Foi em 2014 que li a crónica do Paulo Pires sobre participação dele no MIUT. Na altura ainda era um inexperiente nos trilhos, mas a descrição dele da Floresta Laurissilva ficou-me na cabeça e decidi logo ali que um dia ia estar na Madeira. Um ano e uma decisão impulsiva depois, lá estava eu em Porto Moniz para enfrentar os 115km que haveriam de mudar tudo. Passaram 5 anos desde que o Paulo me apresentou o MIUT. Milhares de quilómetros noutros trilhos, noutras montanhas, noutros países.. Mas todos os anos lá voltava eu a Porto Moniz para mais uma travessia.
Quatro MIUTs depois e aos 105km do quinto, no Larano, ultimo abastecimento da prova, o ciclo estava prestes a fechar-se. Tentava segurar as lágrimas. Tão perto da meta mas tão longe. As pernas estavam desfeitas, gritavam por descanso, por paz. O meu corpo pesava mais de 500kg em cima daquela cadeira. A 11.2km da meta senti que não conseguiria dar nem mais um passo, a minha prova tinha acabado ali.
Mas.... levantei-me.
Retirado do Facebook da organização. |
Nunca tinha estado tão tranquilo antes de um MIUT. Estava completamente seguro do treino que tinha feito, vinha de algumas provas que me deram muita confiança e, acima de tudo, sentia-me muito bem. A viagem foi mais uma vez feita com grandes amigos, a Sara diz que é a minha viagem de finalistas anual :) O Rodrigo e o Simão estavam comigo na partida dos 115km, enquanto o João Bastos e João Miguel esperavam em Machico pelo inicio das suas provas, 42 e 85km.
Rodrigo, Simão, Bastos e Cabeçudo. |
Este ano éramos uns impressionantes 960 em Porto Moniz! No meu primeiro ano partiram 350. À meia noite lá iniciámos a cada vez mais stressante primeira subida e descida. É muita gente para escoar e os engarrafamentos são quase inevitáveis, mas mesmo assim consegui descer com bom andamento para a Ribeira da Janela, onde como sempre nos esperava um cada vez mais impressionante banho de multidão.
A subida seguinte, a primeira grande subida da prova, até ao Fanal, tem sofrido algumas ligeiras alterações ao longo dos anos. Sinceramente, parece-me que todas a foram tornando mais acessível! Não deixam de ser 1200+ em 10km, mas a inclinação nunca é exagerada e o desnível, apesar de ir acumulando no corpo, vai-se papando quase sem dar por isso. Mas o MIUT estava prestes a começar e foi longo com estrondo.
A famosa e sempre espetacular serpente. Retirado do Facebook da organização. |
Para este ano a grande alteração foi a descida a seguir ao Fanal. Aquela que para mim era a mais difícil de todo o percurso seria substituída por uma supostamente mais acessível, mas sinceramente dali não vieram facilidades. A nova descida, que acrescentou quase 3km ao percurso, foi quase toda feita em escadas (quem diria), embrenhada na Laurissilva. Um trilho espetacular mas muito difícil, como quase todos nesta prova, onde é quase sempre impossível de correr e o único pensamento é segurar as pontas para o que aí vem. E ainda mais cuidados se devem ter quando o que se segue é o monstro do MIUT: a subida para Estanquinhos.
Juro que de ano para ano eles sobem a cota de Estanquinhos. Tem que ser, aquilo parece-me sempre maior. O mesmo desnível da subida para o Fanal mas com metade do comprimento. Uma verdadeira bomba que se não for tratada com o máximo cuidado nos rebenta nas mãos. Senti-me bem nesta subida. Ao contrário de 2018, fui poucas vezes virado e consegui manter um ritmo constante sem nunca entrar em demasiado esforço. O único contratempo foi a 50 metros do abastecimento onde, desconcentrado, dei uma valente queda que deixou uma bonita marca na perna. O pior foi quando me tentei levantar e os músculos das pernas ficaram imediatamente com cãibras, afinal já iam em tensão completa com as 2 horas de subida intensa. Mas não havia tempo a perder, lambi as feridas, entrei no abastecimento e tentei comer, só que desta vez e ao contrário do habitual, o estômago não estava a colaborar e só consegui comer dois pedaços de banana. Paciência, logo se há-de ver, siga para a descida.
A Courtney a chegar ao Fanal. Mais uma da organização. |
Este ano tivemos a sorte de apanhar um excelente dia, não choveu durante toda a noite, pelo que a descida a seguir a Estanquinhos estava sequinha. O dia perfeito para a descida perfeita, na qual em quase 10km se perdem os 1200m que se ganharam na subida. Umas vezes rolante, outras vezes técnica, outras vezes desesperante com os seus lances de escadas super íngremes, é uma descida que nos convida a andar rápido mas para a qual pagamos uma portagem elevada.
