As minhas corridas na estrada

domingo, 21 de outubro de 2018

Trail Abrantes 100

O Trail de Abrantes é trail, mas não é trail. O Trail de Abrantes tem 2400D+ mas não tem subidas. O Trail de Abrantes tem muitos estradões, não é sky nem técnico nem de "dureza extrema", ou lá como se diz. O Trail de Abrantes não é nada disso e mesmo assim saí do Trail de Abrantes amassado como há muito não ficava e, melhor de tudo, completamente nas nuvens! Acompanhem-me nesta viagem de 13 horas pelos estradões do Ribatejo.

Primeira de muitas fotos nesta publicação da autoria do grande MIGUEL CADALSO! Que alegria é participar nas mesmas provas do Miguel :)
Não estava nos meus planos ir a Abrantes este ano. Queria fechar o campeonato Endurance com os 100km do EstrelAçor, mas umas dores chatas numa perna não me deixaram preparar bem para a Estrela e, com a substituição do UTAX pelo Abrantes 100, pareceu-me uma boa opção. 

Quem me vai lendo por aqui sabe que este não é de todo o tipo de percurso que costumo procurar, mas na verdade há muito que este tipo de desafio me aliciava, principalmente depois de ler os relatos do Perneta sobre os Caminhos do Tejo ou do Rui Pinho, sobre a PT281. Sabia à partida que seria diferente de todas as provas de 3 dígitos que já fiz, outras preocupações, estratégia ou variáveis. Sabia que é uma prova muito "rolante", que iria permitir correr do inicio ao fim (eu sei que há quem faça as outras também sempre a correr, mas eu não consigo). É uma prova sem subidas ou descidas, sem caminhos técnicos, altitude ou condições meteorológicas extremas. Basicamente a única preocupação é a progressão o mais rápido possível por uns longuíssimos 100km e o natural impacto tremendo que isso tem no corpo.

Os 5 elementos do GDP que correram os 100km, aos quais se juntaram mais uns quantos nas restantes provas.
A partida foi dada à uma da manhã no centro de Abrantes. Uma noite impecável, com o terreno regado há menos de uma hora e temperatura perfeita. Depois de um pequeno périplo pela zona histórica de Abrantes e uma passagem pelo Castelo, que não conhecia, lá descemos a encosta da cidade e atravessámos a ponte para a margem sul do Tejo. Os 200 e poucos participantes lá entraram então num trilho engraçado, que se prolongou por cerca de 2km. Não me apercebi logo da solenidade do momento, mas este foi o único trilho que pisámos em mais de 50km! 

2400+ distribuídos por 100km. Desta vez não me peçam para fazer os riscquinhos vermelhos!
Podem estar a estranhar eu ter dito que a prova não tem subidas quando o desnível positivo é de 2400 metros e estas se podem ver no perfil acima. Mas tenham em conta que a maior amplitude foi de cento e poucos metros. A verdade é que, com algumas excepções, as subidas passavam e nem se davam por elas. Principalmente na primeira metade, até ao Pego, toda ela feita de noite. Foi aqui que começaram as novidades para mim. Uma noite perfeita, estradões muitas vezes de areia molhada, muito macios, e eu a correr a um ritmo perfeitamente confortável. Frequentemente dava por mim a aumentar inconscientemente o ritmo. Foi essa a minha principal preocupação durante os primeiros 52km, correr, mas nunca entrar em esforço, sempre consciente que tudo o que fizesse ali teria repercussões lá para o fim. 

Por falar em novidades, foi uma noite com uma grande estreia para mim! Pela primeira vez na vida tive uma crise grande de diarreia durante uma corrida! Hãn, aposto que estavam desertinhos para saber disto. Que coisa desconfortável! Tive que encostar à boxe 5 vezes, sempre que saía de um abastecimento. Comecei a ficar muito preocupado, primeiro porque nunca me tinha acontecido e não sabia como lidar com aquilo e depois porque tinha consciência que estava a desidratar, mas beber água deixava-me mal disposto. Já desesperado comecei a perguntar envergonhadamente se alguém tinha um Imodium (só me lembrava da publicidade deles: acabe com a diarreia antes que ela acabe consigo), até que finalmente o André Ferreira do Caracol me arranjou! Lá tomei aquilo e, milagre, a coisa foi estabilizando até que finalmente estava impecável! Salvaste-me a prova, André, obrigado!

