Quilómetro 70 - 1600m de altitude.
Para trás tinham ficado 69km de uma
prova quase perfeita - tudo de acordo com o plano! De trás para a frente,
controlada, sólida e confortável. Obstáculo atrás de obstáculo transposto. Cada
vez mais confiante, mais sorridente e bem disposto!
Mas depois chegou o quilómetro 70.
No quilómetro 70 mudou tudo.
Já estávamos no avião da Easyjet,
depois de muitas horas de espera dentro do terminal e de uma primeira falsa
partida, quando o meu receio se confirmou - era impossível aterrar no Funchal
naquela noite. Pelas cabeças de mais de metade dos passageiros do avião terá
surgido imediatamente a mesma dúvida: será que chego a correr?? Felizmente,
rapidamente e com uma eficácia espantosa, a Easyjet tratou de marcar um voo
para a manhã seguinte e transportou-nos de autocarro para o luxuoso Hotel
Marriot. Entretanto, enquanto dormíamos umas curtas 5 horas no que me pareceu o
colchão mais confortável alguma vez produzido, o temporal que devastou a
Madeira no dia anterior dissipou-se e permitiu-nos aterrar no espectacular aeroporto
do Funchal por volta das 10:30 de sexta feira. Nessa altura caiu a ficha: o dia
já começou há 5 horas e ainda tenho 115km para correr!
Abençoado colchão do Marriot |
Era altura de assentar bagagens,
levantar dorsais, almoçar e desligar os motores durante umas horinhas para
repor o sono que fiquei a dever ao colchão do Marriot. Felizmente, tudo na
Madeira parece que funciona bem e este processo foi muito rápido. Já deitado
noutro colchão, o d'O Facho em Machico, depois de uma sesta retemperadora,
finalmente sosseguei os receios de um começo em falso. Voo cancelado, planos
furados, voltas alteradas... pouco interessa! Eram nove da noite e estava na
hora de ir virar a ilha!
Eu e o Vasco, também ele repetente,
despedimo-nos dos nossos companheiros de viagem, que teriam prova no dia
seguinte, e entrámos no ultimo autocarro rumo a Porto Moniz. Os risos e piadas
nervosas dos primeiros minutos deram lugar a um silencio sepulcral dentro do
autocarro. Enquanto observava as escovas a limpar uns pingos de chuva do limpa
para-brisas, revi a prova na minha cabeça, mas desta vez não numa perspectiva
ansiosa, de quem quer saltar para o monte e enfrentar o monstro, mas com puro
receio, de quem sabe o que vai encontrar. O nó na barriga apertou quando logo
de seguida me lembrei da Sara e dos miúdos, que desta vez tinham ficado em
casa. Comecei a entrar num local escuro na minha cabeça e peguei no telemóvel
para lhe mandar uma mensagem a dizer que não me estava a sentir bem, mas em boa
altura me deixei de pieguices e voltei a arrumá-lo no bolso.
Eu e o Vasco, que já conhecem de outras aventuras. |
Chegámos a Porto Moniz. Temperatura
amena, como é habitual na Madeira, e chuva muito muito ligeira. Encaminho-me
com o Vasco para a partida e sentamo-nos nos mesmos degraus onde estivemos o
ano passado. Estou muito nervoso, o nó na barriga aumentou, mas como sempre a
presença do meu amigo é tranquilizadora. Há pessoas assim, o Vasco é uma delas.
Ultimo telefonema para casa, emociono-me quando oiço a minha Mel a dizer
"gosto de ti pai, o pai ganha!" e despeço-me de todos. Tinha chegado
a hora. Mais que em qualquer outra prova, é avassalador o sentimento de
respeito que se sente naquele garrafão antes do pórtico de partida. Todos os
caminhos me levaram até ali, agora era altura de cumprir o meu destino.
