Arranquei sozinho de Côja às 7, depois do pequeno almoço na vila. Segui as placas para o Piodão, que me encaminhavam para o nascer do sol por trás da montanha. A estrada vazia e sinuosa levava-me cada vez mais alto num zigue-zague arriscado perto de uma ravina perigosa. Levantei o volume do radio quando reconheci a pancada seca e metálica no inicio do single novo do Samuel Úria, e agradeci à Antena 3 pela banda sonora perfeita. Olho à volta para os picos e tento imaginar quais irei visitar, apesar de saber a resposta: todos. Quando viro a montanha e começo a descida para o vale, vejo Piodão lá em baixo enfiado numa garganta impressionante de encostas inclinadíssimas. Entra o baixo na musica e levanto o som ainda mais! Apetece-me parar já ali o carro e desa tar a correr, o cenário é incrível, com a Serra da Estrela a espreitar e as casas de Piodão entaladas na montanha! Se já estava com pica para esta prova, este curto trajecto de carro atestou os depósitos! Portugal tem sítios lindos, apesar de às vezes nos esquecermos, e ontem foi dia de conhecer um dos mais incríveis que já vi - a Serra do Açor.
O Piodão é pequeno para tanta gente, nota-se bem. Os carros estacionados ao longo da estrada parecem autênticos corpos estranhos naquele cenário de postal. As inscrições para esta corrida são compreensivelmente muito limitadas, por isso foram uns privilegiados 300 atletas que às 9 da manhã partiram para os 50km do Ultra Trail do Piodão.
Piodão |
A meta estava montada no Inatel do Piodão, um pouco acima da vila postal. Engraço como 6 horas podem relativizar tanto este "um pouco acima", mas logo já falamos mais sobre isso!
Foto da net, com o Inatel em 1º plano. |
A partida, dada com uns minutos de atraso, começou logo a descer até ao Piodão. Rapidamente a elite, presente em grande número nesta prova do circuito nacional de ultra trail, disparou, assim como os habituais nervosos do tiro de partida. esticando o pelotão e colocando-me na segunda metade deste. Sabia que teria cerca de 5km a descer até à base da primeira e mais longa subida da prova, por isso deixei-me ir muito tranquilamente a aproveitar os espectaculares trilhos que percorríamos na parte de baixo da encosta da montanha. Adoro aquele tipo de trilhos! Daqueles que parece que fazem parte da montanha, e não artificialmente inventados só para nossa diversão. Sem darmos por isso estávamos na base da primeira grande subida, 6km com 600d+.
Esta foi feita num estradão que zigue-zagueava pela encosta, aumentando a distancia e diminuindo muito a inclinação. Apesar de muito longa foi uma subida relativamente fácil, já que o piso era muito certinho o que permitia colocar uma passada constante. A temperatura ia diminuindo muito à medida que subíamos, mas a camisola térmica juntamente com o impermeável e a tshirt do clube eram mais que suficientes para manter a temperatura no tronco. O topo chegou aos 10km e 1250m de altitude, literalmente virámos a montanha para o outro lado e demos de caras com uma das paisagens mais incríveis que já vi. No topo do Açor, com a Serra da Estrela nevada atrás de nós, dois vales profundos de cada lado, montanhas recortadas por eólicas, elas próprias também parte da paisagem e tudo envolto ainda naquela neblina leve do inicio do dia que se levantava do chão.
Sacada da net (sim, mais uma vez não tirei um única foto) |
Iniciámos a descida até Malhada da Chã por um trilho na encosta, bastante técnico mas não muito inclinado. Desafiante e super divertida de correr, uma descida deliciosa que nos levou até a mais uma aldeia do xisto, nas costas do Piodão, onde estava situado o 2º abastecimento aos 15km. Malhada da Chã é outra daquelas aldeias que nem que fossem desenhadas no AutoCad seriam tão perfeitas. Há a montanha, há o vale, há o ribeiro de águas límpidas, a ponte de pedra e as escadas de xisto. Perfeita, até irrita! O abastecimento era o típico banquete d'O Mundo da Corrida. Decidi levar à risca um plano de alimentação nesta prova, para futuramente utilizar no MIUT e UTMB, por isso quando lá cheguei já levava um gel e uma barra no bucho (a ideia era nunca passar mais que uma hora sem comer nada). Comi duas metade de banana, uns copos de isotónico e siga subir, segue-se o ataque ao ponto mais alto do Açor!
