As minhas corridas na estrada

terça-feira, 24 de maio de 2022

Estrela Grande Trail (49km) - Os Amigos do Armando

Como em todas as provas do Armando, os minutos antes do inicio deste Estrela Grande Trail são diferentes. Olho à volta, somos cento e poucos na distância maior (49km), vejo muita gente conhecida, o ambiente é especial. Não há muitas pessoas no trail nacional tão consensuais como o Armando Teixeira. Todos lhe conhecem minimamente o currículo, se não, basta dar uma saltada ao perfil do ITRA. Com registos desde 2009, pódios e primeiros lugares em provas como o MIUT, Transgrancanária, ou Ronda dels Cims, é sem dúvida alguma um dos melhores de sempre a praticar o nosso desporto em Portugal. Mas não é o currículo desportivo que lhe confere aquela aura que todos reconhecem e que torna esta prova especial. É que o Armando é mesmo um gajo porreiro! Gosta de trail e da montanha, acima de tudo. É bem disposto, gosta de ajudar e nunca o vi a recusar dois dedos de conversa, seja com quem for! Naturalmente, à volta de uma personalidade forte e aglutinadora, gravitam pessoas que se identificam com ela. No fundo, mais que atletas inscritos, somos todos amigos do Armando! E às 8 em ponto, ao som de um badalo, lá partimos rumo a uma viagem de ida e volta ao ponto mais alto de Portugal Continental!

Fotografia do Armando pelo Francisco Soares

O início da prova não esconde ao que vamos. Assim que cruzamos o pórtico em forma de estrela começamos a grande subida do dia. Primeiro ainda dentro de Manteigas, por entre escadas e ruelas, até entrar na estrada florestal que serpenteia no meio de um bosque quase Alpino rumo às Penhas Douradas. Já a fiz algumas vezes e gosto muito desta subida. É uma maneira excelente de começar uma prova! São cerca de 5km com uma inclinação muito constante, a rondar os 14%, cheia de curvas e contra curvas. Não muito bruta, ideal para acordar as pernas que, com um bocadinho de esforço, entram em modo cruzeiro permitindo o trote até lá acima. 

Fotografia do grande Paulo Nunes. Esta prova teve uma caracteristica, eram tantos fotografos e câmaras de filmar que uma pessoas às vezes queria ir devagar mas tinha que correr por causa deles! 

Tal como tem acontecido nos últimos tempos, sinto alguma confiança e tenho facilidade em entrar na prova. Chego lá acima na 7ª ou 8ª posição, naturalmente fora de pé, por isso não estranho nem me chateio quando meia dúzia de companheiros me vão apanhando enquanto cruzamos os trilhos rumo à barragem do Vale do Rossim. A primeira vez que aqui corri, no EGT de 2015 (na altura com 90km), lembro-me de achar que a organização tinha pecado por não limpar melhor os trilhos. Corremos em pequenos carreiros, quando existem, com muito mato rasteiro virgem. Os 7 anos de distância e muitos km de montanha depois mudaram-me a opinião quanto a isso. Percebo agora que a essência é mesmo essa, de modificar o menos possível o ambiente. É apontar à fita seguinte, descobrir as melhores linhas e estar sempre focado no que nos rodeia. Se isso implica arranhar mais um bocado as pernas, então que seja!

Uma pequena alteração do percurso que conhecia leva-nos até à margem da barragem, ao longo da qual percorremos o km que nos separa do paredão e do Parque de Campismo do Vale. Sentia-me bem e solto nos quase 10km de trilhos percorridos no Vale do Rossim, que nos levariam até à Garganta da Loriga. Adoro estes trilhos. Maioritariamente a subir, com pequenas e entusiasmantes descidas, corremos com alguma facilidade a saltitar entre maciços gigantes de granito. A meio, a passagem obrigatória na Fenda da Talisca, no maciço da Nave Mestra, embala-nos para mais uns quilómetros de planalto verdejante, cortado por pequenos ribeiros de água gelada que se escondiam debaixo de tufos. Maravilha!

Grande foto do Francisco Soares, dos tais ribeiros escondidos.

Na garganta, km 22, paro pela primeira vez num abastecimento, o segundo da prova. Completíssimo. Mas eu nem preciso de muito. Para mim qualquer abastecimento que tenha batata doce está aprovado! Como umas rodelas, empurro uma fatia de melancia e ala que se faz tarde!

