As minhas corridas na estrada

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Freita Skyrunning (42km) - Uma prova quase fofinha

"Freita Sky Marathon. É uma prova sonsa, começa toda fofinha e depois mastiga-te." M.S.D.


Pronto. Este relato podia ficar pela citação do Miguel, o que até dava jeito porque ao elaborar terei inevitavelmente que falar da diferença do sky running para o trail normal e não sei bem qual é. Mas não, vou a fundo.

Ora bem, pelo inicio. Este fim de semana corri os 42km da Freita Sky Marathon na...isso mesmo, na Serra da Freita. Além dos números impressionantes, 2800+ para a distancia, aliciava-me conhecer finalmente os trilhos técnicos e agrestes desta Serra, coisa que, curiosamente, cada vez me atrai mais. A 5 semanas do UTAX, distancia e desnível na medida certa: toca de esmifrar o Airbnb, pegar na Sara e nos miúdos e partir para um fim de semana na montanha. 

Tenho que confessar, desde o início que algo me parecia estranho com esta prova. Uma primeira edição, por uma organização que nunca tinha ouvido falar, uma imagem simples e uma página de Facebook apenas com o essencial. Numa altura em que somos bombardeados com spam diário de tudo o que é prova, pareceu refrescante. Bom, na verdade deixou-me de pé atrás. Pensei: na pior das hipóteses faço um bom treino, até me perder por más marcações, desidratar por não haver água nos abastecimentos e cair de uma ribanceira de 800m. Não há-de ser nada. 


As duas ultimas corridas que participei foram o MIUT e a Mitic, duas super provas, com organizações gigantes e centenas de pessoas. Já não me lembrava o que era levantar um dorsal sem confusão, ir até à primeira fila por baixo do pórtico cumprimentar amigos e voltar lá para trás para esperar calmamente pela partida. Às 9, hora marcada para a partida, ainda alguém da organização discursava a agradecer a presença de todos, os cerca de 80 que partiam para os 42km e outros tantos para os 25. 

Poucos minutos depois, sem qualquer expectativa ou conhecimento do que me esperava, partia para enfrentar aquele que certamente foi um dos melhores e mais desafiantes percursos que já percorri.



Até ao primeiro abastecimento
Começou fofinha, como diz o Miguel. Uma pequena subida em estradão e logo entrámos num trilho com mais de 2km a descer por entre maciços graníticos cravados no chão. O pequeno pelotão rapidamente dispersou. Corria completamente à vontade e assim continuei na subida de 300+ que nos levaria de volta à cota inicial. Praticamente toda a suave subida foi feita a trote, até abrir a passada e entrar na simpática descida em single track que nos levou até ao primeiro abastecimento, nos 10km. Cheguei lá com 1 hora de prova. 

Hm, isto do sky running é só manias, a prova até é bem fofinha!


O abastecimento estava a meio da descida. Rapidamente comi uma banana, uns salgados, beijos na Sara & miúdos e segui caminho a bom passo. A descida continuou agora junto a uma levada, num trilho muito estreito e incerto. Algumas pessoas optaram por ir com os pés dentro de água, outros, como eu, continuaram a saltitar de uma margem para a outra do canal. 

Desde a partida que raramente saímos de trilhos. Trilhos simpáticos que percorri quase sempre a correr, mesmo quando subia. Até que, do topo daquele montículo, se viu a descida que nos levaria ao fundo do vale. 

Olá. Isto é novo. 

Do topo via-se o fim da descida, 200 metros abaixo, até ao fundo apertado de um vale enorme. O trilho era selvagem, completamente exposto, por entre xisto solto e inclinações brutais que controlei com os bastões. Chegados ao fundo do claustrofóbico vale nem tivemos tempo de respirar antes de apanhar com uma parede subida a 4 apoios: pés e braços. 

"Poupem as pernas, a partir de agora isto é muito duro!!" Dizia um elemento da organização presente naquele sitio.


Até ao segundo abastecimento, situado a meio da grande subida de 800m que nos separava do topo, corremos num single espetacular, super variado, com picadas fortes a subir e pequenos troços planos que davam para esticar as pernas. Passámos pelas aldeias abandonadas de Porqueiras e Berlengas, por cascatas e trilhos de xisto, sempre numa sombra fresca.

Cascata de Porqueira. Sacado do Google, obviamente.
O abastecimento, situado na aldeia de Lomba aos 19km, marcava o meio da subida e parecia que entrávamos numa serra diferente. Os trilhos apertados e sombrios de xisto passaram a grandes paisagens de granito, expostas, megalómanas. Trepávamos agora por entre grandes maciços. Subíamos da minha maneira preferida: sem trilho. As fitas, sempre visíveis, estavam bastante distanciadas e deixavam ao nosso critério a melhor trajectória a seguir. Nem parecia que estávamos na mesma prova! 