Claro que a Malhada da Chã também tinha que ter uma levada... |
Esta segunda subida, também ela muito longa (cerca de 550+ em 4km) começou com uma primeira secção bastante difícil, mas mais uma vez desembocou no estradão das eólicas, que nos embalou serra acima até aos 1400m. O caminho certinho permitia ir constantemente perdido da paisagem, o que tirava dificuldade à subida. Sentia-me muito bem e solto, apetecia-me correr e ir ao limite, mas depois lembrava-me da famosa subida da Fornea, a terceira da prova, e deixava-me ir no meu ritmo tranquilo. A escalada foi feita com relativa facilidade, mas as pernas lá em cima já pediam descanso e o desejo foi concretizado. A descida começou com cerca de 2km de estradão que permitiu esticar as pernas e até me deixei entusiasmar um bocado, com um destes km percorrido em 4.08 minutos! Entrámos depois num troço bastante mais inclinado, o que massacrou muito os quadricepes, e finalmente num trilho que nos levou até Covanca, local do 3º abastecimento, aos 25km.
Covanca |
Covanca era bonita, na encosta e com o xisto e tal e tal, mas o que interessa mesmo aqui é a deliciosa sopa de legumes que lá comi! Ui ca boa! Peguei na tigela e pus-me a caminho enquanto sorvia. Nesta altura, a meio da percurso, sentia-me a 100% e super entusiasmado com a minha prova, nem sequer pus a hipótese de me sentar no abastecimento.
O caminho até à Fórnea, 30km e base da grande subida do Piodão, foi em ligeiro sobe e desce ora em estradão ora em trilhos espectaculares. Feito praticamente sempre a correr, sem grande esforço, fui percorrendo o caminho e conversando com companheiros. Em todas as conversas, havia um ponto em comum: o Ultra do Piodão começa aos 30km.
Ok, vem aí uma subidona, mas primeiro vamos ao banquete! O abastecimento da Fórnea é uma instituição, acho que já tinha ouvido falar mais dele do que a subida a seguir. Comi meia bifana e três fatias de presunto, mas havia muito, muito mais para comer. Ah, e para beber! Inclusivamente uma garrafa do meu vinho preferido, o Foral de Évora ehehe A partir de agora não fico contente com nada menos que uma Cartuxa Reserva nos abastecimentos!
Afinal ainda tirei uma foto. Prioridades! :) |
De saída do abastecimento, com a barriga cheia, o ataque à subida começou com uns leves 2km por trilhos, até chegarmos à base do monstro. O prato consistia em 2km com 400+ e em todos os relatos dos outros anos era unânime que era a mais difícil da corrida. Confesso: estava deserto por a encontrar! Esta prova era muito importante para mim porque já não corria nenhuma desde Novembro, por outro lado mudei a maneira de treinar e ansiava por saber se estava no bom caminho. Para trás já tinham ficado muitas e longas subidas, mas precisava de "sobreviver" a esta. Era este o derradeiro teste.