Estava bem lá atrás. |
Este ano está ainda mais gente nos primeiros metros depois
da partida. Centenas ou milhares de pessoas a aplaudir e aos gritos! Impossível
não ficar por um lado motivado, por outro envergonhado por começar a passo
quando a subida empina. Mas assim terá que ser. Encaro os 400d+ desta primeira
subida, que por sinal é a mais fácil de toda a prova, com muita calma e
aproveito para observar melhor que o ano passado Porto Moniz lá em baixo. O
final coincide com um lance de escadas, onde apanho um pequeno engarrafamento e
desemboca numa levada muito boa de correr. Assim que viramos a montanha começam
a ouvir-se os gritos da multidão que mais uma vez estava lá em baixo, em
Ribeira da Janela. Percorro a descida em zigue zague muito tranquilamente, mais
preocupado em não torcer um pé do que com ultrapassagens. Ao passar a ponte lá
em baixo olho para trás, mas desta vez venho tão no fim que o famoso zigue
zague luminoso não está em todo o seu esplendor! Enfim, essa recordação já eu a
tenho. O prologo estava cumprido, ia começar o MIUT.
Lembrava-me bem da subida seguinte. Dos primeiros 2km ainda
dentro da povoação e mais tarde a entrada no trilho e as primeiras escadas.
Subimos debaixo das nuvens até cotas de 500 ou 600m, até que as apanhamos e
passamos a andar dentro delas. Foi assim que entrámos no trilho, debaixo de uma
chuva ligeira, temperatura amena e humidade altíssima. O que não estava à
espera era de um novo elemento que nos foi apresentado precisamente nesta
altura: a lama. O temporal dos últimos dias fez estragos, particularmente nesta
parte inicial, o que tornou uma subida difícil numa alarvidade com lama pelos
tornozelos. Os degraus em troncos estavam ainda mais escorregadios e
frequentemente enfiávamos os pés todos dentro da lama. Não estava fácil, muito
pelo contrário. Ninguém falava, sentia-se a tensão entre todos. A subida
mostrava-se demolidora, os 1200+ em 11km não deixavam margem para dúvidas, aqui
os mais fracos não passariam. As árvores cobriam-nos por completo, não passava
uma brisa. Por volta da cota 1000 passámos finalmente o nível das nuvens e
entrámos numa espécie de planalto. Aqui tenho o primeiro momento arrepiante do
dia - a lua, gigante, iluminava um manto branco fantasmagórico poucos metros
abaixo de nós, dele despontavam picos pontiguados, agressivos, de contornos
pretos, que contrastavam com o mar branco de nuvens. Uma coisa abismal, tive
que parar para absorver aquilo! Subíamos em campo aberto e com menos inclinação
quando comecei a ouvir os gritos e sinos. O primeiro abastecimento, do Fanal,
estava já ali!
Por incrível que pareça, os abastecimentos este ano são
ainda mais completos e bem organizados que o ano passado. Bebo rapidamente uma
chávena grande de café, uns bocados de queijo e alguns figos. Por esta altura
já tinha metido um gel e uma barra, decidi que não passaria uma hora sem comer
qualquer coisa, por isso não tinha fome. Olhei de relance e já via algumas
pessoas com muito mau aspecto sentadas no abastecimento. O MIUT não brinca em
serviço...
A descida seguinte, até Chão da Ribeira, marcou-me no ano
passado. É sem dúvida alguma a descida mais difícil que já fiz na vida e
assustava-me tanto como um km vertical a subir. Sempre que falava com
estreantes avisava-os desta descida e não de qualquer subida. Mas agora
arrependo-me disso - devia ter exagerado mais! Que doideira de descida!
Degraus, socalcos, degraus, pedras, raízes, lama e mais lama. Escorreguei
dezenas de vezes e fi-la quase a passo! Uma brutalidade que dá cabo não só das
pernas mas da cabeça, que não consegue sossegar um segundo.
Quando passei o abastecimento do Chão da Ribeira, nos
míseros 100 ou 200 metros que intercalam a descida anterior da brutalidade de
subida até Estanquinhos senti que estava numa espécie de trituradora
implacável. Ai acabaste a descida mais difícil da tua vida? Então toma lá este
petiscozinho.
Já vos falei desta subida o ano passado, mas acho que não
fica mal voltar a frisar os números: total de 1200d+, com uma parte inicial de
1100d+ com 3.7km. Só. É inacreditável. Durante 3km vamos com a cabeça ao nível
dos pés do companheiro da frente, por cima de nós vêem-se luzinhas a centenas
de metros, um zigue zague demolidor e infinito. Ainda por cima o terreno é
implacável, muito incerto, nunca dá para meter um ritmo estável. É sem dúvida a
subida mais complicada do MIUT, se aparecesse lá mais para o fim acho que
metade ficava pelo caminho. O ano passado subi furiosamente a ultrapassar
pessoas, desta vez apanhei boleia num comboio que seguia bastante devagar.
