Depois de na noite anterior ter visto a lua num céu limpo, cheguei a pensar que o IPMA se tinha precipitado ao decretar o alerta laranja, mas as dúvidas dissiparam-se na manhã seguinte. Pela janela da nossa confortável e quentinha casa em Paçô vi as árvores a balançarem violentamente, fustigadas pela chuva e o vento, num daqueles dias de inverno em que tudo parece cinzento. Franzi o nariz e vesti o impermeável por cima da mochila já toda arrumada, na esperança de, a certo ponto na prova, o poder tirar. Pensava eu que o tempo mais severo seria até ao meio dia e que a partir daí melhorava.
Passagem na Ponte do Poço de Santiago, fotografia do grande Samuel Fritz. Aliás, todas as fotos deste post são dele, fica já apresentado! |
Na partida a perspectiva nem era má. Sim, estava muito vento, mas a chuva era miudinha. Durante a noite ouvi-a a cair com força, talvez o pior já tivesse passado! Bem, não interessa, às 8:30 deu-se a partida para os 210 participantes na prova aberta do Vouga Ultra Trail, uma hora depois de terem partido cerca de 300 atletas no campeonato nacional de ultra trail, que percorreria exatamente o mesmo percurso. Este é um facto importante na historia das próximas horas, já vão perceber porquê...
Não passou muito tempo de corrida para o Vouga Trail se apresentar. Depois de um primeiro km a subir ainda dentro de Sever, entrámos nos primeiros trilhos. Terra escura, folhas caídas, raízes e muita água. Não era só água da chuva, toda a serra parecia que transbordava água, como se estivesse viva! O branco da água agitada que corria nos ribeiros contrastava com o verde das árvores e pedras cobertas de musgo e o castanho escuro da terra dos trilhos, coberta de matéria orgânica. De todo o lado brotavam cascatas quase que improvisadas, como se os montes já não soubessem o que fazer a tanta água! Corríamos em trilhos técnicos, num constante sobe e desce, ora dum lado ora do outro de algum ribeiro, muitas vezes dentro deles! Ora, terra macia + água com fartura + 300 pessoas a passar por cima dos trilhos uma hora antes só pode dar um resultado: lama com fartura e trilhos completamente empapados.
Nada de novo ou extraordinário, todos nós que corremos em trilhos já fizemos uma ou outra prova nestas condições. E durante as primeiras horas nem me pareceu assim tão mau! A progressão era naturalmente mais lenta e custosa, estar constantemente a escorregar implica que estejamos sempre a esforçar-nos para repor o equilíbrio. As descidas eram muito difíceis, não só tinham que ser feitas devagar (pelo menos por mim) como dispendíamos muita energia para as fazer. Muitas delas foram feitas de rabo no chão! Mas os trilhos na primeira metade da prova eram tão bons que todo aquele ambiente acabava por nos absorver.
Passagem pela espetacular Cascata da Cabreia. |
A primeira grande subida levou-nos aos 850m, ponto mais alto da prova. O perfil desta prova engana. Saltam à vista duas grandes subidas, uma de cada lado do vale, cada uma a elevar-nos acima dos 800m. O que não se vê logo é o constante parte pernas, com pequenas subidas e descidas, que compõe praticamente todo o percurso. Raramente estamos só a subir ou só a descer durante muito tempo.
Conseguem ver os dentinhos? |
A passagem pela barragem de Ribeiradio marcou sensivelmente o meio do percurso, em todos os sentidos. Os próximos quilómetros seriam agora corridos na margem esquerda do Vouga, subiríamos à serra do Ladário, antes de voltar a cruzar o Rio para a ponta final da prova. E foi mesmo neste virar de margem que tudo mudou.
Era meio dia. A tal hora a partir da qual eu achava que o tempo ia mudar. À minha espera no terceiro abastecimento, Paçô aos 29km, estava a Sara com os miúdos o Pedro e a família, que foram passar o fim de semana conosco. Tinha previsto passar lá ao meio dia, já ia pelo menos com meia hora de atraso. Senti-me mal por os fazer esperar, mas a progressão estava bastante mais lenta do que eu achava que conseguia.