Foto do ano passado da subida. |
Ataquei-a exactamente como vou atacar as primeiras subidas no MIUT, com os chamados baby steps. Passada muita curta, constante e segura. O trilho era inconstante e com muita pedra, daquelas subidas que dão trabalho. A progressão era difícil, mas quase sem dar por isso comecei a apanhar companheiros. Segui concentrado, não me entusiasmei, mas também não dei folga. Baby steps. Curto, constante e seguro. De repente a inclinação diminuiu, olhei para cima e as eólicas estavam já ali! Alarguei a passada, subia com um sorriso nos lábios com um passo forte, corri na ponta final e 20 minutos depois...estava lá em cima! Missão cumprida! Acho que ainda soltei um VAMOS antes de começar a descer o estradão :)
Seguia-se a subida ao Colcurinho. Lá de cima da subida tivemos novamente a panorâmica a 360º do Açor, e dava para ver lá bem longe o pico onde iríamos de seguida. Foram 8km lindíssimos no cume da montanha, sempre acima dos 1000m, com subidas e descidas curtas, muitos trilhos excelentes para correr, uma delicia!
Colcurinho, mesmo a pedir para ser subido. |
Seguia nesta altura ultra confiante, corria em todo o lado e sentia-me muito solto. Achei que a coisa estava feita e que chegar ao Piodão já era só um pro forma. No entanto, ainda tive tempo de ser posto no lugar pela Serra, como não podia deixar de ser...
O ataque final ao pico foi muito mais difícil do que julgava, e pela primeira vez na prova vacilei bastante. Era só 1km com 200+, nada de especial comparado com o que já tinha ficado para trás, mas talvez por achar que a coisa estava feita levei uma grande chapada! Lá em cima havia um abastecimento e desta vez sentei-me mesmo. Ofereceram-me sopa, mas tinha acabado de comer uma barra, por isso fiquei-me pelo isotonico. Deixei o estômago assentar e ataquei a longa descida de 7km que se seguia!
Lá atrás, o estradão por onde subimos |
Por muitas vezes já disse que as descidas podem ser tão ou mais massacrantes que as subidas, e esta começou bruta. Muita inclinação, muita pedra e os bastões a trabalhar. Foram uns primeiros 2km com as pernas em brasa, até entrarmos no estradão que nos levaria até Foz d'Égua. Podia descrever-vos este estradão, mas fiquem antes com uma imagem do track :)
A descida dos ésses |
Curva, contra-curva, curva, contra-curva, curva... 3km neste zigue-zague interminável! Boa inclinação e bom piso para correr. O corpo habituou-se e estabilizei o ritmo e o esforço, corria a bom ritmo e bastante confortável. Esta é uma característica muito vincada do Piodão, é verdade que é provavelmente das provas com mais desnível por km em Portugal continental, mas quase sempre a seguir a uma subida dura há uma boa descida para recuperar. Se estiverem bem preparados para suportar as subidas é uma prova que se faz bem. Claro que depende muito da intensidade com que encaramos a prova, mas eu gostei particularmente deste característica da corrida.
Acabado o zigue-zague entrámos por um trilho espectacular que nos levaria até Foz d'Égua, e aqui apareceu finalmente o grande problema que tive na prova: as câimbras. É muito, muito raro ter câimbras, mas naquela altura já estava bastante calor e transpirei muito. Não bebi muito isotonico nem fui preparado com eletrólitos, por isso era um bomba prestes a rebentar. Quando tive que fazer passadas mais inconstante neste trilho começaram a saltar os músculos por trás da coxa. Meti de imediato dois géis e corri como pude até ao abastecimento na aldeia.
Chegada a Foz d'Égua, aquele sitio onde filmaram o Shire, a terra dos Hobbits, no Senhor dos Anéis, sabem?
Porra Açor, isto também já é a gozar com a malta...
No abastecimento comi batatas fritas, frutos secos, sal e isotonico. Faltavam apenas 3km de subida até chegarmos ao Inatel, mas precisava de sair dali recomposto para encarar o que faltava.
Mais uma vez no fundo do vale, seguimos por um trilho na encosta muito bonito, com o ribeiro lá em baixo, sempre ligeiramente a subir. Não seguia com a mesma ligeireza de há duas horas atrás, mas ainda me sentia bem e corria sempre que dava para isso. Desde a Foz d'Égua que se via o Piodão lá ao fundo, não tardou muito até estar novamente nas ruas de xisto da aldeia.
