As sensações não eram as melhores há algum tempo. Umas horas antes tinha percebido que não ia ser a prova sólida que consegui fazer o ano passado. Sempre soube que seria difícil repetir o MIUT 2016, quanto mais melhorar. Por isso foi sem qualquer frustração que, conformado, segui tranquilo o meu caminho em direcção à descida para o Curral das Freiras. Foi nessa descida, nessa descida com mais de 4km e 800D- que senti pela primeira vez o bater dos segundos. O temporizador estava ligado, a contagem decrescente tinha começado, eu era uma bomba relógio e podia rebentar a qualquer momento.
tic, tac, tic, tac, tic, tac....
A minha terceira viagem de autocarro de Machico até Porto Moniz não foi diferente da 1ª nem da 2ª. O nervosismo estava lá, acompanhado da ansiedade e do medo. Como sempre, encostei-me no meu lugar à janela e fechei os olhos durante praticamente toda a viagem. Refiz o percurso mentalmente pela enésima vez e pensei na Sara e nos miúdos, que infelizmente voltaram a não vir comigo (as viagens são muito caras). Chegado a Porto Moniz fui beber o habitual café ao habitual restaurante. Sentei-me nas habituais escadas e esperei pacientemente pela passagem de quase toda a gente pelo controlo zero para me dirigir para a partida. Este ano estava bastante mais gente, o que tornou aqueles últimos 15 minutos um pouco desconfortáveis.
Foi a terceira, podia ter sido a primeira ou a décima, mas aquela sensação de estar a iniciar um combate com um monstro nunca muda. Pórtico passado. Vamos começar o Madeira Island Ultra-Trail 2017.
A noite estava excelente. Fresco, pouca humidade e sem nuvens. A previsão era que se ia manter, o que permitiu aliviar um pouco nas camadas térmicas. Ainda assim, no fim da primeira subida à saída de Porto Moniz transpirava por todos os lados. Este ano houveram três alterações ao percurso, a primeira delas foi precisamente no fim desta subida, onde no ano passado existiram engarrafamentos, agora foi uma transição suave para os trilhos. Perfeito!
Segui com um grupo de 4 almeirinenses (éramos 5 nos 115km!) até à Ribeira da Janela, onde apanhámos aquele famoso banho de multidão, e continuámos juntos na primeira grande subida da prova, o quilómetro vertical até ao Fanal. Avisei-os que era ali que o MIUT começava, sem conseguir disfarçar a excitação de estar a entrar numa grande aventura.
Esta subida é uma espécie de introdução à prova. Primeiro no meio de uma aldeia e depois os primeiros degraus da jornada, na entrada dos trilhos. É muito longa, quase 9km, mas nunca é demasiado difícil. Segui perfeitamente controlado, conforme o plano. Sabia exactamente o que tinha que fazer, onde e com que intensidade. Era como se estivesse a preencher um exame final de uma cadeira da faculdade para o qual me tinha fartado de estudar. Mas todos sabemos que às vezes, por mais que estudemos, há aquela pergunta com a qual não contamos e de repente nos tira o chão por baixo dos pés...
Descida do Fanal até ao Chão da Ribeira. Material de pesadelos. Este ano pela primeira vez seca, o que a tornou ligeiramente mais acessível e divertida. É aqui que os pouco precavidos percebem que o MIUT não é só desnível positivo, isto enquanto manuseiam atabalhoadamente os bastões ao descer os degraus em troncos de madeira. Impiedosa, estende-se por 5km intensos que inevitavelmente deixarão as suas marcas.
Xavier Thevenard na subida do Fanal |
Já lá em baixo, as costas folgam muito pouco enquanto o pau vai e vem. Um rápido abastecimento na base da descida atira-nos imediatamente aos pés do monstro: a subida para Estanquinhos, aquela que para mim é a mais difícil da prova. 1400 metros de subida em menos de 10km. Sempre em trilho, sempre muito inclinada, variada, assustadora! Uma loucura que quando parece estar a acabar nos surpreende como uma nova secção. Lembro-me de ter olhado para o relógio aos 23km e reparar que já estávamos com 2700m de desnível positivo desde o início, o mesmo que o Piodão em menos de metade da distancia! Foi com muito alívio que finalmente vi a tenda do abastecimento, à qual cheguei cerca de 10 minutos mais rápido que o ano passado. Apesar desta folga de tempo comecei a sentir que não estava tão bem como nessa altura. A descida a seguir era um bom teste, o ano passado fi-la quase a convencer-me para ir mais devagar, muito fluido e sem esforço.