Muitas vezes tinha vontade de ultrapassar e andar mais, mas dizia a mim mesmo
para ter calma, e assim foi. Só lá mais para o fim, quando já ia a adormecer no
ritmo, cedi à tentação e fui atrás de um americano que passou o comboio, sentia-me
incrivelmente bem e solto. Fomos a bom passo até Estanquinhos, local do segundo
abastecimento e primeiro corte da prova, com 6h15, o corte era às 7h30.
Tal como o ano passado, entrei no abastecimento com um
sorriso. A diferença é que na altura achava que tinha conquistado a prova,
desta vez estava radiante com a conquista dos primeiros 27km. Era apenas um
obstáculo ultrapassado.
Este abastecimento já parecia uma zona de guerra. Muita
gente pálida, uns embrulhados em mantas, outros a abraçar um copo de chá ou
café quente... Esta primeira fase do MIUT é uma brutalidade. Um verdadeiro
teste de aptidão, ali não há paisagens de cortar a respiração nem trilhos
divertidos, é só dureza e brutalidade, para separar o trigo do joio.
Se a descida anterior ficou na minha memória como a mais difícil
de sempre, a que se segue tem lugar como a mais espetacular e variada. Mas foi
a meio dela que o ano passado comecei a duvidar que conseguiria acabar, por
isso saí do abastecimento num misto de confiança e apreensão.
O primeiro km, em estradão e ainda de noite muito escura,
fez-se bem. Tal como me lembrava, era um estradão traiçoeiro, com muitas e
grandes pedras. Logo nos embrenhámos na floresta Laurissilva para o parque de
diversões. Esta descida foi....bem, é indescritível. Não consigo arranjar
palavras que façam jus. Estamos a falar de uma descida com 10km em que se
perdem cerca de 1100m verticais, a cada km parece que entramos num nível
diferente, um trilho completamente diferente com desafios distintos. O sol que
começou a nascer no fim do estradão acendia a encosta monstruosa totalmente
coberta de um verde virgem, milenar. Abaixo de nós o manto branco de nuvens só
não tapava os picos que emergiam como ilhas, lá ao fundo atrás de uma montanha
o céu pintava-se de tons avermelhados. Tive mesmo que parar para tirar uma foto
(tirei 3 ao longo da prova!), que obviamente está longe de mostrar o que
presenciámos ali. Árvores gigantes, túneis na pedra, cascatas literalmente
atravessadas, troços demolidores com escadas, outros cobertos de folhas macias.
Absolutamente magistral. Disse e repito, se alguém tentasse não conseguia
inventar uma descida tão perfeita. A melhor parte é que desta vez estava a
degustá-la como deve ser! Sentia-me cada vez melhor e com vontade de correr
mais depressa. Os 3 últimos géis que tomei tinham cafeína, talvez por isso
desta vez não senti sono nenhum. Pelo contrário, estava cada vez mais desperto.
Tirada a meio da descida. |
Cheguei ao abastecimento do Rosário num estado quase de
euforia, mas rapidamente desci à terra. Seguia-se a terrível subida da
Encumeada, local onde rebentei o ano passado. Guardei o frontal na mala e despi
o impermeável. Comi mais uma barra e ataquei a subida com toda a seriedade.
Mais uma etapa.
Em 2015 foi aqui que comecei a parar e debruçar-me sobre os
bastões. Foi aqui que me passaram dezenas de companheiros e fiquei em pânico
quando percebi onde me tinha metido. Desta vez comecei bastante devagar, sabia
que tinha uns km de estradão e trilho fácil antes de chegar às escadarias
finais. Foi essa a minha táctica para o MIUT, começar as subidas a um passo
muito curto e estável, depois aumentar lá mais para a frente se tivesse pernas.
O importante era não parar, e não parei. Conquistei os 500d+ e aquele lance de
escadas final demolidor sem grandes sacrifícios e mais uma vez o sentimento de
nível superado meteu-me um enorme sorriso na cara! Desta vez já não tive
dificuldade nenhuma em correr naquele km de estrada a descer até ao
abastecimento.
