As minhas corridas na estrada

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Ultra Trilhos dos Reis (47km) - Tudo no sítio certo!

Fiz o meu primeiro trail em 2012, dois anos antes da primeira edição dos Trilhos dos Reis, na altura Trail do Centro Vicentino da Serra. Das 4 edições anteriores guardo duas coisas: a inveja pelas inconfundíveis camisolas de manga comprida que via desfilar por aí e uma torrente de elogios que aumentava de ano para ano. Por acaso e, bom, pelos Abutres que se realizam duas semanas depois, foi apenas na quinta edição que rumei a Portalegre em Janeiro. Hoje posso dizer que demorei 5 anos a mais do que devia. Os Trilhos dos Reis entraram definitivamente no meu top de melhores provas do país.

Como toda a gente sabe, Portugal não é propriamente um país com muita montanha, particularmente do Tejo para baixo. Com a explosão de provas de trilhos distinguem-se facilmente alguns tipos de organizações. Há uns que têm a sorte de ter uma montanha e aproveitam os recursos naturais sem terem que se esforçar muito, depois há aqueles que não tendo relevo nenhum de especial trabalham por maximizar a mão que lhes foi dada, há ainda um terceiro caso, aqueles que elevam as suas provas à excelência. Esses, além de terem uma boa base de partida, não ficam contentes e arregaçam as mangas. 

A Associação de Desporto e Aventura de Portalegre (DAP) podia simplesmente ter utilizado o recurso que tem, a Serra de São Mamede. Ligavam uns quantos PRs com estradões, percorriam um ou outro trilho do BTT e faziam disso uma prova. Uma como tantas outras. Mas não, eles decidiram que a sua prova não seria igual às outras. Eles souberam ouvir, evoluíram, aproveitaram os bons exemplos, aceitaram criticas e, principalmente, tiveram a humildade de perceber que os 1000m da Serra, só por si, não eram suficientes para tornar os Reis numa prova de excelência. E, com uma região inteira por trás, criaram uma das melhores provas a que já fui: Os Ultra Trilhos dos Reis.

Atletas do GPD presentes nas 3 provas do evento
Dentro do mercado, no briefing

Percebe-se assim que se entra em Portalegre que a cidade se orgulha da prova. Confirmou-se durante o briefing incial onde, no mercado municipal a rebentar pelas costuras, todo o executivo camarário, além do José Presado do DAP, discursou  para os mais de 500 atletas que iam partir na prova grande (47km). Um conjunto de percussão, que nos iria acompanhar em vários pontos da prova, tratou de acelerar ainda mais as frequências cardíacas momentos antes de se dar inicio à partida simbólica, que nos levaria para o pórtico no exterior do mercado. Antes disso ainda teve lugar uma merecida e, pelo menos para mim, muito emocional homenagem à Antonieta. A minha antiga colega de equipa, conterrânea e acima de tudo amiga Antonieta, que, como todos sabem, tragicamente nos deixou uns dias antes. Em circunstancias normais ela estaria ali naquele dia, se não para correr pelo menos para acompanhar o Gaio. A sua paixão, como ele sempre a chamou. Foi muito emocionante sentir o peso do silencio das muitas centenas de pessoas que estavam ali e a posterior salva de palmas abafada pelas luvas. Lembrei-me muitas vezes dela durante a prova e acredito que o mesmo tenha acontecido a todos os que a conheceram. Que descanses em paz, amiga. 


Lá fora o dia estava frio, mas não tão frio como o esperado. Na verdade a temperatura nunca subiu muito, andei praticamente o caminho todo com as luvas e não despi nenhuma camada, mas o céu estava limpo e o vento calmo. Estava perfeito. Despachado o controlo zero, os quase 500 atletas partiram para os 47km dos Ultra Trilhos dos Reis. 