Um km a descer leva-nos mesmo à boca da barragem da Loriga, até que uma cortada à esquerda nos encaminhada para 3km a subir até à Torre, local de mais um abastecimento e que marca o meio da empreitada. Lá em cima o vento é fortíssimo e arrefece bastante. Sinto-me ligeiramente desconfortável, também por causa do ultimo km, onde apanhámos alguns troços de subida mais inclinada. Encho os flasks, como mais uns pedaços de batata doce e faço-me ao caminho. Nesta altura já tínhamos mais de metade do desnível positivo conquistado, seguia-se a compensação. Cerca de 8km a descer até meio do Vale Glaciar. 

Fotografia do Francisco Soares na descida até À barragem da Loriga, antes de virar à esquerda para a Torre.

É precisamente nesta fase da descida que passo o pior bocado na prova. No meu já muito conhecido trilho do major sinto-me enjoado e o corpo entra num estado dormente. Não me consigo concentrar convenientemente, tropeço a toda a hora, dou pontapés em pedras e avanço muito atabalhoadamente. E se há trilho pouco propicio a desconcentrações é este! Nos 2km quase planos da Nave de Sto. António consigo meter um passo razoável de corrida enquanto me preparo para a parte final da descida, já no Vale Glaciar. Mais uma vez, desço de maneira muito pouco fluída e já imploro pelo abastecimento para reanimar. 

Fotografias com fartura! do Francisco Soares.

Esse chega aos 34km. Respiro fundo, meto uns bocados de aletria à boca (neste não havia batata doce!) e hidrato bem. Volto a encher os flasks e avanço para a penúltima subida do dia, uma picada de 300+ que nos faria transpor a parede direita do Vale Glaciar. Aperto as alças dos bastões e começo a trabalhar.

Nada como uma boa subida para nos trazer de volta à terra! O trilho aos zigue-zagues, cheio de pedras e patamares, é perfeito para meter um passinho certo. Mão direita, pé esquerdo, mão esquerda, pé direito. Inspira dois, expira três. A sintonia era perfeita e quase sem dar por cima estava a virar o Vale. Seguiam-se 2 ou 3km de estradão a descer com pouca inclinação, já conhecia esta parte. Felizmente as pernas disseram logo presente e fui correndo a um passo aceitável, apesar de nesta altura já com algum esforço. 

Tirei esta fotografia não este fim de semana mas no verão passado, quando fiz este mesmo trilho sozinho, a treinar. A minha vista preferida dos três cântaros! Vejam o fundo do Vale lá em baixo.

Entrava agora na única parte desconhecida para mim em todo o percurso. A descida ao Poço do Inferno. Já tinha feito a subida algumas vezes em sentido contrário, sabia que era muito inclinada apesar de curta, mas todo o caminho até ao fundo do Poço era nova. 

Saídos dos tais 3km de estradão começamos a descer a pique uma encosta cheia de árvores e coberta com uma camada de 30cm de folhas secas. Sem trilho aparente, só fitas a orientar o caminho. Naturalmente os movimentos de pernas eram mais amplos que o normal para tentar não ficar preso numa raiz ou pau que se escondia debaixo das folhas, o que provocou um acesso imediato e violento de cãibras! Tive mesmo que parar uns segundos, tomar uma cápsula de sal e respirar fundo. Confesso que não achei grande piada a este km, mas também rapidamente o esqueci quando entrámos no verdadeiro trilho do Poço do Inferno.

Primeiro uma maravilha de terra numa encosta muito ingreme. Gradualmente ficou com mais e mais pedra, até se tornar num verdadeiro troço de skyrunning, muito difícil tecnicamente e de progressão lenta. Foi um alívio quando finalmente entrei no troço da subida que já conhecia, apesar dela própria ser bastante difícil. 

A entrada no trilho do Poço do Inferno. Íamos mesmo até ao fim daquele desfiladeiro antes de voltar a subir.

Cinco km a descer separavam-me do final, 4.5 deles feitos no conhecido trilho do Javali. Felizmente as pernas ainda tinham algumas reservas. Meti um último gel e embalei na calçada romana do trilho por ali abaixo. Uma bela descida, pouco técnica, que nos aproximava devagarinho da vila de Manteigas. 

6h58 depois voltei a cruzar o pórtico da Estrela. Fui o 13º a cruzá-lo, o que me deixa orgulhoso, mas também tenho plena consciência que isso, no trail, não quer dizer nada. Na chegada lá estava o Armando para me dar um abraço e dois dedos de conversa, aposto que foi assim do primeiro ao ultimo classificado! Excelente prova com um excelente e equilibrado percurso. Adorei! Já não ia ao EGT desde 2015, quero ver se não passo tanto tempo sem voltar a ir uma reunião de Amigos do Armando!



segunda-feira, 25 de abril de 2022

Madeira Island Ultra Trail - O ano da meia dose (60km)

Seis vezes. Fui lá seis vezes e em cada uma levei cacetada que ferveu! Mesmo assim, na sétima, ainda consegui cometer o mais básico dos erros: subestimei o MIUT! Pronto, tem uma atenuante. Pela primeira vez não ia correr os 115km e ficar-me-ia pela meia dose, a recém estreada prova de 60km. 

