Sim, nós andamos nas subidas. Aliás, costumo dizer que se me virem a correr numa subida durante uma ultra para me darem com os bastões.
  • Damos passos maiores que as pernas? Sim, é possível. Mas sabem quem é que isso pode prejudicar? Nós próprios! Por isso deixem-nos lá dar os passos que quisermos.
  • Nós não treinamos pouco, treinamos o melhor e o máximo que conseguimos.
  • Walking Dead? Bem.. A locomoção bate certo, o cheiro seguramente também lá estará, não temos fome de cérebros mas não há canja de galinha que não nos escorra pelo queixo, já dei por mim várias vezes a grunhir sem conseguir articular duas palavras. Por isso sim, aceito.
  • É verdade que compramos muito material e que às vezes até andamos mais equipados que os prós. Prometo que nunca mais vos peço dinheiro para o comprar! Ah, espera, agora que penso nisso... nunca pedi, porque é que se importam?!
  • Não são muletas, são bastões. Se ainda têm dúvidas perguntem à Ester Alves ou ao Luís Mota.
  • Lutar para chegar dentro do tempo limite pode ser um desafio tão grande como lutar pelo pódio. A diferença é que quando chegamos a festa já acabou. 
  • Sim, sofremos durante uma corrida. Morremos, renascemos, voltamos a morrer e a renascer.. Arrastamo-nos às vezes até quando o terreno é plano ou a descer. Sentamo-nos quando não conseguimos mais e mesmo assim voltamos a levantar-nos só para nos arrastarmos mais um pouco. Sabem o que nunca se arrasta? O nosso orgulho quando mesmo assim cortamos a meta.
  • Vamos parar em TODOS os abastecimentos, deal with it!
  • É verdade que às vezes chegamos várias horas depois dos primeiros. Às vezes até precisamos do dobro do tempo para fazer a mesma distancia, mas como diz o Praticamente Queniano Joel Ginga, "para os atletas de pelotão a mediocridade não está no tempo líquido". Por outras palavras, se o pórtico ainda lá está, não se preocupem com isso que nós também não!
  • Por último, o mais importante: o Segundo-Metadista do Trail Curto do Frade de Baixo tem tanto mérito como o Segundo-Metadista do UTMB. O suor, sacrifício e superação de ambos é igualmente merecedor de celebração e não há selfie pós-prova ou relato de facebook suficientes que paguem uma conquista pessoal. Por isso, se vos incomoda, tenho duas soluções: aquela cruzinha no canto superior direito do ecrã ou, se quiserem ser mais práticos, alt+f4!

Esta também teve uma conjuntivite numa prova