O preâmbulo do MIUT estava completo. Não alinho na conversa do MIUT só começar aqui, na verdade acho mais que o MIUT são 35km e 3100+ de prova, seguidos de 80km a gerir os cacos resultantes da violência deste embate inicial. Ali naquele pequeno abastecimento no Rosário, já na parte final da descida após Estanquinhos, contam-se armas e fazem-se planos antes da segunda parte da batalha. É aqui que todos se tornam pequenos e fazem a pergunta: será que tenho o que é preciso?
Comecei a gerir mentalmente a prova por etapas. Primeiro o caminho Quebra Panelas, com os seus degraus infinitos e muito curtos que nos levam à Encumeada. As boas sensações físicas contrastavam com a barriga que teimava em não entrar na prova. Com a companhia do Ricardo Chung tricotámos pelos degraus acima até desembocarmos na estrada que nos levaria ao abastecimento da Encumeada. Estava bastante moído, normalíssimo. Sentei-me e, como sempre fiz aqui, fui buscar uma canja. Só que desta vez ela não entrou. Ainda assim forcei, deixar o depósito vazio era impensável, e, agoniado, lá segui.
Os degraus até à Encumeada, pelo Alexandre Andrade. Obrigado! |
Lá subi pela 5ª vez o famoso pipeline e virei a montanha para o Curral de Freiras, que de ano para ano me parece mais afundado num vale. Bem no topo, antes da descida, parei 5 minutos para meter um gel e despir o corta vento, a excelente noite tinha-se transformado num dia lindo e de céu limpo, estava a aquecer. Ao contrário da subida até ali, na qual senti que estava a ir abaixo, a descida para o Curral trouxe de volta as boas sensações. O Strava diz que foi a melhor das 5 e o certo é que estava solto. Bom sinal!
Transito no Pipeline, pelo Alexandre. |
Entrada no abastecimento do Curral das Freiras, accionei o botão e entrei em modo Base de Vida. Fui buscar o saco, troquei de roupa, lavei os dentes, levei o meu Compal de pêra e fui sentar-me a comer um prato de massa com carne. Uma, duas, três colheres e acabou. Sentia-me cada vez mais agoniado e não quis forçar, bebi o sumo quase todo, sempre serviria de alimento. Percebi que esse aspecto não ia melhorar até ao fim, por isso mudei de estratégia e decidi que a partir dali ia depender dos géis, que a bem ou a mal lá iam entrando.
A meio dos afazeres, pelo Ricardo. |
A etapa seguinte era a infernal subida ao Pico Ruivo. 1350+ em pouco mais que 10km numa autentica torradeira, naquele que eu creio ser o único sitio da Madeira com eucaliptos. Um trilho aos ésses, com pedras e degraus, terra muito seca que levanta pó e torna as coisas ainda mais desconfortáveis. As primeiras quase 2 horas de subida são passadas nesta estufa sufocante, a beber água como se não houvesse amanhã. Comecei muito mal, fui passado por algumas pessoas, o que normalmente não me faz confusão nenhuma porque gosto de ir ao meu ritmo, mas foi a meio daquela subida que a coisa começou a mudar.
Ao ser passado por mais um comboio de 4 ou 5 atletas, todos da prova de 85km, decidi colar neles. Porra, que se lixe, se quebrar quebrei, mas estou a sentir-me bem, sou capaz de ir mais depressa. Entrei no ritmo deles e rapidamente os deixei para trás, à medida que saíamos do inferno dos eucaliptos e chegávamos perto dos picos e das escadas. O ar ficou imediatamente mais fresco e eu automaticamente também me senti melhor. Meti mais um gel antes do ataque final ao Pico Ruivo o que me deu um ultimo boost. Cheguei lá acima a acabar o terceiro flask, foi quase litro e meio nesta subida!
No abastecimento nem tentei comer, enchi os flasks e fiz-me ao caminho. Apesar do próximo abastecimento ser a 10km, estes dividem-se em duas etapas muito distintas: a primeira delas é a razão pela qual faz valer a pena voltar ano após ano, a travessia entre os picos. Por mais que eu tente descrever estes 5km todos os anos, é impossível fazer-lhe justiça. Têm tanto de duro como de incrivelmente bonito, uma coisa de outro mundo.