A primeira parte é feita num estradão com muita pedra, que nos obriga a ir constantemente a travar. Foi com alguma dificuldade e muito pouco conforto que mantive o ritmo que queria até à entrada no trilho. Por sorte apanhei um grupo que seguia a bom passo e colei atrás deles enquanto penetrávamos na floresta Laurissilva. Primeiro num trilho óptimo para correr depois uma secção com muitas escadas. Segundo a companheira que ia atrás de mim (penso que era guia turística) seriam 816 degraus a descer! Bem os senti nas pernas quando iniciámos a ultima parte da descida, num trilho fácil, coberto de folhas secas, muito bom para correr. Infelizmente os sinais confirmaram-se nesta parte, apesar de ir ligeiramente adiantado em relação ao ano passado não estava a sentir-me a 100% e descia de maneira um bocado forçada. Bem, sem problema, vamos ver o que isto dá.
Laurissilva. Foto do Google. |
Ultrapassado o meio km vertical até à Encumeada, onde apanhamos o primeiro verdadeiro choque de escadas num caminho chamado Quebra Panelas (pelo menos parece-me que foi isso que os Madeirenses que iam comigo lhe chamaram eheh), breve paragem no Hotel da Encumeada para novo abastecimento. Até ao Curral, local de próxima paragem, esperava-nos o segmento mais longo do MIUT, que compreendia 1000m de subida e outros tantos de descida distribuídos por 15km.
Ataquei a famosa subida do pipeline com a calma habitual, mas mais uma vez sentia que estava a forçar a barra. As pernas não respondiam bem nas partes corriveis e demorava a estabilizar a respiração nas subidas. O meio km vertical antes da descida para o Curral é das subidas mais fáceis da prova, mas algo não estava bem. Sentia-me a escorregar perigosamente. Comecei a olhar muito para o relógio e pelo canto do olho via gente a aproximar-se. Chegado à cumeada, onde virávamos a montanha para a descida, algo mudou.
De repente comecei a ouvi-lo: tic, tac, tic, tac...
Continuei na descida a bom ritmo. Aproveitava a aproximação de atletas mais rápidos dos 85km, que tinham partido às 7 da manhã, para encostar e respirar fundo. A descida para o Curral é muito complicada, tentei poupar-me nas zonas mais técnicas e fiz algumas partes a passo. Só queria chegar lá abaixo e fazer reset, mas ela não me deixava. Batia, batia, batia..
tic, tac, tic, tac...
Curral das Freiras |
Asfalto. Fim da descida. Falta cerca de 1km a subir até ao abastecimento, num pavilhão do Curral das Freiras. Forço para manter um bom ritmo a caminhar de bastões. A respiração está ofegante e começo a sentir muito os ombros doridos do esforço. Ufffff. Preciso. Do. Abastecimento.
tic, tac, tic, tac...
Entro no pavilhão, está a confusão habitual. Antes de procurar caras conhecidas dirijo-me logo para a zona dos sacos. Encontro um colchão vazio e começo a preparar as coisas. Não queria demorar-me ali muito tempo, era importante não dar o sinal errado ao corpo e ele achar que já não estava para mais. Consigo comer uma taça de massa com carne, o que me deixa animado, troco de roupa e meto o relógio a carregar dentro da mochila. Altura de encher todos os depósitos com água e isotónico, saio com 2 litros só de líquidos. Passo uma camada grossa de vaselina no interior das coxas mas reparo que essas já passaram o ponto de não retorno. Já em sangue, ia ser incomodo até ao fim. Olho para as horas, é meio dia em ponto. Não me lembrava bem do ano passado, mas tinha ideia de ter chegado ali um pouco mais tarde. Efectivamente assim foi, mas apenas 7 minutos. Mas não eram os minutos que me afligiam, eram os segundos. O passar sonoro dos segundos que me lembravam que a qualquer momento a bomba relógio ia rebentar.
tic, tac, tic, tac...
Saio do abastecimento preparado para o pior, mas com a segurança de pelo menos estar a conseguir comer e beber bem, isso é importantíssimo. Antes do início da subida começo a pensar no relógio que está na mala. O plano era deixar carregar até ao Pico Ruivo depois meter no pulso e passar a carregar o frontal até ser de noite. Tudo controlado. É só trocar o cabo que...
MERDA
Deixei o cabo dentro do saco da muda! Não tinha bateria extra e o segundo frontal era muito fraco. E agora, voltar para trás? Naaah, já estava a uns 500m do abastecimento, Deus me livre de fazer mais 1km de maneira a conseguir andar seguro na segunda noite!
