Por aqui continuam os desafios pós-covid. As ideias têm fervilhado e o que não faltam são alternativas às provas que, aparentemente, continuam muito longe de se voltar a realizar. Mas, sinceramente, no fim da viagem de ontem, apetece-me perguntar: mas quem é que precisa de provas??
Há uns tempos tive a ideia de fazer a Travessia Trevim - Torre. Começar no alto do Trevim, passar por Góis, Arganil, Piodão e Torre. Pesquisei, falei com algumas pessoas, mas não estava conseguir encontrar nenhuma ligação de jeito entre o Trevim e Arganil. Depois comecei a montar o percurso a seguir a Arganil. Falei com o André Rodrigues, que me aconselhou o track do seu Desafio Picos do Açor para sair de Arganil, depois liguei no Google Earth os Picos a Piodão, juntei o percurso do Ultra Piodão, depois o do EstrelaAçor, que me levava ao Alvoco, e a partir daí subia o conhecido km vertical, descia o trilho do Major e finalmente desembocava no Vale Glaciar. No fim fiquei já com cerca de 75/80km. Se quisesse juntar o trajecto Trevim - Arganil teria que somar à vontade 30km, o que já daria mais do que me apetecia fazer. Ficou então decidido a Travessia Trevim-Torre passaria à Travessia dos Picos do Açor ao Vale Glaciar!
O percurso acabou por ter 76km com 4650D+ |
O plano estava traçado, lancei o desafio ao João Tomás, que, se bem se lembram, fez o Trans'Aire comigo, ao João Lopes, o Flecha da Parreira, e ao Guilherme Lourenço, que dispensa apresentações. Aos 3 havia de se juntar o meu amigo Jorge Duarte, colega da APT que conheci há uns meses num estágio na Estrela, que se encontraria connosco lá pelo Alvoco. Já repararam no denominador comum, não é verdade? Pois, são todos muito mais fortes que eu! Este facto acabou por se tornar preponderante durante o dia. Já lá vamos.
Na partida, junto às piscinas de Arganil. |
Depois de uma noite dormida em Arganil, às 6 da manhã em ponto iniciámos a viagem. O dia estava nublado e abafado, com muita humidade. Esta primeira parte, correspondente aos primeiros 15km do Desafio Picos do Açor, eram passados em trilho técnicos embrenhados na vegetação do Açor. Muita água, subidas a pique, trilhos xistosos e levadas espetaculares, embalaram-nos num constante sobe e desce que acumulou rapidamente muito desnível. O André tinha-me avisado que, dos 15km, 14 deles estariam limpos e que restaria pelo menos 1km ainda com mato. Assim foi, a grande maioria dos trilhos estava impecavelmente limpa e mais valor demos ao trabalho de quem os limpou quando entrámos na parte que tinha mato!
A desbravar mato. Enquanto eram fetos e não silvas estávamos nós bem! |
Aqui estavam limpinhos |
Desde o início que não me sentia nos meus dias. Esforçava-me para os acompanhar enquanto respirava ofegante. Desde o dia anterior que estava bastante mal disposto, coisa que muito raramente me acontece, e naquele dia suava em bica praticamente desde que partimos. Aproveitava aqueles minutos em que a progressão era lenta por causa do mato para recuperar o fôlego e acalmar a pulsação, mas, ao fim de poucos minutos, já estava com este ar acabado:
Saímos do percurso dos Picos do Açor pelos 14km, no Posto de Vigia, já com 1400+. A ultima subida foi a maior picada até então, com uns 400+, onde, mais uma vez, tive muita dificuldade em acompanhar os meus companheiros. Estava também preocupado com a hidratação, estava a beber profusamente tailwind para compensar a muita transpiração, mas sabia que até Piodão, nos 32km, dificilmente encontraríamos algum ponto de água. Falei com eles, que aparentemente estavam muito mais à vontade que eu, e todos tinham pelo menos 750ml de água, eu já só tinha menos que 500ml. Combinámos que em caso de necessidade eles me dariam água.
A subir a tal picada final, foto pelo João Tomás. |
Os 15km seguintes, até ao Piodão, foram desenhados no Google Earth. Não fazia ideia do que íamos encontrar! Parecia-me que seriam maioritariamente estradões das eólicas que percorriam a encumeada, mas a verdade é que andámos em alguns trilhos e marcámos o ponto em quase todos os marcos geodésicos do percurso. Acabou por ser uma secção muito gira, com algum desnível (700+), vistas espetaculares e sempre corrivel.