Não volto a sair de casa sem isto!
A primeira metade da prova tem muito pouco que contar. Acho até que pela primeira vez não me consigo lembrar com exactidão do percurso! Na minha cabeça está tudo misturado, estradão atrás de estradão, mas consigo lembrar-me perfeitamente dos banquetes de casamen...perdão dos abastecimentos. Que. Exagero. Fez-me lembrar os abastecimento do Sicó, em 2015. Só para terem uma ideia, no primeiro, aos 9km, comi 4 croquetes e duas talhadas de melancia. Em todos havia enchidos de toda a espécie, sopa, melancia e sei lá mais o quê. Muito bom ambiente, muita gente a assistir e a dar apoio (os abastecimento eram em vilas) e num deles até havia uma banda de garagem de uns putos a tocarem a Yellow, de Coldplay! Como era uma prova rápida e tinha muitos abastecimentos, nunca demorávamos muito a passar de festa para festa e a verdade é que isso foi muito motivante. 

A prova estava a ser exactamente como eu pensava, uma progressão rápida vila atrás de vila, sempre por estradão, sempre a alternar um trote lento com caminhada quando o terreno inclinava um pouco mais. Cheguei à base de vida (52km), no Pego, com 6h10 de prova, o que dá um ritmo médio de cerca de 7'/km. Mesmo com a paragem em todos os abastecimentos acabei por conseguir fazer os 52km em ritmo de corrida e sentia-me bem, apesar de naturalmente já estar um pouco moído. Comi duas taças de caldo verde, troquei de t-shirt mas deixei as sapatilhas. Estava a estrear uma Saucony que consegui por 50% de desconto, que é a minha característica preferida no calçado, mas os pés estavam em bom estado. Pensei que tinha acertado outra vez (nunca tinha usado Saucony), mas não trocar foi uma opção errada. Acabei por perceber isso umas horas depois. 

Do Pego partia a prova de 50km, em comum com os 50km finais da prova grande. Esta é a foto do Miguel da partida.
Saí muito revigorado da Base de Vida. Demorei-me lá cerca de 15 minutos, o suficiente para o sol clarear um pouco e já não precisar do frontal. Parti cerca de meia hora antes da prova de 50km, o que também me deu ânimo. Tinha alguns amigos nessa prova e ser passado por eles e outros era uma boa distracção. Tinham-me dito que a segunda metade era mais difícil, o que se veio a revelar principalmente nos 25km finais, e a verdade é que a batalha estava prestes a começar.

Logo a seguir à Base de Vida: um trilho! Foto M.C.
Apesar do trilho da fotografia acima, os primeiros 25km desta segunda metade não foram muito diferentes dos outros 52, apesar de termos apanhado um ou outro trilho. O primeiro classificado dos 50km passou por mim aos 60 e poucos km, ia ele com 10km em 40 minutos! Logo a seguir, em 2º, passa o meu amigo Tiago Godinho, do Caracol Apressado. Se não conhecem o blog dele, façam por isso! Além de um atleta brutal escreve que se farta e aposto que esta prova dele vai ser uma boa história. Cumprimentei os dois, dei-lhes um incentivo e eles responderam de volta. Ritual que cumpri com TODOS os que iam passando por mim "força, boa prova, vais bem!!". Alguns respondiam de volta: "força também, coragem!", como o grande Rui Luz. Mas para surpresa minha comecei a reparar que a grande maioria não dizia nada! Confesso que aquilo me deixou um bocado incomodado. É raro estar inscrito na distancia menor e ainda mais que nesses casos as provas se cruzem, como nesta. Aconteceu no Sicó este ano ou na Mitic o ano passado, fiz questão de dar uma palavra a todos os da prova grande que ia ultrapassando. Epah, censurem-me à vontade, chamem-me o que quiserem, não quero saber disso pra nada. Para mim é um questão de respeito. 