Liz Lemon, autora do melhor revirar de olhos. |
Lembrei-me de ligar à Andreia, que estava com a malta de Almeirim a dar assistência nos abastecimentos, para ela me tentar arranjar umas pilhas. Já estava à espera no Pico do Arieiro, se houvesse lá à venda ela comprava. Tá bom, não mexe mais! Voltei a meter o telemóvel em modo avião e fiz-me à subida.
Convencido que ia rebentar durante esta subida, activei todos os sistemas de poupança de energia. Passada curta, pouca amplitude de movimentos, alimentação certinha e muitos líquidos. Por falar nisso, está na hora de meter um gel. Deixa-me cá..
MERDA
Os géis. OS GÉIS!! Deixei a porra dos géis para a segunda metade da prova no saco da muda! Pufff agora é que foi! Tinham sobrado 3 da primeira metade, teriam que ser geridos até ao fim. Ultrapassado o primeiro pânico comecei a fazer contas de cabeça. Precisava de pelo menos 2 geis até chegar ao Pico Ruivo, depois mais um até ao Arieiro. Isto deixava-me com um problema, que era a subida ao Poiso, precisava de outro aí. A única solução era conseguir comer muito no Arieiro e depender apenas dos abastecimentos até ao fim. Seja, vamos à luta!
Fui sendo passado por muita gente, principalmente malta dos 85km, mas nunca alterei a estratégia. Assim fui subindo vagarosamente até chegar às árvores fantasma, na Boca das Torrinhas, onde entraríamos no carrossel de escadas.
tic, tac, tic, tac, tic, tac...
Esta é minha! Do ano passado.. mas é minha! |
Desta vez os 4km de sobe e desce de escadas até ao Pico não me apanharam desprevenido. Continuei seguro, a adiar o momento. Recuperei muitas posição que havia perdido na primeira parte da subida. Sem relógio, segui tranquilo escadas acima, escadas abaixo. O ano passado foi ali que rebentei, mas a coisa não estava má por enquanto.
Quase 3 horas e dois géis depois cheguei ao abastecimento do Pico Ruivo. Este abastecimento não tem acesso automóvel, por isso era mais fraco que os outros. Tinha a ideia que só haviam líquidos, por isso sentei-me logo à entrada e voltei a encher os depósitos que entretanto já vinham na reserva. Continuava preocupado com a comida e como descarga de consciência perguntei a uma voluntária se por acaso não havia nada para comer. "Sim, ali ao fundo há uma mesa com doces e salgados"
Ah! Salvo! Nem tinha reparado! Ataquei o queijo, presunto, figos secos, amendoins, marmelada e banana que nem um labrego enquanto empurrava com isotónico. Estava a entrar tudo! Que dose brutal de ânimo. Em principio já me daria energia até ao Arieiro, poupando o terceiro gel para a ultima subida.
Saí do Pico Ruivo um homem novo, até o bater dos segundos ficou mais sumido, quase nem dava por ele! Foi a disposição certa para atacar aquele que, até prova em contrário, é o caminho pedonal mais bonito do mundo. 4km duríssimos, num constante sobe e desce de escadas em escarpas com uma proeminência abismal. Disse e volto a dizer, é por estes 4km que ano após ano me apetece voltar.
Mas para aqui passar há que pagar a portagem. Não em dinheiro, mas em energia. A ultima grande subida antes de chegar ao Arieiro voltou a deixar-me com os bofes de fora e relembrou-me que nada estava garantido. E lá voltou o barulho ensurdecedor.
tic, tac, tic, tac...
Foto da Joana do Joel, à chegada do abastecimento |
No abastecimento estavam a Andreia e a Joana, da comitiva almeirinense. É sempre um boost de energia brutal ver caras conhecidas em provas destas. Na altura fiquei com a ideia que tinha ali chegado mais ou menos à mesma hora que o ano passado, agora em casa vejo que foi menos de um minuto depois! A diferença é que este ano ainda não tinha rebentado, apesar de há muito ter percebido que isso seria uma inevitabilidade. Restava saber onde.
Ataquei novamente o abastecimento e mais uma vez consegui comer bem. Ainda não falei nisto, mas os abastecimentos do MIUT são os melhores que já apanhei na vida. Não falta rigorosamente nada e nunca vi tabuleiros com pouca comida. Foi com ânimo em alta que me fiz à descida até ao Ribeiro frio, plenamente consciente que as dificuldades estavam longe de ter acabado, ao contrário do que normalmente se pensa.
