Cometi alguns erros este sábado na Serra da Estrela. O principal? Fui arrogante. Subestimei a prova e a Estrela. A humildade deve ser dos factores mais importantes quando se enfrenta uma montanha e desta vez não a inclui no meu equipamento obrigatório. O resultado foi o óbvio: voltei para o meu lugar com o rabinho entre as pernas, envergonhado, vergado a uma força infinitamente maior que eu.
A partida coincidiu com os primeiros raios de sol de um dia que se adivinhava perfeito para correr. Nem frio, nem muito calor, nem chuva. Perfeito, como o ambiente na partida. Deixei-me ficar lá bem para trás quando chegaram as 6 da manhã, e assim ataquei a primeira subida da prova, que surgiu poucos metros depois de passar o pórtico.
Sem tempo para grandes contemplações começamos a primeira escalada do dia, primeiro num estradão que zigue-zagueava entre árvores gigantes que de vez em quando abriam para nos dar um vislumbre do assombroso Vale Glaciar. Depois num trilho dentro de um bosque no cume da montanha, com a vegetação a ficar mais rasteira e os maciços graníticos mais frequentes, até virarmos a montanha, entrarmos no Vale do Rossim e darmos de caras com o espelho de água da represa que reflectia o azul do céu em contraste com os mantos verdes pontuados de cinzento do planalto. O sol, que entretanto também já tinha virado a montanha, disfarçava o vento frio e compunha este quadro quase irritantemente perfeito. Para trás tinham ficado 10km e quase 900 metros de subida, sinceramente nem dei por eles. Gosto destes inícios de prova brutos, nada como chegar ao topo de uma montanha fresquinho para dar confiança!
Os 12km seguintes, até ao 2º abastecimento na Garganta da Loriga, foram dos meus preferidos da prova. Quase sempre a subir, sempre em direcção à Torre que espreitava lá bem ao fundo, uma paisagem virgem e idílica, com mantos verdes rompidos por rochas gigantes que pareciam ter sido colocadas na terra por alguém com sentido de humor. Atravessámos a Fenda da Talisca, saltitámos por entre os milhares de charcos de água transparente, subimos e descemos rochas, cada vez mais alto, cada vez mais perto da Torre. Chegados muito perto dos 1900 metros, com a Torre quase à distancia de um braço, virámos para a Garganta da Loriga.
Talisca. Obrigado Google! |
Já tinha ouvido falar muito desta descida. Criei uma grande expectativa em relação a ela, sabia que seria a mais difícil da prova e tinha-lhe um grande respeito. Aqui não fui arrogante, mas todas as projecções que tivesse feito estariam sempre a anos luz da realidade. Descemos por uma garganta super apertada, quase claustrofóbica, que parecia dividida em pequeno patamares à medida que progredíamos. Rochas e mais rochas. Impossível correr, impossível sequer ter um passo constante. Escorreguei dezenas de vezes em rochas molhadas, caí algumas, perdi o fôlego a cada patamar, senti as pernas a latejarem e desesperei quando a empreitada simplesmente parecia difícil de mais, mas depois entrávamos noutro patamar e...bem, tudo fazia sentido outra vez. O quilómetro final, já em estradão e a chegar a Loriga, foi feito a correr e a fazer contas de cabeça ao estrago provocado nas pernas pelos mais de 1000m de descida. Não há-de ser nada.
As pedrinhas da Loriga. |
Saí do abastecimento muito moralizado e confiante, a previsão do tempo de passagem batia certo quase ao minuto. No entanto tinha perfeita noção que a prova só começaria dali a 7km, quando estivesse na base da subida para a Torre.
Os quilómetros até lá, ao Alvoco, passaram sem grande história. Uma subida curta, seguida de uma descida fácil em estradão embalaram-me até ao abastecimento onde estavam a Sara e os miúdos. Sentei-me a comer uma canja calmamente, tirei a camisola térmica e confirmei com ela a previsão de 2 horas para a subida de 1200D+ até lá acima. Desde o início do dia que estava desejoso por enfrentar o quilómetro vertical do Alvoco, era o desafio final do EGT, chegado lá acima com pernas seria o suficiente para ir até ao fim calmamente. Achava eu.
