Como em todas as provas do Armando, os minutos antes do inicio deste Estrela Grande Trail são diferentes. Olho à volta, somos cento e poucos na distância maior (49km), vejo muita gente conhecida, o ambiente é especial. Não há muitas pessoas no trail nacional tão consensuais como o Armando Teixeira. Todos lhe conhecem minimamente o currículo, se não, basta dar uma saltada ao perfil do ITRA. Com registos desde 2009, pódios e primeiros lugares em provas como o MIUT, Transgrancanária, ou Ronda dels Cims, é sem dúvida alguma um dos melhores de sempre a praticar o nosso desporto em Portugal. Mas não é o currículo desportivo que lhe confere aquela aura que todos reconhecem e que torna esta prova especial. É que o Armando é mesmo um gajo porreiro! Gosta de trail e da montanha, acima de tudo. É bem disposto, gosta de ajudar e nunca o vi a recusar dois dedos de conversa, seja com quem for! Naturalmente, à volta de uma personalidade forte e aglutinadora, gravitam pessoas que se identificam com ela. No fundo, mais que atletas inscritos, somos todos amigos do Armando! E às 8 em ponto, ao som de um badalo, lá partimos rumo a uma viagem de ida e volta ao ponto mais alto de Portugal Continental!
Fotografia do Armando pelo Francisco Soares |
O início da prova não esconde ao que vamos. Assim que cruzamos o pórtico em forma de estrela começamos a grande subida do dia. Primeiro ainda dentro de Manteigas, por entre escadas e ruelas, até entrar na estrada florestal que serpenteia no meio de um bosque quase Alpino rumo às Penhas Douradas. Já a fiz algumas vezes e gosto muito desta subida. É uma maneira excelente de começar uma prova! São cerca de 5km com uma inclinação muito constante, a rondar os 14%, cheia de curvas e contra curvas. Não muito bruta, ideal para acordar as pernas que, com um bocadinho de esforço, entram em modo cruzeiro permitindo o trote até lá acima.
Fotografia do grande Paulo Nunes. Esta prova teve uma caracteristica, eram tantos fotografos e câmaras de filmar que uma pessoas às vezes queria ir devagar mas tinha que correr por causa deles! |
Tal como tem acontecido nos últimos tempos, sinto alguma confiança e tenho facilidade em entrar na prova. Chego lá acima na 7ª ou 8ª posição, naturalmente fora de pé, por isso não estranho nem me chateio quando meia dúzia de companheiros me vão apanhando enquanto cruzamos os trilhos rumo à barragem do Vale do Rossim. A primeira vez que aqui corri, no EGT de 2015 (na altura com 90km), lembro-me de achar que a organização tinha pecado por não limpar melhor os trilhos. Corremos em pequenos carreiros, quando existem, com muito mato rasteiro virgem. Os 7 anos de distância e muitos km de montanha depois mudaram-me a opinião quanto a isso. Percebo agora que a essência é mesmo essa, de modificar o menos possível o ambiente. É apontar à fita seguinte, descobrir as melhores linhas e estar sempre focado no que nos rodeia. Se isso implica arranhar mais um bocado as pernas, então que seja!
Uma pequena alteração do percurso que conhecia leva-nos até à margem da barragem, ao longo da qual percorremos o km que nos separa do paredão e do Parque de Campismo do Vale. Sentia-me bem e solto nos quase 10km de trilhos percorridos no Vale do Rossim, que nos levariam até à Garganta da Loriga. Adoro estes trilhos. Maioritariamente a subir, com pequenas e entusiasmantes descidas, corremos com alguma facilidade a saltitar entre maciços gigantes de granito. A meio, a passagem obrigatória na Fenda da Talisca, no maciço da Nave Mestra, embala-nos para mais uns quilómetros de planalto verdejante, cortado por pequenos ribeiros de água gelada que se escondiam debaixo de tufos. Maravilha!
Grande foto do Francisco Soares, dos tais ribeiros escondidos. |
Na garganta, km 22, paro pela primeira vez num abastecimento, o segundo da prova. Completíssimo. Mas eu nem preciso de muito. Para mim qualquer abastecimento que tenha batata doce está aprovado! Como umas rodelas, empurro uma fatia de melancia e ala que se faz tarde!