Fotografia da Bernardete Morita
Não demorou muito até sairmos do alcatrão e entrarmos nos trilhos, local onde decorrem praticamente todos os 47km da prova. Os primeiros 10, 15km pareciam confirmar a ideia que eu tinha do percurso. Uma prova rápida e corrivel, onde não haviam propriamente subidas mas onde estávamos constantemente a subir e descer. Não sei se me percebem. Trilho atrás de trilho, nesta altura ainda sem grande dificuldade técnica, ora em caminhos antigos ora em trilhos abertos de fresco. Só muito raramente percorremos ligações em estradão. Tão raramente que praticamente não me lembro de nenhum! Frequente era também a sensação que a organização estava em todo o lado. Com gritos de incentivo, a Lili vestida de bruxa, outros vestidos de monges, bobos da corte e sei lá mais o quê. Por todo o lado sentia-se que a prova era pensada metro a metro, a fasquia estava bem elevada naqueles primeiros quilómetros, mas a verdade é que até ao fim da prova as surpresas sucederam-se, como que a distrair-nos do massacre que aquele parte pernas estava a ser para o corpo.

Hajam pernas para partir
Abastecimento intermédio, onde estava a bruxa. Reparem no pormenor das etiquetas
Os trilhos da primeira parte. Pelo fotografo oficial do Quarenta e Dois: MIGUEL CADALSO. Desta vez não andei ao pé dele não apareço em nenhuma. 
A primeira subida de registo aconteceu aos 13km, no primeiro ataque ao pico. Foram cerca de 300+ num corta fogo bem inclinado, intitulada "Subida dos Infernos". Já perto do topo deixamos os estradões xistosos e avistamos as primeiras paisagens graníticas. Depois de conquistadas as antenas, que já conhecia do UTSM, viramos para um trilho espectacular (acho que era chamado Trilho da Serpente) que, adivinhem, serpenteava por entre os pinheiros num piso macio coberto de caruma. Este embalava-nos rapidamente para o terceiro abastecimento, reconhecível pelo ribombar dos tambores a quilómetros de distancia. 

Na Subida aos Infernos (Miguel Cadalso - MC)

Perto do topo, lá em cima estavam uns monges (MC)
Claro que o Cadalso tinha uma foto do Trilho da Serpente (MC)
Há algum tempo que decidi não voltar a falar de abastecimentos por aqui. Quebrei a regra na UTAX, por razões negativas, e agora vou quebrar uma segunda vez, precisamente pela razão contrária. Os abastecimentos do UTDR, particularmente este terceiro, foram dos mais completos que já vi na vida. Muita gente a dar apoio, muitas mesas para dispersar as pessoas e uma quantidade incrível de escolha. Não houve nenhum abastecimento que não tenha emborcado 4 ou 5 fatias de presunto, e a prova que eram suficientes e bem posicionados é que, ao contrário de praticamente todas as provas que faço, só consumi 1 gel de toda a comida que levava. 

Chegada ao abastecimento, com a recepção dos tambores (MC)
Saídos do abastecimento iniciámos novo ataque aos 900 metros, desta vez por trilho. Nesta altura comecei a notar que estes estavam a ficar cada vez mais difíceis e técnicos. As descidas já não eram feitas a abrir mas antes com constante atenção às muitas pedras que cravejavam o caminho. Foi por aqui que entrámos numa das zonas mais técnicas, e mais bonitas, do percurso. Se bem me lembro, era chamado o trilho do Castelo dos Reis. Um caminho muito técnico, numa encosta de uma garganta granítica muito apertada, que culminou numa escalada daquelas que requerem muita abertura de pernas, pelos grandes maciços de granito. 

Logo a seguir às Antenas (MC)

MC

Inicio do trilho do Castelo dos Reis (MC)

Esta não era muito corrível (MC)
Fomos avisados no briefing que 2000 dos 2500m de desnível positivo seriam vencidos até aos 30km, mas estávamos com cerca de 29 e ainda faltavam mais de 300m. Sabia, pelo perfil, que nos estava reservada a subida que mais saltava à vista antes dos 30, mas como faltava tão pouco pensei que não chegaríamos aos 2000. A opinião foi-se consolidando à medida que subíamos suavemente por um trilho simpático, até que saímos da linha das árvores, curva de 90º à direita e.. PUUM, à nossa frente estende-se uma encosta totalmente despida inclinadíssima, cortada por uma linha que se estendia por 1km de pessoas completamente dobradas, agarradas aos joelhos! Ataquei-a como faço sempre que não levo bastões, com as mãos atrás das costas de maneira a não dobrar muito as costas. Fui subindo e evitando olhar para a frente, só para os pés. A encosta empinava cada vez mais quando tentei subir aos ésses e a pisar as pedras maiores, de forma a não esticar demasiado a parte de trás das pernas (aquela treta do Aquiles que trouxe da UTAX ainda dá sinal de vez em quando). Apesar de não ser uma grande subida foi verdadeiramente desesperante. Gosto de subidas em trilho, desafiantes e técnicas, aquilo era o oposto. Uma parede autentica feita com o nariz a tocar no chão. Não havia opções a tomar nem estilos diferentes de subir, era ir em frente, tentar não rebolar por ali abaixo e mamar a pastilha! 