Ou seja, a única parte que íamos ao desconhecido acabou por correr melhor do que o esperado! Até à descida final para o Piodão... Quando já viamos os telhados de xisto da bonita aldeia, saímos do estradão que nos estava a embalar até ao Inatel para procurar um trilho que tinha encontrado já não sei onde. O problema é que já ninguém lá devia passar há anos, estava completamente dominado pelas silvas! Se podiamos ter voltado para trás? Pois podiamos, mas, como toda a gente que anda nisto sabe, quando se passa aquele ponto mágico do "epah, agora já não vamos voltar para trás, ainda por cima é a subir", já não há nada a fazer. Deixei lá uns bons gramas de carne agarrados àquelas silvas mutantes durante pelo menos 1km literalmente a abrir mato, mas lá conseguimos chegar ao Piodão, 32km, onde teriamos o primeiro "abastecimento".
Primeiro abastecimento. |
Já restabelecidos depois de uma boa paragem, flasks cheios, tailwind preparado, entrámos no percurso do Ultra Trail do Piodão até Chãs de Éguas. Aqui os trilhos estavam limpinhos e a progressão foi muito boa. Sentia-me bastante melhor depois da paragem, ainda assim tinha que vir muito perto do limite para os conseguir acompanhar. Também o calor decidiu aparecer por esta altura, depois de uns km muito confortáveis lá em cima, agora estava seco e quente. Bebi água e molhei-me em todas as bicas que ia encontrando, até porque até Teixeira de Baixo, local do terceiro "abastecimento" eram cerca de 20km.
A subida para sair da Serra do Açor foi pelo estradão aos zigue-zagues do Ultra Piodão, onde, mesmo a andar bem, fiz os meus companheiros esperar uns bons 10 minutos lá em cima. A situação estava a tornar-se um bocado frustrante, custava-me que eles tivessem que esperar, mas estava a dar o que tinha.
Lá em cima, tal como me lembrava, a vista era deslumbrante. De um lado o estradão que serpenteava e culminava no Picoto da Cebola, ponto mais alto do Açor, do outro a imponente Estrela, com os 1990 parcialmente tapados por nuvens. O caminho para o Alvoco era em linha reta, num estradão na encumeada, com algumas das vistas mais bonitas de todo o percurso.
Em Chã de Éguas, antes da subida. |
Lá ao fundo, o Picoto da Cebola. |
Chegámos a Teixeira de Baixo já com 52km. Parámos na primeira bica que encontrámos e sentámo-nos a beber e a comer o que trazíamos, desta vez não havia nenhum café. Íamos entrar na parte final do percurso, estávamos com cerca de 3000+ e faltava-nos nada mais nada menos que a subida do KV do Alvoco com mais um extra, já que iríamos partir abaixo da cota 500 e a subida andaria pelos 1600+. A má disposição já estava mais ou menos ultrapassada, mas cada vez se notava mais a diferença de andamento para os meus colegas. Antes de partimos pedi-lhes para não esperarem por mim, que nos encontraríamos no Alvoco. Preferia muito mais ir sozinho do que os estar a prender, e assim foi. Os 7 ou 8km que nos separavam do Alvoco foram praticamente todos cumpridos sozinhos a andar bem, sempre em trilhos que subiam vagarosamente paralelos ao rio. A cerca de 1km do Alvoco encontrei o grande Jorge, um amigo que fiz no estágio da APT e com quem gosto muito de correr. Tinha estacionado em Piornos, descido o KV e agora ia voltar para trás connosco. É pena que desta vez já me tenha encontrado em tão avançado estado de decomposição!
No abastecimento de Teixeira de Baixo |
O João e Teixeira de Baixo ao fundo. |
Estávamos então com 60km e a beber uma coca-cola no Alvoco. Este percurso tem essa característica demolidora, acaba com o quilómetro vertical do Alvoco. Para mim, a mais dura e melhor subida de Portugal Continental. Desde aquele ponto são 1200+ em menos que 5km. Mas a parte principal, o KV, são 1000+ em 3.8km. Foi a sexta vez que o subi e já por lá passei em muito diferentes condições. Desde estar fresquinho, no inicio de um treino, a completamente acabado, como no EGT em 2016. A primeira vez, em 2014, foi no saudoso KV do Alvoco, uma prova organizada pelo Armando Teixeira que só teve essa edição.
