A partir do momento em que à meia noite em ponto passamos a meta em Porto Moniz, estamos à mercê dela. Tal como um predador que consegue cheirar o medo nas suas presas, a ilha sente imediatamente o odor da sobranceria, da má preparação e da leviandade. O caminho que liga uma ponta à outra daquele paraíso, levando-nos às entranhas mais profundas de montanhas e florestas, elevando-nos abruptamente do nível do mar ao cimo das nuvens, está lá, escancarado. Ela concede-nos passagem, mas a portagem é muito cara. Não serão os mais fortes, que tentarão forçar a passagem, nem os mais manhosos, que pensarão erradamente tê-la percebido e encontrado algum truque infalível, a obter passagem. Não. Só passarão os honestos. O preço a pagar para atravessar a ilha é nada mais nada menos que deixar tudo de nós em cada metro dos mais de 115km. Entregar-nos de corpo e alma e esperar que tudo o que temos seja o suficiente. Na minha quarta tentativa de travessia ousei levantar ligeiramente a cabeça e pensar em tempos e marcas, mas não demorou muito até ter sido posto no meu lugar. "Meu menino", terá pensado ela, "por mais que te ponhas em bicos dos pés, nunca serás mais alto que um grão de areia".
Créditos na foto |
Uns minutos antes da meia noite fechei os olhos e respirei profundamente. Desde a minha primeira travessia, em 2015, que mais que dobraram os participantes, este ano são quase 800 a apresentarem-se em Porto Moniz. Durante a noite este número iria sofrer um grande desbaste, mas àquela hora a euforia era impressionante. À medida que o relógio da prova se aproximava da meia noite eu aumentava os períodos de introspecção. Tentava por tudo acalmar a ansiedade que me dava um nó na garganta, mais apertado ano após ano. Foi de olhos fechados que ouvi a contagem decrescente e sem sequer esboçar um sorriso parti para mais uma grande aventura. Começou o MIUT 2018.
Créditos na foto |
Para a minha quarta participação decidi que o objectivo principal seria fazer uma prova sólida e, dessa maneira, baixar naturalmente das 24 horas de prova. Ao contrário dos outros 3 anos, desta vez saí perto do pórtico da meta, no primeiro quarto do pelotão. O objectivo era evitar o congestionamento na primeira descida e atacar o primeiro quilómetro vertical a um ritmo não demasiado baixo.
Porto Moniz - Chão da Ribeira. 19km, 1550+ / 1250- |
Foi preciso chegar ao topo da primeira subida, aquele montinho, para finalmente a ansiedade acalmar. A descida foi feita a ritmo confortável, sem congestionamentos. A meio desta já se ouvia a multidão na Ribeira da Janela, que parece maior e mais barulhenta ano após ano! O bom de seguir numa zona mais adiantada do pelotão é que pude observar em todo o esplendor a mítica serpente do MIUT enquanto atacava o primeiro quilómetro vertical, na subida para o Fanal. O mau, e isto foi um pormenor que nem me passou pela cabeça, é que indo eu numa zona do pelotão que não era a minha, toda a gente tinha um ritmo mais alto que o meu. Ou seja, muita gente me passava e eu não conseguia colar em ninguém. Isto foi inesperado e o resultado foi ter que me concentrar bastante para seguir ao meu ritmo e não tentar acompanhar algum comboio. A estratégia acabou por resultar, cheguei ao Fanal, primeiro abastecimento, cerca de 15 minutos antes em relação aos anos passados e sem ter forçado o andamento.
A serpente. É impressionante vê-la viva, parece uma veia a pulsar |
A previsão meteorológica entretanto tinha-se tornado bastante sólida: partiríamos com tempo seco mas a chuva chegaria por volta das 4 da manhã até às 10. Isto deixou-me aliviado porque, fazendo as contas, seria mesmo à conta de fazer a descida do Fanal com piso seco, aquela que considero a mais manhosa do MIUT. Assim foi, as centenas de degraus e infinitas raízes são muito mais seguras estando secas, permitindo-me percorrê-la de forma confortável e ganhar mais uns minutos na chegada ao Chão da Ribeira.
