Quando decidi voltar a apostar no trail, no inicio deste ano, andei a procurar provas no
Calendário do Carlos Fonseca. Logo na altura chamou-me a atenção uma prova em Novembro. A distancia, 80km, era uma loucura inatingível para mim, mas chamou-me a atenção a qualidade do site da prova, e a maneira como já tinham as coisas definidas a tantos meses do evento. Entretanto, lá para Julho, inscrevi-me na distancia ultra. O site continuava igual. Os meses passaram e não haviam novidades nenhumas. Quando entrei nas ultimas duas semanas, aquelas em que praticamente só pensamos na prova 24 horas por dia, comecei a ficar de pé atrás. Então não divulgam o track? E os abastecimentos? E um perfil em que diga onde é que eu me vou cansar mais? E uma folha secreta a dizer que tempo vou fazer?? Ui que isto vai correr tudo mal! Vai estar tudo mal marcado, os abastecimentos vão ser péssimos, vou torcer um pé, vai ser só estradões... AAAAAH
Foi assim, com este espírito, que acordei no domingo às 5 da manhã. Por causa disso, estou convencido que os deuses do trail me castigaram pela falta de fé, e decidiram transformar-me num bicho. Ou isso ou então em Setúbal há melgas mutantes que ainda sobrevivem a meio de Novembro, Senhoras e senhores, era esta a cara do bicho com o dorsal 32:
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Obrigado melga, o lábio ficou fixe :) |
A partida foi dada no Castelo de Palmela com um ligeiro atraso. Às 7:10, já de dia, lá foram os cerca de 150 bravos para enfrentar os 80km.
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4 dos 6 Almeirinenses presentes em prova |
O percurso começou com uma grande descida técnica. Divertida e rápida qb, serviu para dispersar os atletas antes de entrar nos trilhos mais técnicos. Como podem ver no perfil altimetrico, nunca andámos em grandes altitudes, o ponto mais alto do percurso tinha 237m.
Nesta altura, ainda desconfiado da organização que se estreava no trail com uma prova muito ambiciosa, andei sempre atento às marcações. A verdade é que até agora estas estavam impecáveis! Grandes e visíveis fitas amarelas marcavam o percurso exactamente onde tinham que marcar. Com maior densidade nas mudanças de direcção e em situações que pudessem provocar duvidas, e mais dispersas em trilhos compridos. Perfeito! Ainda cheguei a considerar que lá mais para a frente se podiam desleixar, mas não! Posso mesmo afirmar que foi a prova com melhor marcação que já fiz! Já nos atravessamentos de estradas, invariavelmente estavam elementos da organização, muitas vezes acompanhados de policias que paravam o transito, cinco estrelas!
Bem, mas voltando aos trilhos. Os primeiros 15km foram fantásticos. Sempre dentro da Serra da Arrábida, fomos subindo e descendo encostas muitas vezes com uma vista espectacular para Setúbal. O percurso, sempre em single tracks muito bem limpos e corriveis, serpenteava no meio de uma vegetação maioritariamente baixa mas com muitos pinheiros mansos que ofereciam sombra e um cheirinho que me iria acompanhar até ao fim.
Eu seguia bem, sempre controlado e sem nunca forçar. Corria desde o inicio com um desconforto intestinal, o que me assustava, mas fisicamente estava impecável. Decidi levar os meus bastões, apesar da prova ter muito pouca altimetria. Sobre eles, falar-vos-ei mais tarde, mas posso desde já dizer que estou definitivamente rendido! Aliás, penso que vou começar a andar com eles no dia a dia :)
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Calma, também não é preciso esse entusiasmo todo. |
O primeiro abastecimento chegou aos 15km. Exactamente aos 15km, como anunciado. Era no sopé de uma montanha, junto ao Teatro o Bando. Era o meu segundo maior receio, e mais uma vez perfeitamente infundado. O abastecimento estava quase impecável. Fez-me lembrar as festas de anos quando eramos putos, só faltavam os rebuçados de fruta espalhados em cima da mesa. A única coisa que faltava neste e nos outros abastecimentos todos (com excepção do que tinha comida quente) era mais comida salgada, que se cingia a amendoins. De resto estava lá tudo, muita fruta, marmelada, salame, bolo de chocolate, areias, bolos de manteiga, outros bolos que nem sei o que eram, água, isotonico, coca cola... Estava com fome e comi bastante. Sabia que logo a seguir tinha uma boa subida, que serviria para assentar a comida no estômago. Tinha esperança que isto atenuasse ou eliminasse o desconforto que sentia.