Fotos de boca cheia. Zach Miller style. |
Esta descida é lixadíssima. São 10km muito variados, com uma primeira parte em que perdemos muito pouca altitude num trilho pedregoso, intercalado com várias pequenas subidas. Das duas vezes anteriores tive enormes dificuldades nesta parte, e este ano não estava a ser diferente. O ânimo desvaneceu e voltei a ter movimentos muito forçados e pouco fluídos. Reparei que estava a começar a dobrar-me sobre mim mesmo nas subidas e a meter cada vez mais esforço nas costas. Quando o terreno pedia para correr o corpo gritava para parar. Uh oh... Houston, we have a problem.
tic, tac, tic, tac...
Segunda metade da descida. Entrámos num bosque com árvores enormes, terreno escuro e cheio de raízes. Tentei meter passo de corrida mas tudo me doía. Parei, voltei a andar numa descida fácil. Respirei fundo e deixei passar dois colegas que se aproximaram entretanto. Insisti na caminhada mais uns metros até que voltei a tentar correr. Muito difícil ao início, mas forcei e insisti até estar anestesiado.
tic, tac, tic, tac...
Consegui correr os últimos 3 ou 4km até ao abastecimento, sempre nervoso a olhar para o indicador de altitude que me aproximava da cota de Ribeiro Frio, mas ainda assim bem sucedido. Esteve muito perto de acontecer, mas a explosão tinha sido adiada mais algum tempo e respirei de alivio quando entrei no restaurante do abastecimento. Desta vez já não consegui comer tão bem, mas era altura de meter o último gel de reserva e esses entram sempre. Foi aqui que encontrei o Luís, colega do Grupo Desportivo da Parreira, que foi uma grande ajuda para os quilómetros seguintes. Seguimos juntos para a ultima subida do percurso.
Estava mais que avisado para esta subida, a segunda das três alterações ao percurso. Antes um caminho em calçada muito suave, óptimo para recuperar, era agora um trilho inclinadíssimo aos ésses, num terreno cheio de raízes e terra escura. O efeito foi precisamente o contrário dos outros anos, em vez de descansar a subir senti todas as energias a desaparecerem. Mas não parei ou abrandei, cumpri os menos de 4km e 500D+ sempre a forçar até ao abastecimento. Lá em cima sentia as pernas as tremer e o estômago revirado. Lá estava ele, cada vez mais audível...
tic, tac, tic, tac...
Sentei-me no abastecimento e pedi que me trouxessem uma canja, já não tinha energia para me levantar. Sorvi o caldo salgado a custo, não me apetecia nada, mas estava dependente dos abastecimentos até ao fim. Parti novamente com o Luís para a descida seguinte, uma enormidade com 9km, que nos anos anteriores foi o ponto de viragem das minhas provas, onde renasci e consegui voltar a correr. Desta vez não tinha precisado ainda de renascer, mas a explosão parecia-me cada vez mais inevitável. A menos que... A menos que conseguisse fazer uma descida sólida.
Bora lá, Boss.
(nota, dentro do GDP a alcunha dele é Boss)
tic, tac, tic, tac...
Começou bem. O Boss estava muito bem fisicamente e eu consegui colar no passo dele. Tal como me lembrava, os trilhos eram muito acessíveis, penso que parte dos circuitos de treino do Porto da Cruz.
tic, tac, tic, tac...
Sempre na roda dele, entrei a bom ritmo nos estradões que marcavam a segunda metade da descida. Agora mais inclinado. As pernas começaram a gritar. Forcei, forcei, forcei. Meti bastões enquanto corria e apoiava brutalmente o peso nos braços. Todas as minhas fibras diziam para eu parar, mas continuei a tentar, continuei a empurrar o inevitável.
tic, tac, tic, tac...
Entrada numa levada. Degraus. Bastões a trabalhar mas ainda em passo de corrida. Lembro-me do UTMB e de como as descidas foram a razão da minha morte enquanto agonizo cada vez que tenho que travar a passada. Tenho que parar, tenho que parar...
tic, tac, tic, tac...
Cedi uns segundos e debrucei-me sobre os bastões. Respirei sofregamente enquanto o Boss se afastava. Voltei a tentar correr. Mais uns metros, só mais uns metros...
tic, tac, tic, tac, tic
M.O.A.B. |
Parei. Sentei-me no chão e meti a cabeça entre os joelhos. Estive naquela posição algum tempo a tentar recuperar o fôlego, levantar-me parecia missão impossível, quanto mais correr. A noite estava a cair e já passavam por mim atletas de frontal. Tentei durante um bom minuto abrir a mala para tirar o frontal enquanto ela ainda estava nas costas, até me aperceber que tinha o corta vento vestido por cima da mochila... Ainda sentado despi-me, tirei a mochila e o frontal. Estava a arrefecer muito depressa, como é habitual nestas situações, e dois ou três minutos depois de rebentar voltei a levantar-me.