Chão da Ribeira - Rosário 15.5km, 1400+, 1100- |
Deixei o abastecimento do Chão da Ribeira às 3:20. Seguia-se aquela que para mim é a subida mais difícil da prova, a mítica subida de Estanquinhos. É a tempestade perfeita. Começa com aquela rampa de 5km e 1100+, num trilho de inclinação constante mas bastante técnico, muito trabalhoso. Depois desemboca num planalto que vagarosamente nos leva aos 1600 metros de altitude por estradões completamente expostos. Não houve nenhuma vez que aqui tenha passado sem ver alguém debruçado a vomitar e outros a voltarem para baixo a meio. Não se esqueçam, vamos com menos de 20km de prova! Uma autentica máquina trituradora. O que não falhou foi a chuva, que apareceu pelas 5 da manhã. Nessa altura estava já no tal planalto. A temperatura baixou muito de repente e também de repente percebi que a prova se tinha transformado.
Armando a chegar ao Fanal. Créditos na foto |
Ainda antes de chegar ao abastecimento vesti o impermeável por cima do equipamento e calcei as luvas. Já tinha partido bem equipado para o frio, apesar de nem ter estado muito no início da noite, o impermeável tratou de estancar as perdas de calor. Entrei no abastecimento ainda com uns bons minutos de folga, mas não foi a pensar no tempo final que me demorei o menos possível. Estávamos a 1600 metros, a chuva estava a tornar-se mais pesada e o vento a aumentar. Já tenho experiência suficiente para saber que se me demorasse iria perder energia e gelar assim que saísse da tenda, ainda por cima a descida começava num estradão de cerca de 2km muito exposto, onde não dá para correr muito depressa porque tem muitas pedras. Ou seja, demoraria uma eternidade a aquecer e isso poderia ser fatal.
Bebi um café quente, uns figos secos, batata doce e banana só para cumprir com a alimentação e fiz-me rapidamente à descida. Como previa, o baque à saída da tenda foi muito forte, mas não havia tempo para pensar nisso. Desci da maneira mais eficiente que consegui de forma a entrar rapidamente na densa floresta Laurissilva e pelo menos proteger-me do vento. Por estranho que pareça, senti-me revigorado com o frio. Eram 6 e meia da manhã, o dia estava prestes a nascer, normalmente esta é a fase mais complicada das provas para mim, mas a chuva fria a bater-me nas pernas deixava-me alerta e estava a sentir-me forte quando entrei na segunda fase da descida, a levada. O ânimo aumentou quando percebi que estava a passar em partes que só conhecia de dia e ainda estava de noite cerrada. A terceira fase da descida são os 700 e tal degraus. Muito escorregadios com a chuva. Aqui a coisa começou a complicar-se. Sabia que a quarta e ultima fase era um trilho brutal, com cerca de 3km, onde dava para voar até ao fim da descida, mas assim que o começo a percorrer percebo que com a chuva este se tinha transformado completamente. Agora era um autentico escorrega de lama! Esqueci rapidamente essa história de voar e fui de escorregadela em escorregadela numa progressão muito lenta e esforçada sempre apoiado nos bastões. O resultado foi perder toda a margem que tinha e desgastar-me bastante mais do que previa nesta descida. Enfim, nada a fazer, lamber feridas e siga para a Encumeada.
Rosário - Curral das Freiras 22km, 1600+, 1500- |
O dia nasceu muito cinzento. A chuva fria era constante, nada que não se esperasse. Mantinha-me quente mas obviamente muito desconfortável e foi assim que cumpri os 500 metros de subida em degraus até à Encumeada. Ao virar o colo levo com uma rajada de vento e chuva na cara e a vista brutal para um vale majestoso de gigantes de pedra tinha sido substituída por um branco pastoso. Lembro-me dos meus amigos que estão ali pela primeira vez e tenho pena que não tenham tido aquele choque de entrar num planeta diferente. Cerca de 1.5km de estrada separam-me do abastecimento, no hotel da Encumeada, percorro-os a bom passo para tentar compensar a energia que perdi na subida lenta e dessa maneira aquecer mais um pouco.
Abastecimento do Hotel. Já li por aí que estavam fracos este ano... |
Nestas condições os abastecimentos são um perigo. Num dia tão mau como aquele estava a ser, o pior que podemos fazer é ficarmos confortáveis no abastecimento, depois corremos o perigo de não conseguir aquecer assim que voltarmos à rua. Acho que aqui estive mais stressado do que no fim da descida de Estanquinhos. Peguei numa taça de canja quente e comi-a o mais depressa que pude, enchi os dois flasks porque sabia que se seguia um troço muito grande entre abastecimentos e fiz-me ao caminho. Eram 20 para as nove da manhã, nos 3 anos anteriores liguei à Sara neste ponto, a esta hora, a dar conta da primeira noite. Mas desta vez não quis facilitar com o frio e decidi seguir o mais depressa possível.
