Quase
duas horas e 1200 metros de subida depois chegámos ao topo do Veleta. Escapámos
das temperaturas negativas sentidas na primeira subida do dia, protegida do sol
que nascera há pouco, e apanhámos os primeiros raios de sol no pico, perto dos 3400m. É nesta altura que
temos o primeiro vislumbre do que nos espera. A imensidão da alta montanha, a
agressividade dos declives, o terreno agreste e o vento forte e gelado que
dificulta ainda mais a respiração. Mas é
quando o vemos que o arrepio se instala. Inconfundível, o Mulhacen, a razão
pela qual estamos ali, sobressai imponente numa paisagem lunar e inóspita.
Ninguém consegue disfarçar o entusiasmo. Penso para mim que só por aquele
momento já tinha valido a pena. Mas ainda havia tanto, mas tanto, para viver
naquele fim de semana! Bem vindos a Serra Nevada.
O Mulhacen lá ao fundo |
Depois
do fim de semana que tinha tudo para correr mal, mas que afinal foi perfeito,
do ano passado, desta vez fomos mais ambiciosos. Aos 3 desse ano juntaram-se
outros 6 e foram 9 os que partiram sexta feira depois do dia de trabalho para
uma viagem de 8 horas rumo à Serra Nevada. Nove pessoas com objetivos,
andamentos, personalidades e humores diferentes. Nove pessoas que partilhariam todos os minutos dos próximos
dois dias e meio na imensidão da Serra Nevada. O plano passava por cerca de
40km durante o sábado e outros 20 no domingo, com uma dormida no Refugio
Poquera aos 2500m. Mais gente, caminhos novos, mais tempo e distância. Mais uma
vez as probabilidades não estavam a nosso favor, a coisa podia ter corrido
muito mal.
Chegada
à cidade fantasma de Pradolano na sexta feira às 4 da manhã. O enorme parque
subterrâneo onde estacionámos, que no inverno deve estar a abarrotar de gente e
movimento, estava completamente vazio, com a exceção de uma raposa que
procurava comida nuns caixotes do lixo perto de nós. No meu carro seguiam o
Sommer, Arede, eu e o Miguel, que fez as 8 horas de penalty a conduzir. Preparámo-nos
para dormitar, Sommer e Miguel no carro,
eu e Arede no chão, quando 5 minutos depois de nos deitarmos o Arede é mordido
no pé pela raposa! Ups, estamos a mais, pegámos na esteira e saco de cama e
fomos dormir para as escadas.
A raposa morde pés! |
Menos
de duas horas depois chega a outra metade da comitiva. Diogo, Manel, Brito,
Goreti e Madeira. Equipar, tomar o pequeno almoço, ligar o relógio e sair pela
rampa do estacionamento que desemboca literalmente nas pistas de ski. Vamos a
isto.
O grupo à saída do parque |
A
primeira subida, que vos falei no inicio deste post, é o primeiro teste à reação
de cada um à altitude. Começamos nos 2100m e acabamos nos 3300. Alguns de nós
nunca tinham passado dos 1990 da Serra da Estrela (como eu o ano passado) e
preparávamo-nos agora para subir 1300 metros acima disso. Acreditem, os efeitos da altitude não são brincadeira e
nenhum de nós está a salvo deles. Uns mais afetados, outros menos, ali por
volta dos 3000m todos sentimos que estamos a entrar num mundo novo. No meu caso
a aclimatização é toda feita nesta subida. A dor de cabeça que vai aumentando,
a dificuldade em recuperar o fôlego, a resistência nula a variações de ritmo e
as tonturas que batem à porta cada vez que olho para trás. Felizmente, das
vezes que andei em altitude, passadas duas horas habituo-me, e com exceção da dificuldade
em andar a ritmos altos todos os outros sintomas desaparecem. Mas atenção,
todos reagimos de maneira diferente, e mesmo os que reagem melhor não estão a
salvo de um dia se virem metidos numa alhada. Na verdade, parece que é bastante
aleatório!
No topo do Veleta |
Depois
da conquista do Veleta segue-se o inacreditável caminho até ao Mulhacen. Cerca de
7km na cumeada, sempre acima dos 3000m, quase sempre em trilhos, corrivel, com
passagem por dois colos que mais parecem janelas para novos locais e a famosa via ferrata numa
escarpa inacreditável. Nada disto era novo para mim, o Sommer e o Diogo, mas
mesmo não tendo visto, aposto que corriam com o mesmo sorriso parvo estampado na
cara com que eu estava.