Junto ao teatro, e imediatamente antes de uma subida de cerca de 150m por escadas rudimentares, estava um grupo do Teatro, numa espécie de improvisação à volta de uma mesa de pique nique. Estavam com umas máscaras meio estranhas e em algumas cadeiras estavam uns bonecos de palha. Agradeço o esforço para animar o pessoal, mas aquilo pareceu-me muito sinistro! Lembrei-me da familia Sawyer do " The Texas Chainsaw Massacre", só lá faltava o Leatherface (desculpem o momento nerd de filmes de terror). Se tivesse visto aquilo já de noite borrava-me todo!
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A familia Sawyer. Pessoas muito porreiras. |
O segmento seguinte foram cerca de 10km num single track que passou junto de muitos moinhos, sempre na crista do monte. Como andámos sempre lá em cima, as subidas e descidas nunca eram muito acentuadas, por isso dava para correr sempre. Muito engraçada esta parte. Foi um dos segmentos que ao olhar para o track do percurso parece um grande e chato estradão, mas não podia estar mais enganado!
No fim destes 10km descemos finalmente do monte e continuamos por trilhos estreitos. Neste segmento decidi tomar uma atitude quando às dores de barriga. Pequeno desvio, tratar da logística e....vocês sabem o resto.
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Obrigado internet, nunca me desiludes. |
Aos 28km estava o segundo abastecimento, dois quilómetros antes do anunciado. Esta é a única (pequena) falha que posso apontar. Este estava dois quilómetros antes, e o que estava anunciado aos 72km só chegou aos 74. Nada de grave. O segmento seguinte passaria então dos anunciados 18 para 20km. Achei demasiado entre abastecimentos. Pelo sim pelo não abasteci bem de água e tomei um gel.
Destes 20km, cerca de 10 foram em estradões. Quando vi o track fiquei com muito medo que a maioria do percurso fosse nestas estradas de terra, mas felizmente estavam todos concentrados nestes 10km. Foram chatos, sem dúvida, mas não beliscaram a excelência da prova.
O problema dos estradões, além da monotonia, é que dão quase sempre para correr. A certa altura já rezava para que na próxima curva estivesse uma grande subida para descansar. Esta parte foi quase toda corrida num vale na base dos grandes picos da Arrábida. Foi chato.. Parecia que não saímos do mesmo sitio. Comecei a ficar com medo que a prova fosse assim até ao final. Ia com uma média muito boa, mas correr durante longos períodos desgasta muito o corpo, e se assim continuasse ia pagar mais tarde.
Felizmente, nos últimos 3km antes do abastecimento voltámos a entrar na serra. Voltaram os trilhos estreitos e divertidos, e o abastecimento lá chegou, aos 48km como anunciado.
Entrávamos agora numa terceira fase da prova. Depois dos trilhos corriveis e dos estradões chatos, era agora altura de voltar a mergulhar na Serra e finalmente enfrentar subidas violentas! Oh, a alegria de ser massacrado!! :')
Puxa dos bastões e *tlec* *tlec* *tlec* por ali acima.
Meus amigos, deixem-me falar-vos do meu amor pelos bastões. Acham que é uma mariquice? Pois bem, não quero saber disso para nada, só lhes vejo vantagens. São leves o suficiente para não incomodarem o percurso todo se tiver que correr, ajudam na postura quando subimos eliminando as dores de costas, poupam as pernas nas descidas mais violentas, ajudam a passar por obstáculos como possas de lama gigantes (e então se foram poucas...), e em caso de desespero ainda conseguem caçar um coelho e fazer um guisado!