Segue-se uma pequena descida que desemboca na famosa subida do pipe-line, uma atrocidade de degraus altíssimos que serpenteia ao lado de um tubo verde. Nesta altura, por volta das 9 da manhã, reparo que ao fundo do vale as nuvens se estão a dissipar, apesar de ainda estar a chover. A previsão parecia estar a bater certo e respirei de alivio, já que cada vez estava mais desconfortável. Esta foi, sem dúvida, a pior noite que apanhei nas 4 edições do MIUT que fiz. Mas a verdade é que a previsão apontava para isso e é nosso dever partirmos preparados para o pior. É muita altitude, são climas diferentes do que estamos habituados no continente e tendo em conta a brutalidade que são os primeiros 30km não se podia facilitar minimamente. Muita gente não resistiu a esta primeira noite, infelizmente, o que contribuiu para uma taxa de desistências record.
O quê? Já viram esta foto? Pois, não tirei uma única outra vez :\ |
Entretanto, antes de virar o colo para descer para o Curral, o tempo já tinha virado. Continuava muito frio e vento, mas as nuvens tinham dissipado.
De ano para ano parece que me custa mais fazer a descida para o Curral! São 4km onde se perdem 800 metros de desnível, num trilho muito técnico, com muitas pedras e degraus, que acaba numa estrada que destrói quadricepes. Este ano a diferença é que em vez de acabar numa estrada de alcatrão que nos embalava até ao abastecimento em Curral das Freiras, ainda tinhamos pela frente um trilho de degraus escavados na terra, muito inclinado. Como referi no post que fiz com dicas para a prova, esta parte deixava-me de pé atrás e o receio confirmou-se. Depois da brutalidade de descida foi muito complicado mudar para pernas de subida e escalar aquele morro, mas fez-se. Cheguei à Base de Vida, no Curral, às 11:45. Precisamente à mesma hora que em 2016, quando tive a minha melhor prestação.
Curral das Freiras - Pico Ruivo 11km, 1370+, 290- |
Assim que entro na base de vida quase que vomito, há um cheiro intenso a merda no ar! Fui só eu que senti?? Tento abstrair-me e depois de ir buscar o saco da muda começo a tratar das tarefas. Depois de tanta barraca que dei em bases de vida, inclusivamente nesta mesma o ano passado, revi mentalmente todos os passos dezenas de vezes. Tratei de mudar de roupa, meter o relógio a carregar, preparar a mala para a segunda metade e só depois tratar da comida e bebida. Esta ultima parte não correu muito bem, tendo em conta que até a comida me sabia a merda por causa do cheiro intenso! Mas lá forcei um prato de sopa com carne picada e arroz lá dentro.
A segunda parte da mudança deste ano vinha a seguir, o trilho antes de iniciar a grande subida para o Pico Ruivo. O que dantes era uma estrada de alcatrão com cerca de 1.5km a subir, agora era um trilho muito sinuoso, com algumas descidas, inclusivamente com cordas. Ok, custou-me bastante, e até me pareceu mal a parte das cordas que acho um pouco fora de contexto no MIUT, mas agora a frio percebo a opção de substituir uma estrada por um trilho. Acho que é lógico e para o ano já ninguém se lembra disso.
Árvores fantasma na chegada à Boca das Torrinhas. Foto minha. De há 3 anos! |
É na subida para o Ruivo que o resultado final da prova se começa a desenhar. É enorme e implacável, mas é só a partir da Boca das Torrinhas, aquele sitio no perfil onde tem uma pequena descida, que se torna decisiva. É nessa altura que entramos noutro planeta e começa a travessia dos picos.
Pico Ruivo - Chão da Lagoa 9.5km, 545+, 785- |
Não me correu bem a parte final da subida antes de chegar ao Ruivo. Se nos outros anos me poupei na parte inicial para depois colher frutos nas escadas, desta vez senti-me com pouca energia. Foi de forma um pouco sofrida que saí do abastecimento para enfrentar o incrível caminho entre os picos.
O dia estava perfeito. Céu limpo, vento fresco. Felizmente não aqueceu como nos outros anos, até tive que vestir o corta vento para não arrefecer de mais. Ano após ano fico deslumbrado com este trilho, é monstruoso. Nunca vi nada assim, nem nos Alpes, nem nos Pirenéus nem em lado nenhum. Escadas a subir, escadas a descer, túneis, ravinas, vertigens... Duríssimo, mas vale o bilhete de volta todos os anos. Infelizmente foi nesta fase que a prova virou de vez para mim.