São estas figurinhas que ando a fazer. |
Chovia torrencialmente há pelo menos meia hora quando lá cheguei. Estranhei, era àquela hora que devia começar a abrir. Comi umas bananas no abastecimento, muito pobre, por sinal. Os 300 do campeonato nacional tinham debelado completamente todos os abastecimentos, situação a rever no futuro. Enfim, combinei com a Sara só nos vermos na meta e parti para enfrentar a segunda grande subida do dia.
Agora sim, subíamos a sério. Uma boa subida. Já a chuva, estranhamente não só não abrandou depois do abastecimento como era agora cada vez mais pesada! À medida que nos aproximávamos dos 800m esta era incessante, o vento cada vez mais forte e mais frio. Não conseguia fechar completamente o impermeável porque tinha as mãos geladas, por isso sentia-me a gelar. Assim que chegamos perto do cume e as árvores desapareceram, foi como se tivéssemos entrado noutro mundo! O vento era monstruoso, a chuva picava como agulhas na cara e na cabeça já sem capuz, sentia-me cada vez mais desconfortável e com dificuldade em produzir calor. Comecei a ficar preocupado! Pensei parar e tirar da mala um buff grosso que levava comigo e umas luvas mais grossas, mas isso implicava tirar o impermeável e passar muito tempo parado, péssima ideia. Decidi forçar o ritmo na descida, para produzir mais calor, mas a lama e água era tanta que dificultava muito a progressão.
O abastecimento apareceu logo após o cume, em Lameiro Longo. Numa casa muito pequena e abafada. Consegui, aqui sim, comer uma canja quentinha. Pedi a uma pessoa para me ajudar a apertar o impermeável, o que me deu um grande alento, e parti logo de seguida, para não deixar o corpo habituar-se ao calor. Lá em cima vi pelo menos 10 pessoas embrulhadas em mantas térmicas ou a entrar dentro de carros a desistir. Estava realmente perigoso, como há algum tempo não sentia.
Mais confortável pelo impermeável fechado e com a barriga satisfeita, enfrentei o resto da descida até cruzar novamente o Vouga com outro alento. A chuva, essa, é que não deu tréguas. Desde o meio dia que caía sem parar um segundo e sempre a intensificar, tornando impraticáveis todos os caminhos, desde os trilhos aos estradões, que às vezes pareciam autênticos rios, e às vezes até perigosos, como algumas levadas que percorremos, com pouco mais de 30cm de trilho enlameado, uma levada do lado direito e um precipício do lado esquerdo. Por isso, foi com alguma satisfação que percorri 500 metros da Ecopista do Vouga, um caminho de alcatrão, direitinho e sem lama!
Um bocadinho de alcatrão nunca fez mal a ninguém! |
Antes da chegada ao Parque Urbano de Sever do Vouga, onde estava a meta, ainda tivemos que mamar com um estradão a subir com quase 3km. Sempre debaixo de chuva torrencial, sempre com os pés de molho ou dentro de lama até ao tornozelo! Nesta altura já ia bastante saturado daquilo tudo e só queria chegar ao fim, o que não tardaria muito.
Até os estradões pareciam rios |
Tinha previsto chegar à meta a rondar as 7h30. Demorei mais uma hora que isso a completar os 56km com 3100+. Confesso que fiquei um pouco desiludido com a minha prestação, até porque não tive quebras nenhumas ao longo do percurso, simplesmente não estou em forma para mais. No entanto, esta é daquelas provas que deixam um certo orgulho e sensação de vitória por apenas e só ter chegado ao fim. Para terem uma ideia, dos 200 que começaram a prova aberta, apenas 120 chegaram ao fim. E nada melhor para celebrar uma vitória que comer uma vitela n'O Cortiço, em Sever do Vouga, acompanhado por um tinto, com a família e amigos! Bate lá isto, André Rodrigues!