Encarei esta subida quase como uma tarefa do trabalho. Acho que nem levantei a cabeça para olhar para a paisagem, a minha mente trabalhava como uma máquina: escolher onde meter os pés, avaliar o nível de esforço e adaptar a velocidade de subida. Se fosse preciso abrandar, abrandava. Comecei a passar alguns colegas e a ganhar confiança. Lembrava-me de quando fiz o quilómetro vertical há dois anos das partes mais difíceis e de quando serenava. A meio da subida, com 1 hora, comi um gel que quase me fez vomitar. Não tinha levado os géis habituais e que tão bem resultaram na Madeira, comprei antes uns à pressa na feira na noite anterior. É só gel, não há-de haver problema. O ultimo quilómetro, já muito mais suave que o resto da subida, é feito com a Torre em pano de fundo. Percorri-o a sorrir, orgulhoso pelo feito e por ter chegado ali aparentemente com pernas. A estratégia estava a resultar na perfeição, tinha domado a montanha, nada podia correr mal a partir dali!
A recepção :) |
Entrei no abastecimento eufórico e virei-me para a mesa da comida. Meti uns bocado de queijo à boca que empaparam, tive que os cuspir na rua. Desde a canja do Alvoco que vinha mal disposto e a cada gole de água dava 2 ou 3 arrotos que se deviam ouvir a 2km (bonita imagem). Bah, agora também é só descer e gerir o resto da prova.
Despedi-me da Sara e dos miúdos, e combinei que já só os veria em Manteigas. Era agora altura de percorrer o famoso Trilho do Major, que nos levaria até ao Vale Glaciar. Encarei-o como uma recompensa pelo esforço da subida anterior. Nada como uma descida num trilho bonito e corrivel aos ésses pela montanha para recuperar de uma subida violenta. Mal podia esperar para o atacar!
Saímos da estrada na Torre e começámos a descer por uns caminhos com alguma rocha e muita água. Corremos 200 ou 300 metros na neve, que fizeram as delicias tanto dos atletas como dos fotógrafos, e voltámos à pedra. O caminho era espectacular, mas muito difícil. Cruzámos uma estrada de alcatrão e entrámos em novo trilho. Era agora que ia começar a minha descidazinha aos ésses boa de correr!
Miro Cerqueira, a fazer fotos de capa desde 2015. |
Ah.. Mas.. Isto está cheio de pedra! Talvez descendo mais......não, pedra!
Rocha, rocha e mais rocha. Mas não são pedras soltas, são rochas grandes que temos que alçar a perna, usar as mãos e o rabo para transpor! Uma brutalidade de descida, uma espécie de Garganta da Loriga! A paisagem era de cortar a respiração, mas ia de tal maneira atordoado que nem me apercebia. Nunca caminhei tanto numa descida, não conseguia correr em lado nenhum. Em parte pela dificuldade técnica mas principalmente pela bordoada que tinha levado. Ninguém me disse que a descida era fácil ou que era corrível, eu é que meti isso na cabeça. Este aparentemente pequeno revés foi o suficiente para despoletar tudo, a partir daqui foi sempre a descer. Não me interpretem mal, os 8km de descida são das coisas mais incríveis que já vi! Muito variados, desafiantes, técnicos... Mas o click já tinha acontecido, e não havia trilho fresquinho aos ésses que me desse a volta.
Foi quase hora e meia a descer, muito lento. Perdi a noção das horas e o controlo do tempo a que devia comer, quando me lembrei disso tentei comer uma barra mas já só consegui dar uma dentada. Empurrei o resto com água o que me deixou mais enjoado. Depois como no abastecimento...
Vejam a parte final do trilho, dá para ver as pedras. Foto da Sara. |
O abastecimento apareceu depois de uma parede de 300D+ que nos voltou a levar para fora do Vale. Apliquei a estratégia do costume nas subidas, mas esta já foi muito a esforço. Foi com alivio que cheguei ao estradão que nos levaria até ao abastecimento em Poios Brancos, 54km percorridos.
Chegado lá pousei os bastões e preparei-me para comer. Experimentei bananas, uma barras de cereais, marmelada, queijo.. Já nada entrava. Não havia canja, era isso que me salvaria! Paciência, vou continuar, no Vale de Amoreira há de certeza.
A partir daqui a prova mudou radicalmente. Não a minha, essa mudou um pouco mais atrás como perceberam, mas o percurso da prova. Tornou-se de facto rolante, e a prova disso foram os 7km a descer quase sempre em estradão até ao Poço do Inferno, local do 8º abastecimento. Percorri-os quase sempre a correr, todos na casa dos 6min/km, mas sempre muito a esforço. Já nada saía naturalmente, sentia que estava à beira do precipício, ao mínimo desequilibro caía para o outro lado. Cheguei ao Poço do Inferno uma hora antes do inicialmente previsto, o que me dava uma boa margem para ainda conseguir as 16 horas, Talvez ainda desse...