Foto abismal do Javier Santos, pelo João M. Faria. |
Já com a estação meteorológica do Arieiro em vista comecei a sentir cada vez menos energia para enfrentar os degraus. Tão perto e tão longe. Não me saía da cabeça aquele ultimo ataque, com dezenas de degraus muito altos. Parei no inicio do lance a comer uma barra a tentar ganhar ânimo, mas a meio percebi que já tinha passado para o outro lado. Tinha rebentado.
Pela primeira vez na prova tive que parar para ganhar fôlego, sentei-me num degrau e comecei a pensar. Como disse tanto no inicio deste post como noutros anteriores, era meu objectivo acabar antes da meia noite. Sabia que para tal teria que ser um dia perfeito, mas o que é um dia perfeito? A gestão da minha corrida estava a ser no ponto com o que tinha pensado, estava a comer muito certinho sem qualquer problema, passei nos locais à hora planeada e não poupei uma única gota de esforço. Treinei bem, como nunca tinha treinado, fiz concessões na alimentação e levei muito a sério o reforço muscular. Não faria nada diferente do que fiz. Naquela altura era claro para mim que as 24 horas não iam cair, mas havia outra coisa que também era clara: foi um erro sequer pensar que poderia domar uma prova como o MIUT ao ponto de meter um objectivo de tempo. Não dá. A única coisa que há a fazer é, como disse lá atrás, entregar-nos de corpo e alma. Dar o nosso melhor e fazer uma prova honesta. As 24 horas não cairiam por uma razão muito simples: não tenho capacidade para isso. Isso é, e tem que ser, uma constatação tranquila!
Créditos na foto |
Levantei-me decidido. Seja em que tempo fosse, havia de virar mais uma vez a ilha. Soube naquele momento que ia chegar ao fim.
Chão da Lagoa - Poiso 10.6km, 675+, 790- |
Foi esgotado mas confiante que cheguei ao abastecimento do Chão da Lagoa, que substituía o do Arieiro este ano. Lá encontrei o Rodrigo, que estava na prova dos 85km. O Rodrigo é meu grande amigo e companheiro de praticamente todos os treinos que faço, não podia pedir melhor prenda que encontrá-lo nesta fase. Expliquei-lhe que estava todo partido (não foi bem esta palavra que usei), mas que ia tentar ir com ele. Ele também não estava muito bem (quem diria), mas ainda assim estava melhor que eu e isso foi fundamental para mim.
Eu e o Rodrigo no Chão da Lagoa |
Partimos para a descida até ao Ribeiro Frio, eu atrás dele. Como previsto, ele estava bem mais solto que eu e tive alguma dificuldade em acompanhar, mas lá consegui ir no encalce, apesar de estar mentalmente pronto para o deixar seguir sozinho se visse que não tinha pernas e obviamente que ele também não ia fazer sala à minha espera.
Como sempre, esta descida é tramada, com zonas muito técnicas e até algumas subidas. A alteração na parte final acabou por lhe acrescentar ainda mais dificuldade, mas nada de especial. Fizemos uma boa descida e eu lá me mantive colado.
Fotografia brutal do Rodrigo, tirada numa das subidas da descida. |
Nesta altura já ia com praticamente 7000D+, mas ainda faltava a ultima grande subida, o meio quilómetro vertical que nos separava do Poiso. Esta foi igual ao ano passado, muito difícil ao inicio, num trilho a fazer lembrar Sintra, e depois a acalmar na parte final em estradões no meio de um bosque lindíssimo. Fiz a primeira parte sempre com ele mas no fim tive uma grande quebra e tive necessidade de abrandar. Ele acabou por se distanciar ao ponto de não o ver, mas eu estava tranquilo porque sabia que naqueles estradões haveria de voltar à vida, e assim foi. Quando cheguei ao abastecimento ele ainda lá estava a comer e eu fiz por me despachar para seguir com ele.
A chegada ao Poiso é das partes mais importantes de toda a prova. Estamos com 99% do desnível positivo feito, faltam 26km praticamente sempre a descer. À primeira vista podem pensar que nesta fase está feito, mas não podiam estar mais enganados. É incrível a quantidade de gente que desiste nestes últimos quilómetros e a razão é simples de explicar. Estes 26km seriam muito fáceis, mas chegamos lá com 90km e 7200+ em cima. Temos pela frente estradões e trilhos fáceis, levadas suaves com piso confortável. Todas as nossas fibras dizem para correr, mas o corpo não consegue. Para a cabeça é devastador. Ainda por cima a minha malta, aqueles do meio do pelotão, chegam aqui já a entrar na segunda noite. É facílimo mentalmente começar a ceder. Por isto tudo, é simples: uma boa descida do Poiso à Portela significa uma prova tranquila, uma má descida significa o inferno até Machico. Venham de lá esses 9km.