No abastecimento, situado no espectacular hotel da
Encumeada, comi mais uns figos e uma taça de canja. O cenário era idêntico aos
anteriores, com algumas baixas espalhadas pelas cadeiras. Revi-me a mim próprio
o ano passado, sentado numa cadeira afastado de toda a gente a comer sopa. Mas
desta vez não. Desta vez metia conversa com toda a gente e só queria meter-me a
caminho!
Depressa me fiz ao resto da descida. De seguida iria
apanhar o famoso pipeline, um tubo verde que sobe a pique a encosta,
acompanhado por uns degraus muito pouco simpáticos em betão. Há um ano que
tenho pesadelos com aquele tubo... Mudei o chip, acalmei a euforia e pus a
minha game face. Hora de trabalhar. Mais uma vez a gestão do esforço resultou
na perfeição, cheguei lá acima sem hesitar em nenhum degrau e assim que piso o
trilho a descer desato a correr. Menos um!
Esta foi provavelmente a minha melhor fase de toda a
corrida. São cerca de 4km em trilhos que rodeiam completamente o vale antes de
começar a subida final que vira a montanha para o Curral de Freiras. O ano
passado arrastei-me, este ano corri sem vergonha nenhuma! Esqueci a gestão,
esqueci a cautela e desfrutei a 100% daquela maravilha de caminho. A subida,
que este ano me pareceu muito pouco violenta, foi feita a bom ritmo. Lembrei-me
do grupo de madeirenses que o ano passado me ajudaram naquele ponto e sorri.
Nesta parte final íamos ao lado de uma escarpa tão alta e íngreme que o GPS
perdeu o sinal! Tanto eu como os colegas todos que lá estavam. Só na Madeira..
A
montanha foi conquistada aos 1400m, agora era altura de descer bem até lá
abaixo, ao fundo da garganta, onde estava entalado o Curral de Freiras. Mais
uma descida interminável e muito difícil. Um massacre às pernas que parecia não
ter fim! Farto-me de dizer que é bem mais difícil treinar para descidas do que
para subidas, mais ainda quando as subidas não são rolantes e requerem constantes
mudanças de direção e de solicitações ao nosso corpo. Esta descida é um
clássico do MIUT e percebe-se porquê, é devastadora.
Curral de Freiras (não é minha, obviamente). |
Uma das
poucas novidades do percurso deste ano era a localização do abastecimento do
Curral de Freiras. Desta vez a base de vida estava num pavilhão mesmo dentro da
vila. Assim que chego lá dentro encontro um cantinho para mim e começo a tratar
das tarefas programadas: comer, trocar de roupa, carregar mais mantimentos,
ligar para casa e, importantíssimo neste sitio, encher todos os depósitos que
tivesse disponíveis com água. Quem vai fazer o MIUT pela primeira vez, nunca se
esqueça disso: toda a água é pouca para o percurso até ao Pico Ruivo.
No abastecimento. Com uma cara que irradia felicidade. |
Saí do
abastecimento com 60km e já cerca de 5000d+. Estava super bem disposto e
confiante. Na minha cabeça tinha vindo a fazer "check" em todas as
etapas que considerava cruciais até agora, mas sempre que passava uma
lembrava-me "calma, não cantes de galo, ainda falta o caminho do Curral
até ao Pico do Arieiro!". Este segmento de cerca de 16km tem duas fases
distintas: primeiro um km vertical até às Torrinhas e depois entrávamos no
paraíso das escadas, o caminho que liga os dois picos. É a ultima GRANDE
dificuldade do MIUT e sabia que se chegasse ao Arieiro com pernas o restante
até Machico seria tranquilo. Mas…. era preciso passar lá primeiro. Vamos a
isso.
Ataquei o
km vertical inicial com a estratégia de sempre: começar devagar, estabilizar e
finalmente soltar-me. Dos 3, este é o km vertical mais fácil do MIUT.
Embrenhado no meio dos eucaliptos gigantes, com muitos degraus mas nunca
demasiado agressivo. Reconheci muitos pontos de passagem do ano passado e até
me lembrei de vários sítios onde parei e me sentei num tronco ou numa pedra.
Mas não este ano. Este ano segui no meu ritmozinho, sempre sem parar. Estava a
ser mais uma vez perfeito. De vez em quando olhava para o relógio e via os
metros verticais a passar e o ânimo a subir. Vi de novo as árvores
fantasmagóricas do ano passado, e desta vez tirei mesmo uma fotografia.
Estávamos de novo acima das nuvens e a vista era de outro mundo.