Depois
de percorrida a cumeada chegamos à base do ataque final ao Mulhacen. 400 metros
de subida ingreme, num zigue zague espetacular, levar-nos-iam até aos 3480m no
topo da Península Ibérica. Esta é provavelmente a minha subida preferida de
todas que já fiz. É perfeita. O trilho tem pequenos patamares que permitem ir
moderando o esforço, num caminho com pedra grande e terra no qual vamos
constantemente a avaliar a maneira mais eficiente de subir. Colei atrás do
Sommer, que também se dá muito bem em altitude e neste tipo de subida. Mesmo
sem termos falado durante a subida, sabia que ele estava no mesmo estado de
euforia que eu quando trepámos para cima do palanque de rocha onde está o marco
dos 3480m. Primeira conquista do dia. Esperámos, pouco, pelo resto da malta
para a fotografia da praxe e apressámo-nos em direção da descida. A temperatura
era muito baixa, apesar do sol.
No topo do Mulhacen |
Nesta
altura tínhamos duas hipóteses. O plano inicial era descer até Trevelez (ou
Trelevez? A dúvida mantém-se. Não, não quero ir ao Google!), base do duplo
quilómetro vertical que tínhamos no menu, mas decidimos passar pelo refugio
onde dormiríamos para comer e reabastecer. O ano passado descrevi esta descida
como sendo à mau. Basicamente são 1000m de desnível negativo em 4km, sem
trilho, numa encosta com pedra, terra e arbustos. Se no ano passado ainda
andámos num estradão na primeira parte da descida, desta vez não estivemos com
contemplações e apontámos ao refugio logo desde lá de cima. Mas a melhor
maneira de perceberem é verem este pequeno vídeo do Sommer a descer por esta
mesma encosta.
Refugio Poquera |
Estivemos
20 ou 30 minutos no refúgio. Quando saímos já eram 13 horas. A segunda parte do
treino era basicamente descer 1000m até aos 1500 (em Trevelez), depois subir
2000m até ao Mulhacen (3480m) e voltar a descer 1000m de volta ao refúgio.
Contas por alto, tínhamos 9 horas de caminho pela frente. O jantar no refúgio
só era servido até às 21, ia ser muito apertado. Decidimos descer na mesma,
depois logo se via. Se nos víssemos apertados, ali por volta dos 2700m,
apontaríamos ao refúgio. Se ao menos fosse tão fácil…
Antes
da grande descida para Trevelez/Trelevez tínhamos um monte para transpor, que
só iria aumentar a descida. No total foram cerca de 8km com uma perda de
elevação de 1200m! Uma brutalidade! O melhor de tudo é que era num single que
zigue-zagueava na encosta formando pequenos patamares. Frequentemente dava para
cortar caminho e passar de um patamar ao outro, ou então seguir no caminho e
aumentar a velocidade. O trilho fazia lembrar muito o que encontrei nos Alpes,
com pouca pedra e muito corrível. Até a paisagem era parecida, existindo muito
água nesta vertente da serra as encostas estavam cobertas de verde. Ninguém se
poupou nesta descida. O mais impressionante é que também ninguém se distanciou!
Durante os 50 minutos que demorámos a descer quase ninguém trocou palavras,
todos estávamos completamente compenetrados na missão. Não houve esperas,
ninguém forçou, todos estavam a curtir a descida à sua maneira. Com a povoação
a aproximar-se lentamente, a temperatura aumentava a cada metro descido. A
amplitude térmica que apanhámos neste fim de semana é inacreditável. Desde
temperaturas negativas nos picos até 30 e muitos graus no fundo do vale em
Trelevez.
Trevelez (ou Trelevez?) |
Abastecimento |
Parámos
uns breves minutos para beber água e encher os tanques em Trelevez antes de
atacar a besta do dia. A temperatura estava altíssima, e se a altitude
influencia o desempenho, acho que a temperatura alta ainda o faz mais. Todos
estávamos conscientes que teríamos que começar a subida rapidamente para apanharmos
ar mais fresco.
O caminho, primeiro num estradão e depois num trilho que eu podia jurar já tinha percorrido nos Alpes, mostrava-se vagarosamente vale acima. Passámos por inúmeros ribeiros onde molhei a cabeça e enchi os flasks com água gelada. A subida é inacreditavelmente longa! Quando chegámos à cota 2700, a tal que supostamente nos permitiria virar para o refúgio, estávamos ainda com montanhas altíssimas a 360º. A solução era continuar caminho até dar para cortar. Assim foi até entrarmos numa zona mais técnica com muita pedra, que ladeava uma cascata espetacular perto dos 3000m.
A cascata e um gajo qualquer |
Virada essa ponta final, entrámos num patamar enorme, todo coberto de verde, com pequenas lagoas resultantes da neve derretida. A água corria de uma para a outra até sair pela cascata que tínhamos passado e de seguida alimentava todos os pequenos ribeiros que fomos passando. Parámos uns minutos a comer em cima de uma rocha e a contemplar mais um local de outro mundo. Uma espécie de cratera, com o Mulhacen 500m acima, ladeado por todos os lados por montanhas menos por uma janela, onde nascia a cascata.