A chegar ao topo. Foto do Nuno Baixinho.
Sem dar por isso já estava nos 1000m, no fim de uma longa e muito variada subida. Antes da descida tínhamos pela frente 3km de planalto para correr entre manadas de vacas arouquesas, solo macio e granito. Muito granito. 

42km não é de forma alguma uma distancia pequena, mas o meu chip ainda estava ligado nos três dígitos. O facto de percorrer menos de metade disso oferecia-me a confiança para abrir a passada e curtir os trilhos como há muito não o fazia. As pernas estavam soltas e eu fiz-lhes a vontade. Corri no planalto e na descida muito técnica, com muita pedra solta, até ao 3º abastecimento, onde estava novamente a minha comitiva. 



Estiveram muito tempo no abastecimento com pouco para fazer...



Mais uma vez, a descida levou-nos até ao fundo d'O Vale Mágico (é mesmo o nome, não estou a inventar). É impressionante como fica apertado lá em baixo. Acho que se abrirmos os braços conseguimos tocar nas duas encostas ao mesmo tempo. 

A coisa já tinha deixado de ser fofinha há algum tempo, mas agora ia começar a apertar. Esperava-nos um monstro de 800D+ percorridos em menos de 4km. E não foi meigo. 

O primeiro golpe foi disferido sem misericórdia. Uma parvoíce de uma encosta que nos levaria a ganhar cerca de 200m verticais com inclinações entre os 40 e 50%. Não, não me enganei a escrever. Ainda com as pernas a tremer, já fora da linha das árvores, deixamos a terra escura e húmida e voltamos ao austero granito. Vão-se os trilhos, volta novamente a outra face da prova. A encosta muito inclinada protege-nos do vento fresco que sossegava o calor e a subida continua a bater, bruta, até que finalmente avistamos a torre meteorológica, aos 1050m.

Quase lá em cima.
"O pior já passou!", dizia um senhor da organização lá em cima. 

Bom, se calhar tem razão. 33km, as duas principais subidas estão conquistadas, falta ali uma rampazinha de 350m mas não há-de ser mais difícil que esta.

Lembram-se da frase do MSD? Pois bem, entrámos na boca da Freita, agora é que vamos ser mastigados.

Parece fácil.
Logo a seguir à torre o percurso parece dar razão ao senhor. Um estradão, praticamente o único de toda a prova, embala-nos para 1.5km de corrida rápida e confortável, até apanharmos uma pequena rampa e nova descida tranquila, agora em trilho. Entrávamos na aldeia de Cabaços, local de uma segunda barreira horária. 

E então começou. Aos 36km, 6 do fim, quando tudo parecia resolvido, a Freita mostrou-se finalmente em todo o seu esplendor. Não há volta a dar, íamos ser sovados a torto e a direito e nem sequer desconfiávamos.

Aldeia de Cabaços.
Sem pedir licença, logo a seguir à saída da aldeia, mandam-nos para uma encosta que parecia saída dos Pirineus. Passámos por sítios vertiginosos durante a prova, mas nada como ali. Honestamente, tive medo de escorregar enquanto descia apoiado no rabo e com as mãos no chão. E não era uma rampa pequena. Descemos e descemos, sem trilho, num caminho cada vez mais difícil que se embrenhava nas árvores. Os bastões eram inúteis enquanto tentava única e simplesmente não resvalar por ali abaixo. 

O barulho de água a correr avisa-nos do fim da subida. De facto lá estava ela, a correr entre grandes maciços de granito no fundo de um vale. Atordoado ataquei imediatamente a subida, que ainda por cima era uma nova rampa super inclinada e incerta. 

Pufff. Progressão lentíssima. A subida acalma e entramos num trilho difícil que percorre a encosta numa espécie de varanda por entre as árvores. Paro para respirar e beber um pouco de água, enquanto aproveito para olhar à volta. Foi então que fiquei completamente arrebatado.

Não estava à espera. Não sabia que íamos passar ali! Ouvi falar dela dezenas de vezes, mas não esperava que fosse assim. Não consigo imaginar melhor maneira de a conhecer. Estava bem no coração da Frecha da Mizarela, à minha frente a água corria quase em câmara lenta pela gigantesca encosta de pedra até explodir no fundo do vale. Foi arrepiante. Saquei do telemóvel pela primeira vez para tirar uma fotografia, mas, como sempre, cheguei rapidamente à conclusão que não vai captar nem uma ínfima parte do que é estar ali e vê-la pela primeira vez. 

É impossível encontrar uma foto que lhe faça justiça.
Estava na barriga da besta. O trilho leva-nos ainda mais para baixo, numa descida muito perigosa que vou gerindo curva a curva. O tempo passa muito mais depressa que os metros. São, de longe, os quilómetros mais lentos de toda a prova. Começo a ficar com medo da "pequena rampa de 350m" que falava há bocado. 

Adivinhem? Sim, o medo era justificado. Já bem mastigados, a Freita preparava-se para nos cuspir. 

