Partimos de Évora já bem depois das 19:30. Até essa hora o dia tinha sido perfeitamente comum. Acordar à hora do costume, trabalho, as nossas mulheres, os nossos filhos... Tudo no seu devido sítio, era um dia igual aos outros. Mas às 19:30 íamos embarcar numa aventura que...bem, não há outra maneira de dizer: tinha tudo para correr mal!
Fomos só ali |
Foi há umas 2 ou 3 semanas que o Sommer (o Sr. Ribeiro) me enviou uma mensagem no chat do facebook +/- assim: sair do trabalho, conduzir até à Serra Nevada, partir com directa, treinar e voltar. Assim mesmo à mau! Bora?
Pois com certeza!
Ora, as conversas sobre a viagem basicamente ficaram por aqui. Combinámos a hora de partida e o destino. Lá chegados, a única referencia eram 3 tracks sacados da net, um percurso desenhado na cabeça e a sincera esperança que no local as peças encaixassem todas e aquilo corresse tudo muito bem! O que é que podia correr mal?
Depois de um inesperado e espectacular jantar numa esplanada em Elvas, lá chegámos às 5 da manhã a Pradollano, Serra Nevada, uma estância de ski muito famosa. Com o carro estacionado num parque subterrâneo, recolhemos aos aposentos para um sono descansado e retemperador.
Pronto, na verdade os aposentos eram o parque de estacionamento.
Vá, e não foi bem recolher, deitámos os bancos do carro.
Ok, não foi bem descansado e retemperador, estávamos todos um bocado tortos... Mas, hey, acordei quase uma hora depois com a perna a doer-me e completamente adormecida, por isso pelo menos essa descansou bem!
Diogo, eu e Sommer. Sim, foi o Sommer que tirou a selfie. Que fique registado. |
Saímos pela rampa do estacionamento e de repente estávamos no track. Ainda estava meio embasbacado a tentar decidir se os 2200m de altitude que o relógio indicava estariam certos, quando os vejo a atacar a subida. Respirei fundo, liguei o cronómetro e dei um passo em frente. O primeiro record pessoal do dia estava batido: nunca tinha corrido a uma altitude tão elevada. Mal sabia eu o que me esperava.
A primeira subida era o ataque ao Pico Veleta, o segundo mais alto da Sierra Nevada e 3º da Peninsula Ibérica com 3390m de altitude. Na base da pista de ski, onde nos encontrávamos, já conseguíamos ver lá em cima o imponente rochedo. Separavam-nos dele 6km com 1200D+.
Vista do Veleta desde Pradolano. |
Seguimos até lá acima sempre pelas pistas de ski. O Diogo já lá tinha ido várias vezes esquiar e ia falando do que nos rodeava, mas eu estava a ter um sério problema em concentrar-me porque não conseguia parar de olhar para todo o lado, o que não dava muito jeito já que cada vez que me virava para trás lá vinha mais uma tontura por causa da altitude. A certa altura o track que seguia indicava dois caminhos para o pico, laterais ao vale, por uns estradões simpáticos. Por onde é que fomos? Pelo meio, pois claro. Apontámos alvo ao Veleta e seguimos pelo caminho mais curto. Dávamos dois passos em frente e um atrás? Siga! Não podia correr mal, pois não?
A azul: Track que levava comigo. A amarelo: caminho mêmámau. |
No topo do Veleta. |
Lá chegados acima pudemos ver o nosso próximo destino: Mulhacen. O pico mais alto da Península Ibérica, só superado na Europa pelos Alpes e o Cáucaso. Se a paisagem que deixávamos para trás era deslumbrante, esta vertente da montanha, depois de virar o Veleta, era algo quase extraterrestre. Muito inóspito, árido, pontuado com neve aqui e ali. Uma paisagem quase lunar.
Vista do Veleta. Lá ao fundo o Mulhacen. |
Cerca de 7km separavam-nos do próximo pico, e esta era das partes mais interessantes do percurso. Acontece que não eram "apenas" 7km, mas sim 7km sempre acima dos 3000m de altitude. Um dos maiores desafios era conseguir correr neste planalto e perceber como o nosso corpo reagia à altitude. Para quem nunca tinha passado dos 1990m de altitude da Torre, tinha tudo para correr mal!
Fixámos o pico como destino, mais uma vez evitámos os estradões do track e seguimos quase sempre por trilhos que existiam em todo o lado. A certa altura um trilho levou-nos a uma escarpa muito pronunciada. Na parede estavam presas umas correntes e havia um pequeno patamar de 20 ou 30cm para se fazer uma passagem de 100 metros. É claro que não fomos por lá. Nenhum pai de família que se preze passaria numa via ferrata a 3000m de altitude com um precipício de 500m para trás. Ouviram Sara, Joana e Inês? Isso teria tudo para correr mal, juro que não passámos por lá. E eu não fiquei todo borradinho e com as pernas a tremer. A sério, voltámos para trás!
Também não sei quem tirou a foto. |
Já muito perto do Mulhacen o trilho levou-nos a uma cratera que quase parecia de um vulcão, com um lago lá em baixo. A encosta, ou parede, do pico, coberta de xisto refletia o sol dando-lhe um aspecto surreal. Tirando a primeira vez no MIUT, no caminho entre os picos, nunca tinha ficado tão assombrado com uma paisagem.
Lá ao fundo a parede de 400m que teriamos que escalar antes do pico. Ainda iríamos descer 100m antes de o atacar. |
Este ataque final ao Mulhacen é o meu ideal de subida. Muito inclinado, sempre com uns ésses apertados, constante e longa. Os efeitos nefastos da altitude já não se faziam sentir desde o Veleta e aproveitei esta subida muito bem. No entanto, reparei que à mínima variação de ritmo as pulsações disparavam, a respiração ficava mais ofegante e sentia ligeiras tonturas. O truque era subir perfeitamente constante e foi assim que o fizemos.