Pensámos que era a altura certa para cortar caminho para o refúgio, já faltava pouco para a hora de fecho do jantar. Mal sabíamos que para isso ainda teríamos que subir mais 200m, ficando a escassos 300 do Mulhacen. Infelizmente não haveria tempo para essa recta final, ainda por cima o cansaço de 12 horas de treino estava a começar a fazer estragos na comitiva, e esta parte final da subida foi psicologicamente muito dificil, porque pensávamos que já estava. Virada a cumeada ficou a faltar a descida para o refúgio. Foi aqui que atirei a toalha ao chão. Tinha metido na cabeça que esta ponta final seria num estradão suave, mas mais uma vez foi encosta abaixo. Fui-me completamente abaixo e arrastei-me até ao fim da cauda do grupo. Uff.
Queria guardar um parágrafo para o refúgio porque foi uma experiência muito engraçada. O Diogo, organizador da empreitada, tratou de reservar dormida para o grupo inteiro no refugio de Poquera. Estamos então numa casa aos 2500m, literalmente no meio da montanha. Assim que entramos pedem-nos para tirar as sapatilhas e calçar umas croc, para não sujar os quartos e áreas comuns. Sentamo-nos à mesa juntamente com uns 40 ou 50 outros residentes e esperamos que nos seja servido um jantar de dois pratos e sobremesa. De seguida cada um de nós aluga uma toalha e uns lençóis. O refugio fornece o edredon e almofada, mas temos que fazer a cama com uns lençóis descartáveis. Para o banho são compradas umas fichas que nos permitem 4 minutos de água quente! E são mesmo quatro minutos, os 3 ou 4 duches têm uma maquineta com um temporizador que mostra a contagem decrescente. Lembrem-se que estamos no meio da montanha, não há nenhuma infra-estrutura (esgotos, água canalizada, energia elétrica), tudo tem que ser racionado! As camaratas dão para 16 pessoas e são fornecidos cacifos para guardar as coisas. Nunca tinha estado em nenhum refúgio, mas adorei ficar neste!
As croc cor de rosa |
Jantar |
A hora do silêncio era às 22. Apesar de +/- respeitada, estava tão esgotado da jornada que uns minutos depois ferrei e só acordei às 7! Não me lembro da ultima vez que dormi 8 horas eheh Isso obviamente ajudou a que tivesse uma noite regeneradora e estivesse de baterias carregadas para o segundo dia. Desta vez o plano era mais simples: subir um KV até ao Mulhacen, percorrer a cumeada dos 3000m e descer até Pradolano, cerca de 20km.
À saída do refúgio para o segundo dia |
No inicio da subida percebi logo que estava bem e foi um prazer até chegar novamente ao pico. Esta subida tem a ponta final, os 400m do ataque ao Mulhacen, em comum com a que fizemos no primeiro dia. Mais uma vez ataquei-a com o Sommer, desta vez a forçar o ritmo e a acabar a dar tudo. Que adrenalina! Como chegámos lá mais cedo a temperatura ainda estava muito baixa, arrefecemos rapidamente. Uma das coisas que me mete mais respeito na montanha são as variações de temperatura. Estava sol, mas bastava o vento fortíssimo empurrar uma pequena nuvem para a frente dele que sentíamos a temperatura a baixar facilmente 5 ou 6 graus. Sentámo-nos lá em cima uns minutos protegidos pelas pedras mas não demorámos muito até perceber que era urgente descer.
Abrigados no Mulhacen |
Com o grupo fresco, o caminho de volta foi muito tranquilo. Sempre na conversa, a andar a bom ritmo, lá chegamos ao colo do Veleta antes de iniciar a descida final de 1000m até ao carro. O ano passado penei muito nesta descida, por isso este ano decidi ir com o Brito por um estradão paralelo que descia mais devagar, ao contrário do resto do grupo. O pior é que descia tão devagar que se tivéssemos continuado ainda lá andávamos às voltas a esta hora! Não demorou muito até perdermos a paciência e atalhar à mau até encontrar o resto do grupo.
À chegada |
Contas feitas, foram 41km com cerca de 3800D+ no primeiro dia e 20km com 1500 no segundo. Mas este fim de semana foi muito mais que isso. Foi um daqueles que me fazem lembrar porque gosto tanto deste desporto. Foram muitas horas de partilha, horas vividas intensamente por um grupo de 9 que até esta altura nem sequer era assim tão intimo. Ao ler a brilhante crónica do Sommer sobre este fim de semana fico roído de inveja por não conseguir transmitir-vos tão bem como foi bom. O que vos posso garantir, com toda a certeza, é que passem os anos que passarem vou recordar estes 3 dias com um sorriso.
No Mulhacen. Melhor foto do fim de semana! |