Apesar de ter metade do tamanho das outras, foi de longe a mais difícil. Completamente selvagem, sem trilho, com mato e pedras, exposta. Parece que um dos princípios do Sky Running é ir do ponto mais baixo ao mais alto pelo caminho mais curto possível. Aqui foi aplicado na perfeição! Que filha da mãe de subida! Estava a escassos 2km da meta e tinha a sensação que ainda ia a meio da prova! Lá em cima um elemento da organização incentivava com vontade todos os que se arrastavam encosta acima. Quando lá cheguei parei, olhei para ele e sorri. Ele riu-se de volta e disse-me orgulhoso: "Inventámos esta só para a prova!".

Demorei quase meia hora a percorrer os escassos 800 ou 900 metros! C'um caraças. Ainda com as pernas bambas corri na descida difícil e cheia de pedra que nos deixou às portas de Felgueira, a 500 metros da meta. Até que, finalmente, tivemos descanso. Era só passar o pórtico.


Que surpresa de prova! Adorei cada metro! O percurso é perfeito, foi-se mostrando nível a nível, nada monótono. Foi duro e técnico, com muito desnível e trilhos de progressão muito lenta, mas, como é característico das melhores provas, nunca deu a impressão que nos estavam a dificultar a vida só porque sim. A organização tem o maior crédito por ligar os diferentes trilhos de uma maneira que fez perfeito sentido. As marcações estavam impecáveis, sem exageros e colocadas de forma inteligente. Os abastecimentos, 4, eram suficientes e bem compostos. O único reparo que tenho é pela ausência de pessoal nas zonas mais perigosas. Atenção, sou completamente a favor da inclusão destas passagens, mas houve zonas que deviam ter alguma vigilância. 

Parece que há um bocado a tendência de colar a Freita ao UTSF e ao inevitável Moutinho. Mas, tal como a Serra da Lousã tem provas como o UTAX, Abutres ou Louzan, há espaço nesta magnifica Serra para mais que uma prova. Na minha opinião, esta primeira edição foi um sucesso estrondoso e esta prova tem tudo para ser marcante. Foi certamente das melhores que já participei e de certeza que vou voltar. 

Ah, já agora, lembram-se daquelas vacas arouquesas que eu disse que vi lá em cima? O naco que comi nessa noite era mais ou menos do tamanho de uma inteira.

Não me queria ir embora sem mostrar isto.



terça-feira, 5 de setembro de 2017

Porque fazemos o que fazemos.

Este fim de semana, em conversa com uns amigos Muggles, veio à baila a empreitada que o português José Massuça vai iniciar no Hawai daqui a uns dias: o EPIC 5. Trata-se de um ironman por dia, durante 5 dias, em 5 ilhas diferentes daquele arquipélago. Imediatamente a conclusão de todos foi que isso é uma parvoíce e que "já é de mais". Bem, de todos menos...eu. 

Não sei exactamente em que ponto da minha vida se deu a mudança. Tempos houve em que eu próprio falei em exagero, loucura ou ultrapassar limites. Como em 2010, quando corri a minha primeira maratona e me falaram em ultras. Ou 2012, quando fiz o meu primeiro trail, de 30km, e no mesmo dia se corriam os 80km do UTAX. 

O que leva alguém a fazer 5 ironman seguidos? Atravessar o Canal da Mancha a nadar, correr 250km no sitio mais quente do planeta, 300km nos Alpes ou na Via Algarviana? O que leva alguém, que tem uma família e uma profissão, a passar horas a treinar de madrugada, quando não tem a mais pequena ambição de sequer chegar a um pódio, quanto mais fazer uma vida disto? 40 ou 50 minutos de exercício 3 vezes por semana parece-me perfeitamente razoável para ter uma vida saudável, porque é que não ficamos por aí? Porquê perseguir uma série de conquistas inúteis, como tão brilhantemente o Rui Pinho descreveu depois da sua participação no UTMB'17?

A resposta não vem na forma de uma epifania. Aliás, sinceramente nem sei se há uma resposta! Cada um tem as suas motivações, suponho. Descobrir até onde podemos chegar, estar em comunhão com a natureza, a aventura ou a competição. Eu persigo aquela sensação de estar na linha de partida de uma aventura que durará 1 ou 2 dias, depois de horas e horas de treino, sem fazer a mínima ideia do que me espera. A conquista da distancia, do desnível, o virar de um cume, a vertigem de uma descida, o medo, a euforia, o desespero...

Mais do que uma resposta a esta pergunta, o ponto de viragem aconteceu no momento em que percebi uma coisa muito simples: nós somos capazes. 

Não é nenhum gene especial ou super poder físico. 

Sim, eu sei que isto soa a Gustavo Santos, mas a conclusão não podia ser mais básica e despretensiosa! É que, por arrasto, de repente damos por nós a fazer a pergunta que pode mudar a nossa vida: porque não?

Eu não sei qual foi a motivação do Massuça para ir fazer o EPIC 5, mas entendo-o.