Fotografia do Aurélio David

Infelizmente tenho escrito muito pouco por aqui, mas quem priva comigo já percebeu que nos últimos meses tenho feito a transição para uma nova fase na corrida. Desde o Sicó e, principalmente, desde o MIUT 2021 que não me tem apetecido fazer provas de 3 dígitos! O relato do ultimo MIUT pode ter dado algumas pistas e na altura associei à lesão que me chateava, mas a verdade é que não era só isso. Toda a experiência foi terrivelmente angustiante! O nó gigante que tinha na barriga, daquela vez não era pela ansiedade de começar, simplesmente não me apetecia voltar a passar pelo sofrimento que envolve uma prova como o MIUT. Não me apetecia começar, não me apeteceu enquanto corri e nem sequer tirei grande prazer por chegar ao fim. Fiz 19 provas acima dos 100km nos últimos 8 anos, tenho melhorado os métodos de treino, de nutrição, ganhei experiência, passei por muito. Mas sinto que não consigo evoluir. Pior, depois de 6 MIUTs concluídos, sinto que simplesmente não sou feito para aquelas distâncias! Mas, tranquilo. São fases. Talvez daqui a uns tempos me volte a apetecer enfrentar essa besta que são os 3 dígitos, mas neste momento estou noutra. Apetece-me fazer provas "curtas", até aos 50/60km. Andar com a corda na garganta, pensar menos em gestão e mais em dar o máximo, ir a fundo nas descidas, chegar ao limite nas subidas, perceber que, aqui sim, quanto mais treino mais pernas tenho! Enfim, são fases. Agora estou nesta!

Pronto, feita a introdução/justificação, vamos à prova!

Como todos os anos, o fim de semana MIUT é uma festa. A Sara diz que é a minha viagem de finalistas anual! Este ano, entre repetentes e estreantes, éramos 6! Eu, Simão, Alexandre, Vasco e Chico nos 60km e o grande Vasco Lopes nos 115km. A sexta feira, dia antes da prova, foi o oposto completo do ano passado. Passei o dia bem disposto e muito ansioso por começar, bem descansado, confiante no treino e sem lesões a chatear!

O grupo na partida. Menos o Vasco Lopes, que já andava a palmilhar desde a meia noite.

O percurso desta prova é perfeito. Começar com uma grande subida aos Picos, com direito a fazer o ex-libris da ilha, que é a ligação Ruivo-Areeiro, e depois quase sempre a descer até Machico, já pelo percurso habitual do MIUT. Na minha cabeça eram só facilidades. Subir forte no inicio, porque as pernas estão frescas, e depois controlar-me na descida para não ir depressa de mais e ter pernas para correr no fim. Pois claro, controlar-me para não ir muito depressa....

Oito da manhã e deu-se a partida para os cerca de 400 atletas, maioritariamente estrangeiros, como já é normal no MIUT. O tempo era o típico da Madeira, sol, chuva, vento, frio, calor, nevoeiro, céu limpo e nuvens. Tudo no espaço de 15 minutos! 

Saí de Boaventura a andar forte, com o Simão, de forma a nos colocarmos numa boa zona do pelotão. Conseguimos, mas com isso lá tivemos que andar a meia hora da praxe com a corda na garganta! Sobe e desce em levadas e trilhos no meio de hortas e pequenas povoações. com muita vegetação e sensação de correr numa floresta húmida, levaram-nos até ao primeiro abastecimento, no Lombo do Urzal, onde se iniciaria o prato principal desta corrida: a subida ao Pico Ruivo. 

A visão mais comum do MIUT. Foto do Vasco Carvalho

Como não podia deixar de ser, a subida era uma besta. Saídos do abastecimento, entrámos logo num trilho perfeitamente embrenhado na floresta, a fazer lembrar muito a parte inicial da subida a Estanquinhos. Um trilho de curva e contra-curva, de terra escura e pedras cobertas de musgo, muito constante, trabalhosa, a exigir uma constante adaptação da trajetória de maneira a tornar o esforço mais eficiente. 1, 2, 3, 4km, sempre a subir, sempre a trabalhar. 600, 700, 800m de desnível acumulado. Nem queria acreditar que já estávamos tão perto do km vertical! As pernas fresquinhas ajudavam, mas só me lembro de ter sentido uma euforia tão grande a subir uma outra vez na vida: no ataque ao Comapedrosa em Andorra, na Mitic! 