Esta tirei eu! |
Quilómetro
67… Passei a Boca das Torrinhas. A primeira etapa estava conquistada com
sucesso! Faltavam agora 2.5km até ao Pico Ruivo, onde estava um abastecimento
de líquidos. Iam começar as escadas.
Quilómetro
68. O primeiro km de escadas era quase sempre a descer. Lembro-me de no ano
passado ter ficado em pânico quando me comecei a afastar tanto da cota dos
1700, onde estava o Pico. Agora que estávamos acima das nuvens e completamente
expostos ao sol reparei que estava a escorrer suor e desconfortável com o calor.
Quilómetro
69. Primeira parte do sobe e desce que iriamos enfrentar nos próximos 7 km.
Escadas, escadas e mais escadas… Nova descida abrupta. Olho para a frente e
vejo lá MUITO em cima colegas a virarem a montanha. Só há uma maneira de lá
chegar, e é pelas escadas.
Preparo-me
para enfrentar o lance final até ao abastecimento. Seria 1km a subir a pique.
Respiro bem fundo, logo de seguida fico com uma tontura, efeitos da altitude.
Inclino-me para baixo e o suor escorre-me como uma torneira aberta. Limpo os
olhos, que ardem, com a manga da tshirt já ensopada. Dou um passo. Subo outro
degrau. Apoio os dois bastões. Tento levantar a perna de trás, mas…
Quilómetro
70.
Parei.
Debrucei-me
sobre os bastões e respirei sofregamente enquanto o suor escorria para o chão.
Os pulmões pediam mais. Bebi uns bons 4 goles de água. Olho para o relógio e
reparo que é hora de comer, saquei de uma barra. Assim que a meto à boca constato
que ia ser uma missão muito difícil, não consigo comer sem me darem vómitos.
Arrasto-me escadaria acima, o abastecimento tardava, mas precisava dele. Cada
vez mais devagar, até que tenho que parar de novo. Solto uma asneira e de raiva
subo os restantes degraus. Lá em cima não corre uma brisa, está um sol
abrasador, muito calor.
Entro no
abrigo de montanha onde está o abastecimento e espero encontrar um sitio
fresquinho, mas não. Também está quente e desconfortável, como eu. De repente
fico apreensivo. Começo a rever a prova na minha cabeça, tudo o que falta
passa-me pelos olhos como um flash e começo a ficar com medo. Caio em mim e
percebo que tinha levado a famosa marretada, tardou mas chegou. Agora tudo ia
ser diferente. Respondo a uma sms da Sara: "Estou mais ou menos. Acho que
rebentei.".
Os 5.5km
que se seguem são a imagem de marca do MIUT, e isso diz tudo. De uma beleza
abismal, uma coisa indescritível, mas igualmente duros. Um constante escalar de
degraus de todos os tamanhos e feitios, sempre na crista dos picos que separam
o Ruivo do Arieiro. Este ano o céu estava limpo, o que tornava tudo ainda mais
impressionante. Estamos perto dos 1800m e conseguimos ver lá em baixo o mar.
Monstros erguem-se a pique a toda a nossa volta, passamos por tuneis longos,
escuros e húmidos para atravessar montanhas, escadas a descer que metem
realmente medo e subidas exasperantes. O sol cada vez mais forte tornava tudo
mais difícil, comi dois geis e mais uma vez quase que vomito, deposito a
esperança no abastecimento do Arieiro, mas até lá ainda tinha que penar. Deixei
de meter conversa com os companheiros e o sorriso há muito que tinha
desparecido, estou sinceramente assustado com o que ainda tinha pela frente. Se
nunca tinha parado até ao km 70, neste espaço parei mais 5 ou 6 vezes. O suor
escorria incessantemente, os braços e pescoço estavam escaldados do sol, o
oxigénio não era suficiente para satisfazer. Precisava tanto que a Sara e os
miúdos estivessem no fim da subida à minha espera como no ano passado…. Mas
não, estava por minha conta e assim me arrastei até ao pico.
O meu
receio tinha-se concretizado, estava no Arieiro e tinha rebentado. Faltavam
agora 40km. Sabia de cor o que ia apanhar. Se nalguns aspectos é uma vantagem
saber ao que se vai, neste é uma grande desvantagem.