MC
As fotos nunca fazem justiça às subidas! (MC)
Lá em cima, nos 30km e já com os tais 2000+, estava um abastecimento intermédio com uma banca da Delta. Bebi um café quentinho e um bocado de Boleima (acho que era assim, o nome), um bolo muito bom que nem conhecia, e, com a promessa de sopa do próximo abastecimento, fiz-me aos 9km que me separavam desse. Pensava que o pior já tinha passado. Ia com um pouco menos que 4h30, faltavam 17km e apenas 500+, pensei que seria um passeio até ao fim. Mas a minha prova deu uma volta de 180º.

Logo a seguir ao abastecimento, troquei as pernas de subida pelas de descida e estas ainda responderam bem. Mas o percurso estava a mudar. Trilho técnico atrás de trilho técnico, o parte pernas era cada vez mais notório. Até que passamos por uma placa a dizer "Bem Vindo ao Carrossel dos Príncipes". Um emaranhado de trilhos com muita pedra, cruzamentos de linhas de água, cordas e constantes subidas e descidas curtas. Comecei a ir muito abaixo e já me arrastava por ali. As pernas começaram a tremer e ansiava pelo abastecimento para poder comer a prometida sopa, sentia-me muito fraco e já com bastante fome. Meti o único gel da prova e ainda comi umas gomas da GU que comprei na feira, mas continuei a sentir as pernas a tremer, ofegante e com a cabeça à roda. Era um suplicio cada vez que tinha que me agarrar a uma corda para subir e fui ultrapassado por muita gente.

Carrossel dos Principes (MC)

MC

Venham cá dizer que os Reis são todos corriveis (MC)
Assim que entro no abastecimento agarro-me à primeira tijela de sopa que vejo e sento-me abraçado ao prato quente. Não tirei os olhos da colher até ver o fundo do prato. A maravilhosa e espessa sopa de legumes com massa, muito quente, foi como um salva vidas. Respirei fundo de alivio e satisfação quando senti o corpo muito mais confortável. 

Sorry, Francisco. Não tinha outra foto da Sopa :) (MC)
Até lá abaixo o caminho foi sem história, uma série de trilhos a descer, intercalados com pequenas subidas (como sempre) embalaram-nos até aos 200 metros de alcatrão antes de voltar a entrar no mercado municipal, local onde estava instalada a meta. Até ao fim ainda tive o incentivo de uma luta intensa contra o relógio, assim que decidi apanhar o comboio das 7. Cruzei a meta com 6h58, foi mesmo à conta!

Os ultimos trilhos, a descer para Portalegre (MC)

A minha chegada apoteótica. Mais ou menos, vá.

Eu com o meu director de imagem, Miguel Cadalso!
Quem me conhece e segue o que aqui vou escrevendo sabe que este não é propriamente o meu tipo de percurso favorito. Dou-me muito mal em percursos tipo parte-pernas, mas isso não me impede de reconhecer o trabalho de excelência que o DAP desenvolveu nestes Trilhos dos Reis. Dá a impressão que, sendo eles próprios atletas, pegaram em todos os bons exemplos que foram apanhando noutras provas e aplicaram-nos na deles. O percurso é 90 e muitos por cento em trilho, muitos deles abertos de propósito, num esforço muito grande para ligar caminhos existentes fugindo a estradões. É muito variado, com secções fáceis e rápidas intercaladas com outras muito técnicas. É divertido e desafiante, os 2600D+ em subidas curtas contam a história. As marcações são perfeitamente irrepreensíveis, os abastecimento fora de série e toda a logística em torno da prova é impressionante. 

Senti-me em casa em Portalegre e só tenho pena de uma coisa: ter chegado com 5 anos de atraso!

Portalegre ao fundo. MC, claro. Até para o ano!