Poiso - Machico 26km, 120+, 1520- |
O Rodrigo não disse uma única palavra para me motivar ou puxar por mim, sabia que a qualquer altura se podia voltar para trás e não me ver e seguiria tranquilo. Ele já me conhece e sabe que eu detesto que esperem por mim (ou esperar por alguém). Mas a verdade é que a boleia dele foi essencial. Houve alturas que se fosse sozinho teria metido um passo mais lento ou tinha começado a andar, mas não queria mesmo descolar por isso consegui fazer integralmente a descida até à Portela a correr.
A noite entretanto caíra e quando chegámos ao abastecimento já era cerrada. Perguntei-lhe se precisava de encher os flasks com água, disse-me que não. Combinámos demorar o mínimo de tempo possível para não arrefecermos e tentarmos continuar naquele trote.
Seguia-se um troço curto, de 5km, até ao Larano. Já o conheço de cor e salteado. Primeiro 2km de estradão, depois 2km de trilho e finalmente 1km de descida suicida. O ano passado o Rodrigo correu nos 42km, por isso também já conhecia esta parte. Sabíamos o que nos esperava a seguir e decidimos que iríamos poupar energia nesta fase para conseguir correr nos quilómetros finais. Na parte de trilhos ele estava mais solto e voltou a meter corrida, eu esforcei-me por o acompanhar. Depois na terrível descida da Degolada era eu que estava melhor e passei-o. Chegámos ao Larano, ultimo abastecimento, às 22:51. Apenas 12km nos separavam de Machico!
Pela frente tínhamos os terríveis 5km da vereda do Larano. Um trilho lindíssimo, numa falésia, que infelizmente se estende por 4km a mais do que devia! Imaginem um trilho ligeiramente a subir, sempre a direito, em que a paisagem não muda nem um bocadinho (pelo menos à noite). Uma espécie de passadeira virada para a parede, com 2% de inclinação na velocidade 8 onde correm durante uma hora! Mas o plano tinha resultado e conseguimos percorrê-lo praticamente sempre a correr. Se nesta fase sentia que estava ligeiramente melhor que o Rodrigo, de seguida, nos 6km de levadas antes de chegar a Machico, foi novamente ele que puxou por mim. Corremos ao que na altura me pareceu uns estonteantes 4 e tal ao km, mas que o Strava de certeza que interpretou mal e diz que foi a 7!
Vereda do Larano, vista de dia |
Um final de prova perfeito que me deixou com a adrenalina a bombar, em contraste com o ano passado em que acabei a arrastar-me no Larano e nas Levadas. Acabei mesmo por recuperar muito do tempo perdido e terminar a prova em 24h47, menos 5 minutos que o ano passado!
4 em 4 |
Estava concluído o meu 4º MIUT. Talvez aquele em que passei a meta mais em paz. Liguei à Sara, que foi comigo cada um dos 116000 metros, dei um abraço aos meus companheiros de equipa que estavam à minha espera àquela hora, lembrei-me da Vânia que teve um problema de saúde um dia antes lá na Madeira, dei um abraço ao Rodrigo que me rebocou durante quase 40km, outro ao Alex, o sempre prestável Alex, que teve que desistir em Estanquinhos, e finalmente arrastei-me, agora sim, para o quarto na nossa casa alugada, onde esperei o Luis Sommer que chegaria poucas horas depois com 1001 histórias como só ele sabe contar da sua prova. No dia seguinte, às 7 da manhã, lá estava o grupo outra vez todo reunido, cada um a fervilhar com histórias para contar, prontos para apanhar o voo de regresso. Rodrigo, Sommer, Alex, Chico, Simão, Vasco e Rita (como é que não tirámos uma foto?).
Os fins de semana de MIUT são sempre intensos, este não falhou nem um bocadinho. Perguntam-me porque volto tantas vezes, não consigo explicar de maneira melhor do que escrevendo estes textos, talvez para o ano, quando voltar para o penta, me percebam.
Não quero parecer hipócrita, eu sei que tinha dito que o objectivo era chegar quase uma hora antes, mas sinceramente fiquei satisfeito com o resultado final. 24h47 não é um bom nem mau tempo, é o tempo que eu precisei, ponto. Estou orgulhoso de todo o caminho até aqui e não fazia nada de diferente. Vistas bem as coisas, fiquei no lugar onde pertenço: 232º em 496 finalizadores de 782 que começaram. Cumpri o derradeiro objectivo: deixei tudo naqueles 116km. Corpo e alma.