Dentro do Piodão. É no inicio da corrida, mas a rua é a mesma por isso ainda conta! :) |
A meta não chegou sem antes apanharmos com o miminho de subir as escadas do Inatel. Obrigado OMDC, foi giro....a sério...foi giro :\
Cruzei a meta com 6h47. Antes da partida tinha para mim que qualquer coisa abaixo das 8h30 seria bom e tinha a esperança de conseguir baixar das 8 horas. Escusado será dizer que fiquei muito, muito contente com a minha prova e, modéstia à parte, acho que foi a melhor ultra que já fiz! Senti-me sempre bem, nunca quebrei e acabei ainda com bastante energia. Depois do calvário de 3 meses após Arga precisava disto para recuperar a confiança e foi a prova que estou a treinar bem. Fiquei ainda convencido com a estratégia de alimentação e de abordagem à prova, depois de me deixar ficar para trás na partida, nunca mais fui ultrapassado até ao final da corrida. Claro que isto tudo em termos de classificação não vale nada, mas para mim soube-me a vitória! Ou melhor, meia vitória, custou-me não ter a minha comitiva habitual à espera na meta e nem consegui saborear bem o feito. Como sempre, a matriarca ficou em casa a segurar as pontas enquanto eu me divertia no monte!
Quanto à prova, basta dizer que entrou directamente para o meu top 3, a fazer companhia ao MIUT e Serra d'Arga. Montanha a sério, subidas e descidas longas, trilhos "verdadeiros", difíceis e divertidos, paisagens de cortar a respiração, abastecimentos em número e quantidade perfeitos e um local de meta inigualável. Foi a minha primeira vez no Piodão mas certamente não será a ultima, caso consiga ser um dos poucos privilegiados a conseguir passagem!
Fui para o carro, vesti-me, pus uma roupa quente que estava frio, preparei-me para a viagem de 250km até Almeirim e liguei o motor. Na rádio estava a tocar novamente o Samuel... Perfeito :)
Parabéns :) Estás fortíssimo ;)
ResponderEliminarComo é apanágio deste blogue, e do seu autor, mais uma vez um extraordinário texto que nos faz viver a prova como se estivesse-mos “lá dentro”.
ResponderEliminarUma excelente prestação da tua parte a provar que o treino tem sido bem proveitosos e que estás a ficar em grande forma.
Para mim ler ou falar do Piodão emocionam-me sempre imenso!
Foi a 5 de Maio de 1996 que teve lugar a primeira edição do Cross da Serra do Açor, uma prova mítica para a época que marcou todos os nela participaram e marcou, igualmente, as provas de montanha / trail que nessa altura davam os primeiros passos em Portugal.
Pedindo desculpe pela publicidade deixo a sugestão para que quem não conheça a historia do Cross da Serra do Açor que abra o link que vou deixar aqui em baixo.
Está é a história dos tempos em que alguns “malucos” corriam em locais “impróprios” para a prática de tal actividade e com equipamentos que ficavam a anos-luz das tecnologias actuais.
Um abraço.
http://ultkm.blogspot.pt/2013/06/cross-da-serra-do-acor-memorias-da.html
Nota: vou dar destaque nos APLAUSOS PARA a este teu excelente texto!
Sabia que ias adorar!!! Essa prova é simplesmente LINDA! Quando o pequenote for maior merece uma visita em família! :) E Foz D'égua? Mágico... ainda mais mágico quando sabemos que foi sonho tornado realidade de dois irmãos, naturais do Barreiro!
ResponderEliminarÉ fantástico!!! E o tempo que fizeste? Bem nem vou falar disso ahahahhaah :D
Parabéns, Filipe! Grande resultado.
ResponderEliminarPela descrição, o percurso foi idêntico, ou muito semelhante, ao ano passado. Foi uma das minhas provas favoritas de 2015 (por curiosidade, acho que na altura me inscrevi faltavam 3 semanas e ainda não estava esgotado... A procura aumentou bastante ou as vagas diminuíram!)
Continuação de boa preparação!