Foram 14km de sobe e desce até ao terceiro abastecimento, nos 62km. Com uma progressão muito mais lenta que no inicio. Sucederam-se as subidas muito inclinadas, apesar de curtas. Nas descidas comecei a sentir muito o desgaste, doíam-me muito as articulações dos tornozelos, nunca me tinha acontecido. Continuei sempre controlado e sem nunca forçar, encarei este desgaste como natural, de quem já tinha percorrido 60km.
O terceiro abastecimento era onde estava a nossa mala com roupa para trocar. Mas o que interessa falar aqui é da espectacular canja quentinha que comi. Aliás, das duas canjas quentinhas que comi! Qual tomate com sal, amendoins ou batata frita, não há nada como comida a sério. Com o estômago reposto e muito mais confortável depois de trocar de camisola e t-shirt, lá segui caminho.
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Sorry... |
O percurso não se alterou muito até aos 74km. O que se alterou foi a minha condição física. Estava agora a entrar em níveis mínimos. Como previa, estava a pagar aqueles quilómetros todos seguidos a correr. É uma pena que não tenha aproveitado bem estes quilómetros, porque o percurso era espectacular. Todos, mas TODOS os trilhos eram bons para correr! Incrível, quem me dera ter pernas.
Estávamos agora no coração da Arrábida, muitas vezes com vista para o mar. A certa altura vi a Península de Tróia de uma perspectiva espectacular, melhorada pela luminosidade do por do sol. Daqueles momentos que nos fazem lembrar porque gostamos disto.
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Não há imagem que lhe faça justiça. |
Continuei a correr já com muitas dores. Quando passava uns minutos a correr e parava numa subida parecia que todos os músculos bloqueavam e as articulações gritavam. Quando tinha que arrancar para nova corrida parecia um velho de 90 anos depois de se levantar de 2 horas de sofá. Haja sofrimento!
O abastecimento dos 72km lá chegou, mas aos 74. Completo como todos os outros, e com pessoas simpáticas, como todos os outros. O sol estava quase a por-se e estava a começar a sentir frio. Vesti o impermeável, que servia de corta vento, um buff na cabeça, outro buff no pescoço e frontal da testa. Sentei-me uns minutos numa cadeira que lá estava e comi calmamente. Faltavam cerca de 9km, já nada me tirava mais esta ultra, era só ir com calma.
A energia recuperada no abastecimento não demorou muito a ser dissipada nuns metros de trilhos. Seguia agora sozinho e raramente via alguém. Quando o sol finalmente se pôs ainda me faltavam cerca de 7 ou 8km, que demoraram uma hora a cumprir.
Não gosto muito de correr de noite, confesso. Para já perde-se o prazer de apreciar a paisagem, depois nunca conseguimos desfrutar dos trilhos porque vamos demasiado concentrados a tentar não cair e a procurar a próxima fita.
Quanto às fitas, mais uma vez tenho que elogiar a organização. Utilizaram umas fitas reflectoras como nunca vi em mais nenhuma prova, eram gigantes e parecia que tinham luz própria, impecável! (Já devo ter utilizado o adjectivo impecável umas 5 vezes, acho que é um sinal).
Cruzei finalmente a meta passadas 11h16, com 83km certinhos. Na meta estava montada uma grande estrutura de apoio, com comida quente, musica e animação. Infelizmente esta parte não foi perfeita. Faltaram dois elementos importantíssimos, que é suposto estarem em todas as metas e todos os abastecimentos: a Sara e a Maria Amélia. Mas ok, para o ano a organização decerto fará esforços para que elas estejam presentes :)
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Ok, um pin para finisher é que ficou um pouco a desejar.. |
Em resumo, foi uma prova que surpreendeu muitíssimo. Como perceberam, houve de tudo. Partes corriveis, partes técnicas, boas subidas (total cerca de 2200d+), bons abastecimentos... Foi uma prova rolante, mas nem por isso pouco dura. Com esta organização, parece-me que tem capacidade de ser uma referencia a nível nacional e uma excelente porta de entrada para as distancias mais, digamos, ultra.
Ah, e lembram-se da batata que tinha no lábio? No fim já tinha desaparecido! Por isso já sabem, se algum dia uma melga vos picar no lábio e ficar inchado, vão correr 80km que isso passa!