Caminho entre os picos, pelo João Miguel, aka Cabeçudo. |
Esta é do Alexandre. Brutal. |
Continuei com a minha estratégia de "ou vai ou racha" e mais uma vez o Strava me diz que fiz o melhor tempo nesta secção entre os picos. Era a primeira vez que estava a encarar uma prova de 3 dígitos desta maneira, ainda por cima no MIUT onde sou sempre tão cauteloso. Corri nos pequenos troços onde dava para tal e subi os degraus devagar mas sem hesitar ou parar. Lembro-me de no meu ano de estreia me ter sentado umas 50 vezes naqueles degraus! De repente o caminho que era muito longo até ao Areeiro tornara-se curto, já estava a entrar nos 4km de descida para o abastecimento do Chão da Lagoa.
Na descida para o Chão da Lagoa, foto da Jennifer Alves. Obrigado! |
Nada é fácil nesta prova, porra! A descida começa com escadas atrás de escadas, toros de madeira redondos que condicionam a passada. Depois saímos das escadas e entramos nas pedras, mais terreno difícil, mais umas pequenas subidas a meio. Forcei o trote, sempre. Olhei para o relógio e comecei a fazer contas de cabeça. "Ora bem, se chegar às 17:20 ao Chão da Lagoa, depois 2h30 até ao Poiso, depois ..... epah, não, cala-te estúpido. Não comeces com essas merdas!".
17:15, cheguei ao Chão da Lagoa. 200 metros antes do abastecimento tinha decidido que não me ia demorar, já que não estava a conseguir comer ia só encher os flasks e seguir. Mas, assim que paro, o corpo parece que desligou e tive mesmo que me sentar. "Porra. Esquece, nunca mais chegas ao Poiso em 2h30, caga nisso, nem sequer penses. Nem te aguentas em pé!"
Levantei-me com os flasks cheios e 2 gomos de laranja no bucho. Liguei à Sara a dar novidades enquanto caminhava no trilho, de qualquer maneira aquilo já não dava para correr. Ainda assim quando desligo faço uma tentativa de trote, mas tudo me dói! Caraças, não me hei-de vergar. Batalhei a descida inteira para o Ribeiro Frio com dores em todas as articulações e músculos das pernas, a pancada já tinha sido muita e agora estava a levar mais uma carga de porrada naquela descida. Surpreendo-me quando chego ao alcatrão, lá em baixo. "Isto já é a base da descida?" perguntei a um voluntário, como se não soubesse já. Tinha ideia que era mais comprida...
Uma selfie! Depois de muita insistência da Sara para meter uma foto na página do blog. |
Tomo novo gel. Tinha demorado uma hora a descer, para chegar ao Poiso antes das 20 tinha 1h30. O que achava muito difícil parecia tornar-se impossível, enquanto trabalhava aquela parede horrível na parte inicial da subida. Raios parta. Já tenho os músculos a ceder, já não sei se me doem mais os quadricepes a subir ou descer. Mas a porra do caminho agora está quase plano, tenho que trotar, caraças.
Olho para o relógio a controlar a altitude, o abastecimento do Poiso está aos 1400m e faltam 200 para lá chegar. São 18:40. Epah... queres ver...
Menos 150...menos 100..menos 50... Faltam menos de 50 metros para o Poiso, são 19 horas. Acho que nunca cheguei aqui tão cedo.
Entro no abastecimento às 19:16 e mais uma vez cedi à tentação de me sentar. O meu corpo está no fio da navalha, percebo isso porque assim que me sento sinto os sistemas rapidamente a desligar um por um. Levanto-me de repente e vou encher os flasks. Forço mais 1 ou 2 pedaços de banana e ligo à Sara que me confirma que nunca cheguei ali tão cedo, mas a diferença para o 2016, o meu melhor ano, não era significativa. Era muito, muito apertado. Ainda assim não consegui evitar olhar para aquela luzinha lá ao fundo. Primeiro muito ténue, mas cada vez mais intensa. A luz que me dizia que era possível chegar a Machico antes da meia noite. Mas para isso acontecer tive que fazer uma aposta. Desde o Curral das Freiras que estava a arriscar, forcei bem mais do que normalmente faria, mas agora estava num precipício e tinha que tomar uma decisão. A luz das sub24 estava acesa, mas para lá chegar precisava de, mais do que arriscar, entrar em modo suicida.
Fiz all in. Agora estava a entrar num jogo novo.
Do Poiso à Portela são 9km a descer. Primeiro num trilho de downhill pouco técnico, depois num estradão e finalmente numas levadas misturadas com escadas. Forcei como se estivesse numa prova de 10km. A dor nos músculos das pernas tornara-se aguda com o impacto, mas não desarmei, precisava de chegar à Portela antes do por do sol, o melhor que conseguira nas 4 edições foi ligar o frontal a meio da descida, era desse sinal que eu precisava. Então fui atrás dele. Fiz toda a secção a correr enquanto o meu cérebro entrava em ebulição com a perspectiva de conseguir.