Um km a descer leva-nos mesmo à boca da barragem da Loriga, até que uma cortada à esquerda nos encaminhada para 3km a subir até à Torre, local de mais um abastecimento e que marca o meio da empreitada. Lá em cima o vento é fortíssimo e arrefece bastante. Sinto-me ligeiramente desconfortável, também por causa do ultimo km, onde apanhámos alguns troços de subida mais inclinada. Encho os flasks, como mais uns pedaços de batata doce e faço-me ao caminho. Nesta altura já tínhamos mais de metade do desnível positivo conquistado, seguia-se a compensação. Cerca de 8km a descer até meio do Vale Glaciar.
Fotografia do Francisco Soares na descida até À barragem da Loriga, antes de virar à esquerda para a Torre. |
É precisamente nesta fase da descida que passo o pior bocado na prova. No meu já muito conhecido trilho do major sinto-me enjoado e o corpo entra num estado dormente. Não me consigo concentrar convenientemente, tropeço a toda a hora, dou pontapés em pedras e avanço muito atabalhoadamente. E se há trilho pouco propicio a desconcentrações é este! Nos 2km quase planos da Nave de Sto. António consigo meter um passo razoável de corrida enquanto me preparo para a parte final da descida, já no Vale Glaciar. Mais uma vez, desço de maneira muito pouco fluída e já imploro pelo abastecimento para reanimar.
Fotografias com fartura! do Francisco Soares. |
Esse chega aos 34km. Respiro fundo, meto uns bocados de aletria à boca (neste não havia batata doce!) e hidrato bem. Volto a encher os flasks e avanço para a penúltima subida do dia, uma picada de 300+ que nos faria transpor a parede direita do Vale Glaciar. Aperto as alças dos bastões e começo a trabalhar.
Nada como uma boa subida para nos trazer de volta à terra! O trilho aos zigue-zagues, cheio de pedras e patamares, é perfeito para meter um passinho certo. Mão direita, pé esquerdo, mão esquerda, pé direito. Inspira dois, expira três. A sintonia era perfeita e quase sem dar por cima estava a virar o Vale. Seguiam-se 2 ou 3km de estradão a descer com pouca inclinação, já conhecia esta parte. Felizmente as pernas disseram logo presente e fui correndo a um passo aceitável, apesar de nesta altura já com algum esforço.
Tirei esta fotografia não este fim de semana mas no verão passado, quando fiz este mesmo trilho sozinho, a treinar. A minha vista preferida dos três cântaros! Vejam o fundo do Vale lá em baixo. |
Entrava agora na única parte desconhecida para mim em todo o percurso. A descida ao Poço do Inferno. Já tinha feito a subida algumas vezes em sentido contrário, sabia que era muito inclinada apesar de curta, mas todo o caminho até ao fundo do Poço era nova.
Saídos dos tais 3km de estradão começamos a descer a pique uma encosta cheia de árvores e coberta com uma camada de 30cm de folhas secas. Sem trilho aparente, só fitas a orientar o caminho. Naturalmente os movimentos de pernas eram mais amplos que o normal para tentar não ficar preso numa raiz ou pau que se escondia debaixo das folhas, o que provocou um acesso imediato e violento de cãibras! Tive mesmo que parar uns segundos, tomar uma cápsula de sal e respirar fundo. Confesso que não achei grande piada a este km, mas também rapidamente o esqueci quando entrámos no verdadeiro trilho do Poço do Inferno.
Primeiro uma maravilha de terra numa encosta muito ingreme. Gradualmente ficou com mais e mais pedra, até se tornar num verdadeiro troço de skyrunning, muito difícil tecnicamente e de progressão lenta. Foi um alívio quando finalmente entrei no troço da subida que já conhecia, apesar dela própria ser bastante difícil.
A entrada no trilho do Poço do Inferno. Íamos mesmo até ao fim daquele desfiladeiro antes de voltar a subir. |
Cinco km a descer separavam-me do final, 4.5 deles feitos no conhecido trilho do Javali. Felizmente as pernas ainda tinham algumas reservas. Meti um último gel e embalei na calçada romana do trilho por ali abaixo. Uma bela descida, pouco técnica, que nos aproximava devagarinho da vila de Manteigas.
6h58 depois voltei a cruzar o pórtico da Estrela. Fui o 13º a cruzá-lo, o que me deixa orgulhoso, mas também tenho plena consciência que isso, no trail, não quer dizer nada. Na chegada lá estava o Armando para me dar um abraço e dois dedos de conversa, aposto que foi assim do primeiro ao ultimo classificado! Excelente prova com um excelente e equilibrado percurso. Adorei! Já não ia ao EGT desde 2015, quero ver se não passo tanto tempo sem voltar a ir uma reunião de Amigos do Armando!