Parte final da subida. Havia muita gente a fazer caminhadas na Serra. |
Cheguei lá acima num estado quase de euforia. Que subida perfeita! Já para não falar do tempo, que apesar de muito sol, àquela altitude soprava um vento fresco que nunca deixava a máquina aquecer de mais. Lá em cima havia um pequeno palanque em betão e ao lado um rochedo. Eu armei-me em esperto e subi ao rochedo. Foi giro, descobri uma coisa nova: tenho vertigens! É indescritível a vista lá em cima. O pico tem uma proeminência brutal, o que quer dizer que a vista é desafogada em quilómetros e quilómetros.
No Mulhacen, antes de ficar quase em pânico com as vertigens! |
Fotografia da praxe. Uma já estava! |
Na fase seguinte tínhamos planeado descer até aos 2500m, onde existia um refúgio de montanha. Para isso tínhamos um segundo track e a vã esperança que as coisas magicamente se interligassem na perfeição. De certeza que ia correr tudo bem! Assim que ligo o track aquilo não batia certo. Hm.. caga no track, vamos perguntar ao espanhois. É para ali! Diziam eles. Onde? Naquele vale? Si si! Bem, não há-de ser nada, sabemos que é mais ou menos para aquele lado, é ir andando! O que é que podia correr mal?
A descida dos 3500 aos 2500 foi das minhas partes preferidas do treino todo. Primeiro num single cheio de pedra, sempre aos ésses mesmo como eu gosto e depois quando já só tínhamos estradão à vista (relembro que não sabíamos bem para onde íamos) decidimos mandar-nos de cabeça pela encosta, sem trilho nem nada, cada um inventava a sua trajectória, o importante era chegar à base do vale e esperar que o refúgio estivesse mesmo lá! Uma loucura, acho que foi das vezes que me diverti mais a correr de sempre!
Na base da encosta, conseguem vê-los lá atrás. Foi por aqui abaixo mêmámau! |
Incrivelmente, numa estratégia que tinha tudo para correr mal, demos logo com o refúgio! Uma casa isolada na imensidão da montanha, com tudo o que era preciso para dar assistência aos montanhistas que por lá passavam. Decidimos descansar um pouco antes de atacar um novo quilómetro vertical que nos levaria de volta ao Mulhacen.
No refúgio. Acho que tirei mais selfies neste treino que no resto da minha vida. |
Uma hora e tal depois (quem é que estava a contar?), estratégia afinada, fomos para a parte final do treino. Era simples, subir ao Mulhacen outra vez e depois ir para casa. O que é que isso implicava? Nada de especial, só um quilómetro vertical com 4km de extensão, dos 2500 aos 3500m de altitude!
Porra, já disse isto em voz alta 200 vezes e continua a soar MESMO à mau!
A subida seguia o rio Mulhacen, que no verão não era mais que um pequeno ribeiro, mas o suficiente para fazer crescer erva à volta e cortar um bocado a paisagem inóspita de toda a Serra. Uma espécie de oásis com água gelada. Seguimos junto ao ribeiro durante metade do KV, sempre muito frescos, num trilho espectacular. Era tão ridiculamente bonito que lembro-me de dezenas de borboletas azuis voarem cada vez que pisávamos a erva verde fofa. A sério natureza? Vá, não exageres.
Ridículo. |
A parte final desembocou na já conhecida vertente do Mulhacen, para uns salutares zigue-zagues 400m por ali acima. Que subida! Demorámos 1h36 a cumprir o KV, o que, modéstia à parte, foi mêmámau! Estávamos de volta aos 3480m de altitude e tínhamos virado o pico mais alto da Península Ibérica duas vezes no mesmo dia. Se há momentos que pedem uma foto, não me vão dizer que este não é um deles,
O papel foi um espanhol que emprestou. |
Conseguem ver na encosta os dois trilhos que a sobem. Primeiro fomos pelo da esquerda e depois pelo que sobe a direito. |
Dobrado o Mulhacen pela segunda vez, estávamos com cerca de 27km e 3000D+, cumpridos todos acima dos 2500m de altitude, com excepção dos 2 primeiros quilómetros. Mais uma vez, vou só ali arrumar a modéstia um bocadinho, mas estava a ser um treino do caraças! O melhor de tudo é que estávamos os 3 bastante frescos quando atacámos a descida pelo trilho em zigue-zague. Faltavam só 13km para estarmos de volta ao carro, por um caminho que já conhecíamos, o treino estava feito!
O problema foi exactamente esse: para nós, o treino estava feito. Mas faltavam ainda uns bons quilómetros incluindo os 1200D- em 6km que subimos logo ao inicio. O pior de tudo neste descida, além de ser super longa, é que do ponto mais alto conseguimos ver o nosso destino. Enfim, não havia volta a dar, era altura de meter a faca nos dentes, cerrar os punhos e comer pedra até lá abaixo. Já lá estávamos, agora era só fechar aquilo!
Foram 41km e 3300D+ no total. Um treino que tinha tudo para correr mal: partimos praticamente de directa, não tínhamos percurso definido, não conhecíamos pontos de água, não estávamos habituados à altitude...Tudo, tudo para correr mal. Mas não correu nada mal. Não, foi perfeito!
Agora vou aproveitar que pela primeira vez tirei um monte de fotos e meter um bocadinho de nojo, se não se importam. Aqui vai.
Dezenas de cabras nos pontos mais altos |