Pensei mais uma vez não me sentar no abastecimento, mas assim que subo os 5 degraus para o controlo quase que desmaio e sentei-me na primeira cadeira que encontrei. Deitei os bastões para o chão, ofegante, ensopado em suor, sem conseguir falar. Estava prestes a cair do precipício, era impossível, não ia conseguir, ia rebentar de certeza!
"Sim, dê-me um copo de café, sff". Com o café comi dois figos secos, não dava para mais. Que se lixe. Ou vai ou racha.
Saí do abastecimento e devia estar lívido, as voluntárias perguntaram-me se estava bem. Óbvio que não estava, mas não havia volta a dar, agora era até ao fim.
Ainda era de dia quando saí da Portela para os curtos 5km até ao Larano. Sabia de cor e salteado o caminho. Três km de estradão plano, um trilho ondulante e para terminar a terrível Descida da Degolada. O trote que parecia ter fugido enquanto desfalecia no abastecimento afinal ainda lá estava nas pernas e consegui percorrer os 3km de estradão sempre a correr.
A luz estava cada vez mais forte... Mas ainda faltava tanto!!
Entrada no trilho ondulante. Estendi o trote até ao limite. Sempre, mas sempre, a forçar. Estava cada vez mais difícil. Não que tivesse abrandado, mas todos os alarmes estavam a tocar de forma estridente! A cabeça ainda era mais forte e mandava o corpo seguir, mesmo quando parecia impossível!
Até que veio a Descida da Degolada, aqueles 400m de descida demolidora antes do abastecimento.
Oh não... Não consigo descer isto. Não consigo. Tinha dores fortes a cada apoio, desesperava em cada balcão que tinha que virar e descer mais uns degraus altíssimos. Sufoquei. Senti a garganta a apertar. A luz das sub24, que ainda há pouco quase me encadeava, começou a sumir depressa.
Acabou. Tinha caído num abismo tão fundo como aquele que via no fundo da Degolada.
Entrei no abastecimento do Larano. O ultimo, a 11.2km da meta. Estava perdido. Desta vez nem pensei em não me sentar, simplesmente não tinha força para estar de pé. Tentei segurar as lágrimas, mas com muito pouco sucesso. Que raio de ideia, nunca consegui e nunca vou conseguir chegar antes da meia noite, não o tenho em mim, devia ter percebido o ano passado! Eram 21:28, tinha 2 horas e meia para fazer os cerca de 12km até ao fim, o que em circunstancias normais daria perfeitamente, mas aquelas não eram circunstancias normais, de todo. Ia ficar ali mais uns 20 ou 30 minutos, que se lixe a luz, vou arrastar-me até ao fim e pronto.
Devastado, peguei na toalha para a atirar para o chão, mas quando estava prestes a encerrar o assunto...ela estava lá. Muito fraca. Uma pequena luz. "Oh meu grande anormal, já pensaste bem que tens 2h30 para fazer 12km? Mas tu já fizeste bem as contas? Foda-se! Deixa-te de merdas, nem que partas uma perna!" (a luz é um bocado mal criada, desculpem).
Levantei-me.
Tinha que dar, tinha que conseguir.
Foi o tudo ou nada. Corri praticamente toda a vereda do Larano. Encontrei o Carlos, amigo dos Açores, que me deu boleia durante 1km, depois segui sozinho nos trilhos que ligam o Larano às Levadas de Machico. Puxei como nunca tinha puxado por mim, mas a cada passo de corrida que dava a luz ficava mais forte e as pernas mais leves. A cabeça estava a levar a melhor e quando assim é conseguimos tudo!
São 23 e estou prestes a entrar em Machico.
Está feito.
Consegui.
Abrandei naqueles 2km finais, tirei a corda da garganta e saboreei cada metro. Pensei na prova que tinha acabado de fazer e principalmente pensei em tudo o que me levou ali. Não só os 4 MIUTs anteriores, mas todos os quilómetros que percorri. Pensei no treino que fiz nos meses que antecederam esta prova, em todas as horas que tirei à minha família, todos os sacrifícios, todas as vezes que acordei às 5 da manhã para treinar. Foi o final perfeito para um ciclo de 5 anos de MIUT. 23h20 não é um tempo nada de especial. Valeu-me o lugar 206 entre os 960 que começaram e 640 que terminaram. Ganhei a mesma medalha que todos os que chegaram depois do terceiro lugar e para muitos até seria considerado um tempo fraco. Mas para mim foi muito especial. Foi a prova que tudo valeu a pena, todo o treino, toda a dedicação, tudo foi recompensado. Foi a minha corrida perfeita.
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A melhor foto da minha chegada! |
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