À medida que nos aproximávamos das cotas mais altas a paisagem ia mudando, passámos por verdadeiras gargantas, virámos montanhas só para dar de caras com outras maiores, rasgámos encostas em trilhos que pareciam estar ali desde que a montanha nasceu. Só podia, tudo ali fazia sentido, era perfeito! 

Foto lá em cima, do Vasco Carvalho

Já nos 1400m passámos pela Boca das Torrinhas e embocámos no percurso já conhecido do MIUT. A grande diferença é que desta vez estava a chegar ali com pernas! E, pasmem-se, dá mesmo para correr lá em cima! Perfeito, perfeito! Corria com um sorriso rasgado no rosto, a descer, em plano e a subir, é difícil descrever a alguém o prazer que se sente! A sério, se alguém estiver a ler isto e nunca tiver corrido em trilhos.... vão, vão, não percam tempo!

Fotografia do Luis Alberto Hernando pelo enorme Ian Corless. Vi-o lá neste sítio e fotografou-me, quem me dera encontrar isso! Depois tive vergonha de lhe dizer que sou fã dele.

De repente estava no Pico Ruivo. 16km, 2000m de desnível positivo acumulado. Não me podia deixar levar pela euforia, faltava muita prova. Entrei no abastecimento, enchi os flasks e comi à pressa. Seguia-se o ex-libris da prova, a travessia até ao Pico do Areeiro e, mais uma vez, foi todo um mundo de sensações novas conseguir ter pernas para correr ali. 

Tudo ajudava, até as dezenas de caminheiros que estavam a dividir os trilhos connosco. Imaginem um trilho tão estreito que mal cabe uma pessoa, dum lado uma parede de rocha, do outro uma falésia com centenas de metros. Agora imaginem cruzarem-se com dezenas de caminheiros enquanto correm! Todos eles se colavam à encosta, o único movimento que faziam era para bater palmas e gritar incentivos, criando corredores humanos, tal e qual os metros finais de uma maratona por uma qualquer capital europeia! Que loucura! 

Mais uma do Vasco, onde dá para ver a quantidade de gente no trilho.

Pico do Areeiro, 21km, 2500+. Estava cumprida um terço da distancia e só restavam 700m de subida até ao fim. Faltava a outra parte, o desnível negativo. Nos próximos 22km íamos passar da cota 1800 até à cota 0, na praia de Porto da Cruz. Na minha cabeça era aqui que estava a chave da prova. Controlar a descida para não massacrar de mais as pernas e conseguir correr nos 16km finais, que são planos. Sim, na minha cabeça os 2500+ que teríamos nas pernas neste ponto eram só um pro-forma! Não podia estar mais enganado. É certo que as pernas ainda não estavam na reserva, mas a subida estava lá. Ai se estava...

Senti-a assim que começou a descida até ao Chão da Lagoa e, ao contrário do que tinha imaginado, o problema não era controlar-me para não ir depressa de mais. Era mais perceber onde é que ia buscar força para andar depressa na descida! Nunca andei soltinho, mas como sabia que a prova era "curta", também não me poupei. Portanto, forcei. Andei no limite naqueles primeiros quilómetros mais técnicos até ao Chão da Lagoa, de tal maneira que assim que entrei no abastecimento me saltou um musculo da perna. Tudo bem, foi no sitio certo. Parei, alonguei, comi e voltei a encher os flasks. Quando saí do abastecimento já estava recomposto. 

Única foto minha na prova, pelo Aurélio David. É o que dar escrever isto antes de saírem as fotografias.

Era hora da primeira grande alteração do percurso. Este ano, em vez de descer ao Ribeiro Frio e subir ao Poiso, desceríamos diretamente ao Poiso para depois voltar a entrar novamente no percurso conhecido até à Portela. Fiquei surpreendido quando chegámos ao Poiso em pouco mais de 2km! 

Em todos os anos anteriores, este era o ponto fulcral do MIUT. Dizia sempre que se chegasse ao Poiso com pernas era sinal que a prova tinha corrido bem. Este ano não podia aplicar esse raciocínio, mas a verdade é que cheguei lá mesmo com pernas e com pernas entrei na descida mais fácil do percurso, os 9km que ligam o Poiso à Portela. 