O
abastecimento estava quente e húmido, todos se queixavam do calor e muita gente
tinha rebentado nesta secção, como eu. Estou completamente enjoado mas tenho fome,
tenho plena consciência que preciso de comer. Olho para as dezenas de opções e
decido-me por uns quadrados de bolo húmido, talvez desse. Mas não. Demoro 5
minutos a comer uma dentada, tudo empapa na boca. Peço uma taça de canja e
forço-me a sorver o caldo salgado, pelo menos isso.
Quando
saio do abastecimento o meu estado de espirito era completamente oposto daquele
com que saí do Curral. Estava pouco confiante, com medo e sem vontade. Sabia
que esta descida não ia ser fácil, que tinha partes muito técnicas, que tinha
paredes para subir, que era interminável! A parte boa é que este ano o tempo
estava muito melhor e dava para apreciar a paisagem que era bastante distinta
da parte norte da ilha. Estes trilhos ali são magníficos, tenho muita pena de
ainda não ter sido este ano que lá passei com pernas para os aproveitar.
Acabámos com cerca de 2km de zigue zague num bosque muito parecido com o que se
vê na Serra da Lousã, já perto de Ribeiro Frio, onde estava um abastecimento de
líquidos. Corri esta descida toda com o desconforto de uma pedrinha na ponta da
sapatilha, raios parta. Depois tiro-a lá em cima no Poiso…
Quando
chego à base da descida, no Ribeiro Frio, estou bastante desmoralizado para a
subida que se segue, até ao Poiso. Sei que é das mais fáceis da prova, com
500d+, mas simplesmente não me apetecia fazê-la. Não me sentia com a
"fome" de acabar que tinha o ano passado. Nessa altura até podia ter
rebentado na primeira subida que ia arrastar-me até ao fim, agora só de pensar
nos km que faltavam só me apetecia voltar ao colchão do Marriot… Mais uma vez o
meu lado piegas veio ao de cima e envio uma sms à Sara a dizer que não seria
fácil terminar.
À saída
do abastecimento visto o casaco e como mais um gel. Outro sacrifício, mas
precisava do boost. Esta subida é realmente fácil. Quase sempre em estradão ou
calçada e pouco inclinada. Aplico a minha estratégia do costume, mas desta vez
começo ainda mais devagar, pareço um entrevado. Passam uns 4 ou 5 companheiros
por mim, mas nem olho para a frente. A porcaria da pedra na sapatilha vai a
chatear-me, devia tê-la tirado lá atrás… A parte mais difícil da subida já passou
e entramos num pequeno planalto. Os passos muito curtos e entrevados deram
lugar a uma passada mais segura. Passo pelo sitio onde o ano passado liguei o
frontal, desta vez ainda tinha uma boa hora e meia de luz pela frente. Fiquei
animado e aumentei a passada. A parte final no meio da floresta é feita já a
bom ritmo e sem dar por ela estava no Poiso! Olha…tu queres ver…
Yep, mesma foto do ano passado. Básico básico... |
A descida
que se segue é a mais fácil de toda a prova, apesar de longa. Começa com um
trilho não muito técnico, depois uns km de estradão e finalmente levadas que
nos embalam os 8.5km que separam o Poiso da Portela. Ainda bem que cheguei ali
de dia, a paisagem como sempre é deslumbrante. As pernas, essas, parece que
ganharam nova vida! Percorro tudo a correr, até nas subidas! Só a porra da
pedrinha é que lá anda, cada vez mais irritante. Devia ter descalçado a meia
também. Bem, não interessa, já só pensava que o abastecimento podia estar mais
longe, para evitar parar, aproveitar o balanço e papar quilómetros. Passo
algumas pessoas na descida que me tinham passado na subida, o ânimo voltou em
força!
Chego à
Portela já quase de noite e a coxear ligeiramente por causa da porcaria da
pedra. Sento-me e imediatamente descalço-me para resolver o assunto, mas já não
sai nada. Na meia, está na meia! Descalço-a também e vejo finalmente que a
"pedra" afinal era uma bolha gigante, já vermelha, que rodeava por
completo o dedo grande, até a parte de cima! Aaaaah bom, compreendido então! Enfim,
siga, faltam 17km!