Ufff.. Nada a fazer. Já tenho experiência suficiente para saber que lutar contra a marreta não leva a lado nenhum. A partir dali a prova era outra, tinha que saber lidar com o meu novo estado. Não me deixei abater minimamente, a menos de 20km da meta se tivesse que ir em modo Walking Dead assim seria!
Chegado ao abastecimento da Portela, no fim da descida, a minha primeira preocupação foi saber onde estava a comid.. mentira, foi saber como estava o Benfica! A perder 1-0 ao intervalo. Porra que quando a vida corre mal a um gajo não há nada que não lhe aconteça. O Boss estava lá a mamar uma média e uma sandes de presunto com a comitiva da Parreira. Alguma conversa, boa disposição, expliquei-lhe já tinha dado o estoiro mas que estava tranquilo. Seguimos novamente juntos.
Boss a ser Boss. |
Sei muito bem gerir a parte física destas marretadas, mas a parte mental é sempre traiçoeira. Faltavam 16km para o fim, nada de especial, mas revia o que faltava na minha cabeça vezes sem conta e só de pensar onde teria que passar apetecia mandar-me logo para o chão.
Mas aguentei. Andei nos estradões planos e tentei correr nos trilhos. Alguns consegui, outros não. Normal. Gritei GOLO quando recebi no relógio a notificação do livre do Lindelof e acelerei o passo para me meter com o Boss, que é lagarto. A seguir, claro, paguei. Não faz mal, mete bastões, anda. Sofri o martírio da descida do Larano que de ano para ano me parece mais desnecessária e desesperei nos 5km de vereda plana que lhe segue. Aqui sim, senti os efeitos secundários da explosão com força. Já tudo me custava, mas as luzes de Machico estavam lá ao fundo.
Se nos últimos dois anos consegui fazer as levadas finais todas a correr, desta vez isso estava fora de hipótese. Vá lá andar, já não era mau. Conformado, liguei à Sara e fiz conversa durante uns minutos na esperança que isso me distraísse das dores e do caminho infinito que ainda tinha pela frente. Estava completamente rebentado, mal conseguia andar, ainda assim bem disposto.
Cheguei ao ultimo abastecimento, a 4km da meta, à meia noite e sete minutos. Exactamente o tempo final do ano passado. Não me chateou minimamente. Sempre soube, sem falsas modéstias, que repetir uma prova que foi quase perfeita seria muito difícil. Encarei as ultimas levadas antes de descer para Machico e 40 e poucos minutos depois lá estava ele. O passadiço de madeira que significa a ultima subida e entrada na recta da meta.
Ao meu lado corria o Rodrigo, já vestido à civil e ao telemóvel com a Sara. Correu comigo os últimos 200m antes de eu passar o pórtico e me juntar ao Boss, família e restante comitiva almeirinense e da Parreira. O Rodrigo passou-me o telemóvel para poder falar com a Sara. Mandei-lhe um beijo e respirei fundo.
Estava feito.
24:52:40 |
Pela terceira vez cruzei a meta em Machico. Não vou dizer que teve a carga emocional da primeira, nem a alegria e satisfação da segunda. Ainda assim, é sempre um momento muito emocionante e de alívio. O MIUT é uma prova tremenda que não dá 1mm de folga. Não há nenhuma parte do percurso onde se possa dizer "o pior já passou". Não, ali não. É certo que aos 75km já vamos com 6500 dos 7200D+ finais, mas experimentem correr depois de um amasso de 75km daqueles. De ano para ano noto uma excelência cada vez maior na organização, em todos os aspectos. Só fiz uma prova no estrangeiro, o UTMB, mas duvido muito que hajam muitas provas no mundo com o nível de qualidade de organização e percurso como esta.
Quanto à minha prova, apesar de ter começado com um desejo de baixar das 24h, sempre soube que seria muito dificil, como aliás o confessei a vários amigos. Por isso, não estou minimamente frustrado. Nem com o tempo final nem com o facto de ter rebentado. Estranho era terminar uma prova destas sem dificuldades. Adoro a Madeira, adoro. Não só a prova, toda a ilha. Sinto-me em casa, gosto da comida, gosto dos meus amigos madeirenses, dos que conheço e dos que se metem comigo a dizer "olha o 42!". No entanto, aproveito para pedir a todos os leitores deste blog que no dia 31 de Outubro de 2017 à meia noite me enviem a seguinte mensagem: "Não te inscrevas outra vez no MIUT, lembra-te do que voltaste a sofrer este ano. LEMBRA-TE!"