Trilhos limpos, pouco inclinados, estradão e levadas. Perfeito para desenrolar as pernas! Corri sempre, mas em esforço, não muito depressa. A ponta final da descida é feita ao lado de uma levada, nuns degraus de troncos muito agressivos. Depois de alguns km de estradão, os movimentos bruscos de ter que saltitar nos degraus provocaram a segunda crise de câimbras do dia! Mais uma vez: timing perfeito. Foi mesmo à porta do abastecimento, na Portela.

Entrei e, pela primeira vez, sentei-me. Estava mesmo a precisar! Já estava muito massacrado da descida. Comi umas rodelas de batata doce com toping de sal grosso, numa tentativa desesperada de controlar as câimbras. Não fui rápido no abastecimento, mas estava a precisar. Nesta altura já estávamos a dividir os trilhos com a malta dos 42km, que apareceram a todo o gás no Chão da Lagoa, por isso o abastecimento estava cheio e abafado. Espreitei lá para fora só para perceber que a chuva grossa que apanhei nos metros finais antes do abastecimento continuava a cair. Enfim, estava na hora! 

Foto do Vasco a meio da descida para o Porto da Cruz.

Segunda alteração do dia: depois da Portela, em vez de seguir para os trilhos das Funduras e para a Degolada iriamos continuar a grande descida até ao Porto da Cruz. A primeira parte da descida foi muito massacrante, pelo Caminho Real. Um trilho de calçada de basalto, muito inclinado, com degraus muito curtos. Curtos de mais para permitir um passo de corrida fluido, obrigava a um constante saltitar. Não haviam bastões que ajudassem, todo o peso do corpo era descarregado nas pernas. Tum, tum, tum, sempre a martelar músculos e articulações! Numa segunda fase entrámos nuns trilhos junto a levadas, com lama, muito pesados, por causa da chuva que caía. Finalmente desembocámos nas estradas de Porto da Cruz, já quase ao nível do mar, para cumprir um par de km em estrada.

Cota zero, 45km. Faltavam apenas 15km para a meta. Uma subida que não conhecia separava-nos da entrada na já conhecida Vereda do Larano e finalmente as levadas de Machico. Comi bem no abastecimento e fiz-me ao caminho.

O meu grande amigo Vasco, pelo Aurélio David, no fim da subida após Porto da Cruz. Este senhor, que já anda nisto há uma data de anos, sacou só 21 horas nos 115km. Que animal!

Esta seria a ultima parte desconhecida do percurso. Acabou por ser uma subida relativamente fácil, quase toda ela feita em escadas e com 300m de desnível positivo. No entanto, foi a parte onde sofri mais em todo o percurso. Já muito desfeitos da descida, os músculos começaram a gritar assim que alcei a perna para o primeiro degrau! Toda a subida foi feita em grande sofrimento e até tive que me sentar duas vezes para ganhar alento. Fiquei preocupado com os 12km finais, os tais que, com pernas, são perfeitamente corriveis. Primeiro no Larano e depois das Levadas.

Não foi fácil. Não estava soltinhos nem com pernas frescas. Não foi bonito. Foi mesmo de faca nos dentes que meti o trote no inicio da vereda do Larano! 4km de um falso plano (tem 100+), feitos em esforço mas num passo muito certinho. Ah, pela primeira vez fiz o Larano de dia. Que portento! Uma brutalidade de trilho a contornar as encostas, com o mar do lado esquerdo. 

Entrei nas levadas de Machico já com muitas luzes acesas no tabelier, mas agora era mesmo só um esforçozinho. Há alguns km que fazia contas de cabeça para perceber se conseguiria chegar antes das 9 horas, agora já era certo. Não desarmei e corri mesmo até à meta, onde cheguei 8h34 depois de sair de Machico!

O Manelíco à minha espera.

Aqui está ele.

Não foi uma chegada apoteótica, não me emocionei nem nada que se pareça. Mas cheguei feliz e animado. Total e perfeitamente satisfeito, com a sensação que dei tudo o que tinha e que mesmo assim não fui ao fundo do poço. Não precisei, assegurei-me disso ao longo das muitas horas de treino e agora tinha ali a minha recompensa! Ainda não eram 5 da tarde, liguei à Sara, falei com os miúdos e fui tranquilo tomar banho. Juntei-me ao Simão enquanto esperávamos pelo resto da malta de Almeirim e víamos as chegadas. Todos os nossos companheiros chegaram bem e fizeram provas brutais. Jantámos descansados uma bela pizza e duas ou três corais, na praça central de Machico. Tranquilos. Completamente desfeitos e moídos, mas tranquilos e satisfeitos, ainda com a cabeça numa nuvem de endorfinas. 

São fases, suponho... E nesta fase é precisamente isto que eu preciso da corrida. Foi perfeito!