Passei
uns bons 10 minutos no abastecimento muito quente. Saio já de noite, está bastante
frio e demoro a aquecer. Quando finalmente aqueço estou a correr novamente,
desta vez apenas +/- confortável, mas já era bastante bom. 5km separavam-me do
abastecimento do Larano e eu lembrava-me bem deste segmento. Primeiro um
estradão, depois uns bons 3km em trilho agradável e finalmente uma descida terrível,
a pique, até ao abastecimento. Epah e metam terrível nisso! Acho que o ano
passado já estava tão anestesiado que nem dei por ela, mas esta descida é uma
brutalidade, principalmente para quem já vem com mais de 100km nas pernas.
Tanta asneira que eu disse! Quando finalmente chego ao Larano estou derreado.
Sento-me numas escadas e meto conversa com quem lá estava, já não consigo comer
nada outra vez e os pés estão a matar-me, correr em piso enlameado é muito duro
para os pés.
Faltava
apenas uma nova secção, a vereda do Larano, e depois a levada até Machico.
Tinha muita curiosidade nesta vereda, mas já sabia que ia passar de noite e o
impacto seria muito menor. Foi mesmo. Seriam 4 ou 5km abismais, numa falésia
com o mar do lado esquerdo e um trilho muito estreito ligeiramente a subir e
sempre com piso bom para correr. Mas de noite perdia o encanto, com exceção dum
km que estava completamente iluminado por lâmpadas amarelas presas à falésia,
muito bonito. Eu é que já estava com muito pouca paciência para bonitices e
insultei alto e bom som os membros da organização, o governo da Madeira e provavelmente
até o Obama! Porcaria da vereda que nunca mais acabava! Sobe e desce e sobe e
desce e sobe….eish!!! Filhos da mãe do Clube de Montanha do Funchal que não se
esforçaram minimamente para tentar meter ali uma passadeirazinha rolante! Com
cadeiras! Não, uma passadeira rolante toda forrada com colchões do Marriot! É
isso! Hmpf…
Ia eu
irritado e a pensar nas injustiças desta vida quando olhei para o relógio, 23:20.
Faltavam pouco mais que 5km para a meta. Elah! Isto afinal é capaz de dar para
chegar antes das 24 horas!! Vá de correr, rápido rápido!
Despedi-me
dos companheiros que iam na conversa comigo na altura e arranquei. Tumba,
tumba, tumba… Corri, corri, corri.. Passei por gente, corri a subir e a descer
enquanto olhava para o relógio. Machico lá em baixo, corri mais e forcei!
Encontro um pequeno comboio e agradeço por se terem desviado, digo-lhes que vou
tentar chegar antes da meia noite. Ao que um responde muito enfastiado "oh
amigo, faltam 10 minutos, só se fores a voar…". Olho rapidamente para o
meu relógio, 23:35. Então mas….. AAAAAH! No Poiso antes de ligar o relógio ao
power bank ele desligou-se uns minutos!! RAIOS PARTA O MIUT E A MADEIRA E O
OBAMA!!!!!
Bem, que
se lixe o sub24, fica pro ano! Acalmei-me e encarei os 3km restantes com a
sobriedade que mereciam. Não são fáceis, não há nada fácil no MIUT. Já dentro
de Machico ainda temos uma descida bem lixada só porque os pés ainda não
estavam derretidos o suficiente.
Faltam
apenas 500 metros para o fim. Mais uma vez chegaria de alma preenchida. Desta
vez festejo o feito. Não pelas 2h30 a menos que o ano passado, mas por ter
sentido realmente que estava preparado para ela.
Finalmente,
a 100 metros da meta, a ponte pedonal. A mesma onde o ano passado a Sara e a
Mel me esperavam e as abracei. Desta vez não estavam lá, mas vieram na mesma
comigo. Elas e o Manel, que nasceu entretanto. Sempre comigo, desde Porto
Moniz. Atrás delas vinham todos os meus amigos que enviaram mensagem de ânimo,
que me deram força, que me acompanharam no treino e na vida. O grupo da
Parreira, companheiros de viagem que se tornaram família. O Vasco, que apesar
de ter chegado hora e meia antes também cruzou a meta comigo. Todos, e foram
muitos, os que meteram conversa por causa do relato do ano passado. Os que me
inspiram, os que me dão força, os que me apoiam. Todos passaram as ultimas 24
horas comigo, e agora era altura de receber a recompensa: a meta. A vocês
todos, obrigado, do fundo do coração. Espero que tenham gostado tanto da viagem
como eu.