Assim que saio do abastecimento, onde só havia líquidos mas não valeu de muito já que não conseguia beber nada, apanho uma pequena subida, a primeira desde o Vale Glaciar. E foi aí que...
Se houvesse mais neve no pico de certeza que o meu estoiro teria provocado uma avalanche.
Dez quilómetros separavam-me do abastecimento do Vale de Amoreira. Dez quilómetros de estradão quase sempre a descer mas com algumas picadas pelo meio. Nada de extraordinário não é? Pois, não devia ser, mas foi.
Comecei por fazer as subidas cada vez mais devagar e a demorar mais tempo a recuperar antes de iniciar a corrida nas descidas, até que desisti e fazia as descidas a andar. Aqui ganhei uma nova companhia de viagem, as moscas. Verdes e moles, entravam-me para dentro da boca, ouvidos e nariz. Assim que parava atacavam. Agitava os braços feito maluquinho, estava a entrar em desespero! Por favor, quem estiver a ler isto e que tenha estado lá, digam-me que não estava a alucinar e existiam de facto moscas verdes mutantes naquela parte do percurso!
De repente a ideia de desistir começou a formar-se na minha cabeça, cada vez que parava e me debruçava sobre os bastões ganhava mais consistência. Desde a Torre que não conseguia comer ou beber, algo porque nunca tinha passado antes e estava agora a ter o seu preço. Estava completamente drenado de energia, o próprio acto de segurar os bastões já era difícil e arrastava-os no chão enquanto andava. A 3km do abastecimento estava perfeitamente decidido a ter a primeira desistência da minha vida e conformado com a ideia, não fazia sentido continuar assim. O quilómetro final, já no alcatrão e ligeiramente a descer, demorei uma eternidade a percorrer. Sentei-me umas dez vezes no chão. Disse à Sara para me vir buscar. Estava em paz com a minha decisão, nada de dramas.
Chegado ao abastecimento sentei-me numa mesa à parte do resto das pessoas, debrucei a cabeça sobre os braços e assim fiquei algum tempo. Não que me estivesse a sentir mal, mas nem forças para levantar a cabeça tinha! Tirei a mochila e preparei-me para esperar pela Sara. Estava irritado e frustrado, é completamente estúpido pensar que se tem uma ultra dominada só porque se desenvolveu "um sistema", como se não houvessem milhares de variáveis só à espera para nos mandarem abaixo. Não sei o que me chateava mais, se a constatação desse facto ou ter falhado redondamente os objectivos que tracei de maneira tão arrogante neste post.
Passaram uns bons 20 minutos até a Sara aparecer. Nesse tempo algumas pessoas vieram falar comigo e tentaram convencer-me a continuar. Uma dessas pessoas foi a Carmen, que basicamente me trouxe de volta à terra. "Mas o que é que tens? Estás com vómitos? Caíste? Doi-te alguma coisa? Torceste um pé? Não?? Então não continuas porquê??? Cansados estão vocês todos! Vá ver!"
Pois..realmente.. nem um tornozelozito dorido...
Bem, mas estava decidido. Quando a Sara chegou ainda estivemos ali uns 10 minutos, até que me levantei para ir embora com ela.
Meti a mochila às costas. Para ir embora, claro.
Peguei nos bastões. Para levar para o carro.
Comecei a andar em direcção ao carro, quando...
"Olha pronto, vou continuar. Até logo!" Virei as costas e segui caminho.
Desenganem-se, não há aqui nenhuma explicação romântica, nenhum renascer das cinzas ou final épico. Foi em modo Walking Dead que percorri os 20km que me separavam da meta. Primeiro arrastei-me os 800m D+ estradão acima, depois gatinhei nos 800m D- estradão abaixo. Continuei sem conseguir comer ou beber nada, até à manhã seguinte. Deprimente, completamente vergado. Sinceramente acho que não me arrependeria de ter ficado no abastecimento. Não há que fazer grande drama com as desistências, ninguém nos está a julgar, não temos nada a provar a ninguém. Não, nem é bem isso, na verdade ninguém quer saber! Ainda agora que estou aqui sentado a escrever tenho dúvidas se tomei a decisão certa.
Quatro horas depois do abastecimento do Vale de Amoreira, cheguei. Foram quatro horas que serviram para pensar bem nisto da ultra corrida, esta coisa insana de passar horas e horas num limite físico e mental. É estúpido, é masoquista, é, é, é...... pois, isso tudo! Mas.... depois chega a meta e...... o que é que eu estava mesmo a dizer...?