De volta à margem Norte do Tejo. Lembro-me de estar a passar nesta ponte e pensar que aquele passeio estreito podia contar como trilho ahah Foto do M.C.
Foi precisamente depois de passarmos nesta ponte, aos 70 e poucos km, que o percurso começou a alterar. Entrámos para um vale apertado por onde passa um afluente do Tejo (desculpem, não consigo perceber como se chama) e andámos mesmo em cerca de 1km de um trilho difícil num sobe e desce pedras num sitio muito bonito, onde não faltaram travessias do rio, cordas ou corrida em levadas. Haveríamos de passar mais uns quilómetros em zonas destas até ao fim, sem dúvida as zonas mais interessantes do percurso.

Grande fotografia, Miguel!

M.C.

M.C.
Com a alteração do tipo de percurso e o acumular dos quilómetros, naturalmente o ritmo também baixou. Os trilhos davam uma motivação extra e sempre que podia metia um trote leve, já não dava para mais. Passei a olhar muito mais vezes para o relógio e os metros custavam a passar, mas a perspectiva de fazer um tempo bastante melhor do que esperava motivava-me. Pela primeira vez numa desta provas levei a informação de ritmo médio no relógio e desde o inicio que andava a fazer contas de cabeça para saber até onde podia ir para cumprir o meu objectivo. 

Nesta altura comecei a ter o acompanhamento da Virgínia, que estava a dar apoio ao marido Luís, nos 50km. Foi bom ter uma cara conhecida em todos os abastecimentos. Esses continuavam a ser um exagero de comida! Até ao fim ainda comi sopa em mais dois abastecimentos, muito bom! 

Com o Luís e uma taça de sopa na mão, num dos abastecimentos
Iniciei a contagem decrescente muito cedo, ainda deviam faltar uns 40km. Comecei a ficar ansioso com o ritmo que já não estava a conseguir manter, tive que dizer a mim mesmo várias vezes para não exagerar, que os momentos maus são apenas isso, momentos. Dali a nada conseguiria voltar a correr. Os metros foram passando e os naturais desconfortos foram crescendo, começando pelos pés. Há muito que os pés não eram um problema para mim, às vezes os 30 ou 40 euros que se gastam a mais numas sapatilhas compensam.... Também o calor começou a apertar o que aumentou ainda mais a urgência de acabar. Estava a entrar num lugar mau com toda esta ansiedade por isso foi uma ajuda enorme quando passei 15 ou 20 minutos da prova a conversar com um companheiro da Trofa (não fixei o teu nome, amigo, desculpa). É muito raro andar com alguém nas provas, mas sempre que o faço fico satisfeito porque realmente ajuda, os quilómetros passam sem darmos por isso e até nos esquecemos das dores. Deixei a companhia dele depois do ultimo abastecimento, a 9km do fim. 

M.C.
Neste último troço já cheirava a meta e, revigorado por mais um banquete que incluiu melancia, sentia-me bem e com força. Fiz os 9km finais praticamente sempre a correr, com os metros a passarem bem depressa no relógio. 

Entrei no estádio da cidade do desporto de Abrantes com 13h18. Muuuuito antes dos 15 horas mínimas que previa, o que deu um ritmo médio de 7'30''/km. A anos luz do que pensava que era capaz, o que me deixou nas nuvens!



Com o grande Hugo Água
Confesso: adorei a prova. Sempre achei que gostaria deste tipo de percurso e ainda fiquei com mais vontade de me meter numa aventura como os Caminhos do Tejo. Não é uma prova de trilhos nem de montanha, mas também não quer ser. É o que é: uma corrida de 100km, praticamente planos, onde lutamos desde o inicio com o nosso limite. A organização foi excelente, os abastecimentos nem vale a pena falar mais, mas tudo o resto esteve impecável, sem falhas. No fim ainda tomei um duche no que me pareceu o melhor chuveiro do mundo, nos balneários do estádio. 