Esta não foi de todo a melhor subida que lá fiz, mas também não foi a pior. Subi devagar mas muito certinho, sem nunca parar a não ser para a obrigatória foto na mariola gigante que marca o fim da parte mais demolidora da subida. Mais uma vez cumpri-o sozinho, tendo quase obrigado os meus companheiros a subirem ao seu ritmo. Assim o fizeram. Só para perceberem, o Guilherme demorou menos 26 minutos que eu a subir (1h00 vs 1h26) e mesmo assim ficou a 18 minutos do record dele!
A Torre ao fundo do Planalto dos Corvos. Uma vista que provoca sempre alívio! |
Mau aspecto, junto à famosa mariola gigante |
A parte final da subida, com a mariola nas costa |
Alvoco lá ao fundo. |
O quarto e ultimo abastecimento foi na Torre, onde o Jorge estava em casa. Fomos à loja do tio dele e mamámos uma valente sandes de queijo e presunto com uma coca cola. À entrada do centro comercial tive que por a máscara, que passou a fazer parte do material obrigatório. Agora imagem, todo rebentado, aos 2000m, com uma máscara na cara. Digamos que não foi lá muito confortável!
Na Torre, já com o Jorge |
As sandes do tio do Jorge. |
Restava-nos agora "apenas" descer o mítico Major, depois apanhar o planalto da Nave de Santo António e descer pelos zigue-zagues até ao Vale Glaciar, onde cumpriríamos os km finais junto ao Zêzere, nascido uns metros lá atrás, no Covão d'Ametade.
Já estava com o modo ultra ligado, em gestão cuidada do esforço, há umas boas horas. Tinha vindo desde o início em ritmo de prova a tentar acompanha-los, mesmo sem conseguir. Tal como numa prova já tinha tido momentos muito baixos. Mas lidei com eles, como faço em prova, e aproveitei aquele ressalto de quando voltamos à vida. Desci o Major de forma resguardada e ainda tive pernas mais que suficientes para atravessar a Nave de Santo António a trote, assim como a parte final já no Vale Glaciar.
O Vale Glaciar |
Inicialmente tinha pensado ir mesmo até Manteigas, mas o trilho do Vale Glaciar desaparece sensivelmente a meio do trajecto, sendo que os ultimos 4 ou 5km são cumpridos num estradão plano muito chato. Por isso decidi ficar a meio do vale, onde existe uma praia fluvial e dá para estacionar o carro. Lá estava a Sara, há umas 3 horas à nossa espera! Pusemos as pernas de molho nas águas geladíssimas do Zêzere, arrumámos a trouxa e iniciámos a viagem de quase 4 horas que ainda nos faria passar por Arganil antes de descer para casa!
O Guilherme e o João, já de molho. |
Foram 76km com 4650+ em 13 horas certinhas. Demorou bastante mais do que esperava, estava a apontar para as 11/12 horas, mas o percurso também foi muito mais difícil do que tinha imaginado. Encarei-o como uma autentica prova, de tal maneira que hoje estou num estado que raramente fico. Todo dorido, desidratado, arranhado... Mal me consigo mexer!
O percurso foi mesmo muito interessante. As travessias têm aquela coisa boa de conseguirmos passar em muitos sítios diferente na mesma volta, e esta foi bastante grande. Começámos nos trilhos técnicos e fechados dos Picos do Açor, andámos pelos estradões da encumeada do Piodão, subimos o demolidor KV, acabámos no lindíssimo Vale Glaciar... Houve de tudo! Houve também um grupo espectacular mas que claramente andou mais devagar pela minha presença. É raro estar num grupo de treino onde sou o mais lento, a sensação não é a melhor. Fiz o melhor que consegui, mas a conclusão que chego no fim disto é que há níveis para este jogo. O Guilherme está seguramente entre os 5 melhores do país, nunca tinha corrido com ninguém deste nível durante tanto tempo, é impressionante como estamos tão distantes. Planetas diferentes!
E agora? Bem, as ideias pós-covid continuam a aparecer. Todos os ingredientes que procuro neste desporto estão presentes nestas aventuras, e certamente esta não será a ultima. É verdade que tenho saudades das provas, porque....... bem, já não me lembro bem do que tenho saudades, acho que principalmente do convívio com amigos! Porque o resto, o desafio, a descoberta, a aventura, o esforço, a montanha, está tudo aqui à mão de semear!