Estou muito orgulhoso da minha prova, até o resultado foi anormal para mim. 31º em 200. Acabei completamente arrasado. Mais amassado do que em muitas provas de montanha! À noite estava com tantas dores que tive a fazer gelo nos joelhos e tornozelos e ainda tive que tomar um brufen porque estava ligeiramente febril. Foi uma tareia tremenda para o corpo e não fosse a nuvem de endorfinas que estou a navegar neste momento podia mesmo dizer que tinha sido um martírio! Com desnível ou não, com montanha ou não, com trilhos ou não, esta vai direitinha ali para aquela coluna do lado direito do blog que diz: "Hall of Fame - As Grandes"!

15 comentários:

  1. Muitos parabéns! Bela prestação!
    Ainda por cima com o dito problema, não deve ser fácil manter a energia.
    Terão sido os croquetes....?

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    1. ahah não, antes dos croquetes já tinha havido adubação de terrenos.

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  2. Muito bom! E assim, atavés das tuas palavras lá nos levastes de mansinho a percorrer o Abrantes 100 :)
    E essa de dizeres que uma prova com 2400D+ não tem subidas...até fui reler para ver se tinha lido bem :) Mas acho que te percebo, já o teu corpo não sei se deixou "enganar" e deu bem por elas, pela forma como contas como ficaste.
    Boa recuperação agora.

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  3. Parabéns, grande malha. Fi-la o ano passado, ainda sem o lustro que ganhou este ano. E, mesmo não sabendo que alterações houveram no percurso, não há como não recordar os opíparos - mesmo para lá do que seria normal num evento desportivo - abastecimentos. As tigeladas, aquelas tigeladas...

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  4. Excelente crónica!!! Adorei!!! Qt às subidinhas longas com pequeno desnível foram-me moendo o juízo!!! Prova fantástica. Mts parabéns.

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  5. Grande prova, muitos parabéns!!!
    Pela prova e pelo prazer que tiveste.

    Um abraço

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  6. Bolas, grande tempo!! Parabéns!! Fizeste um ritmo melhor em 100km que eu, em Coimbra em 10km!!
    Máquina!!

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  7. Já percebi que também foste feliz em Abrantes.

    Parabéns pela prova.

    Curiosamente, eu nunca lá corri :)

    Em relação ao Imodium, nunca usei em treino ou provas mas usei há pouco tempo (mais informação desnecessárias mas se quiseres edita) e é realmente eficaz.

    Achas que as sapatilhas são fracas ou não foram feitas para 100 km? É que algumas são o que são e não para o que queremos.

    Abraço

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    1. Segunda hipotese! Portaram-se muito bem até certo ponto, depois a rigidez delas não perdoa. Têm boas estabilidade e muito boa aderência, calculo que são boas para provas técnicas até 30 ou 40km.

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  8. Excelente Filipe!!! Parabéns. Esta entrou directamente para a minha lista de provas a fazer. Adoro este tipo de provas.
    Aquele abraço

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    1. Por acaso lembrei-me várias vezes de ti. Acho que ias gostar. (nota-se muito que estou deserto que voltes aos ultra trilhos? ahah)

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  9. Estava tudo a correr tão bem até ter lido "travessias do rio, cordas". Quase que ficava convencido a uma aventura destas!
    Espero que estejas melhor e recuperado da tareia e da... desidratação. Abraço!

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    1. ahaha não era por aí, foi pouco mais que 1km disso. Mesmo as travessias do rio era em troncos ou pedras, não houve pézinho molhado! Toca a por na lista novamente, ao lado da maratona do gerês!

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  10. Enorme Filipe! Mais uma grande aventura e esta com um resultado de deixar qualquer um orgulhoso :)
    Já te disse várias vezes e é bem verdade, sou apenas um discípulo teu no que a textos diz respeito... Quando conseguir escrever algo como o teu primeiro MIUT, fico feliz :)
    Boa recuperação e grande abraço!

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