Parei, ofegante, em frente a uma parede cinzenta. Ao meu lado estava uma fita laranja que me indicava estar no sitio certo, mas não conseguia ver a seguinte. Olhei a 360º e tive uma vertigem, para trás estavam as rochas que tinha acabado de escalar, dos dois lados um precipício que se tornava infinito por causa do nevoeiro e à minha frente a parede. Granito, vertical, cinzento. Bem mais alto que a minha cabeça. Tinha que transpor a parede e procurar, lá em cima, a próxima fita. Pois bem, larguei os bastões, que ficaram pela milésima vez naquele dia pendurados nos pulsos, e, com a mão direita, procurei uma fenda na ronda. Fiz força, não se deslocou. Ok, agora os pés. Enfiei o pé esquerdo numa fenda da rocha e elevei-me. Agora procurava um apoio para o pé direito, que estava no ar. Dei dois pontapés numa pequena protuberância no granito para testar a resistência. Parecia ok. Icei-me e fiquei com a cabeça acima da parede. Arrastei os bastões pendurados e consegui puxar a perna esquerda lá para cima. Com um grande esforço pus-me agachado em cima do granito e assim que me levanto para procurar a próxima fita uma rajada de vento brutal provoca-me um desequilibro, ao mesmo tempo que limpa ligeiramente as nuvens em redor. Todo o meu corpo treme, um arrepio percorre-me a espinha e o sentimento é de puro medo quando vejo o caminho. Estava na barriga do Monstro da Pena.
Umas boas horas antes de enfrentar o Monstro estava no Bio Parque de Carvalhais pronto para a aventura. Muitas caras conhecidas, abraços e sorrisos nervoso ocuparam o tempo até o Joca dar a partida. Essa aconteceu às 6 e pouco da manhã, ainda bem de noite, debaixo de uma chuva miudinha. A previsão era do tempo melhorar ao longo do dia, mas por enquanto estava muito frio, vento e chuva. Por isso parti com o equipamento para o frio todo vestido com esperança de ir retirando camadas nas próximas horas.
Eram 120 à partida. Decorem este número. Fotografia do Paulo Nunes. |
Já conhecia bem os primeiros 8 ou 9km dos 65 do Pisão Extreme. O percurso era igual à prova de 35km, que fiz (e adorei) o ano passado. Uma primeira subida fácil, dividida em dois, levar-nos-ia até ao topo da garra, para um primeiro vislumbre da magnifica Serra da Arada, já para lá da cota 1000. É aqui que oiço falar pela primeira vez do Monstro da Pena, da boca do meu amigo Viriato Luís Nunes. O tempo, como era de esperar, piorava ao ritmo dos metros verticais conquistados, e, lá em cima, além da vista, tivemos oportunidade de sentir também pela primeira vez o clima de montanha que nos esperaria todo o dia. Com o capuz do impermeável enfiado na cabeça, por cima do gorro, lancei-me pelo dedo da garra abaixo, em direcção ao fundo do vale.
A descer de bastões, pois claro. Foto do meu amigo Fritz |
A chuva intensa das últimas semana deu vida à serra, havia água por todo o lado. Quem conhece a Arada reconhece imediatamente as pregas formadas pelas encostas, agora imaginem que em cada uma dessas pregas corre uma cascata de água que desagua no fundo dos vales. A travessia de ribeiros no fim de cada descida era inevitável e a primeira delas foi na base da encosta de Gourim. Lá estavam dois bombeiros, com fatos isotérmicos, a ajudar-nos a atravessar o rápido de água gelada e com uma corrente impressionante. Mal entro a água chega-me à cintura e a corrente trata de me desequilibrar o suficiente para me molhar até ao peito. Estava dado o primeiro aviso.
Fotografia do bombeiros voluntários de São Pedro do Sul na tal primeira travessia. |
Primeiro abastecimento, na Casa Margou, em Gourim. 8km e quase 1000+. Comi rapidamente e cumpri o resto da subida até ao ponto de separação das provas e iniciar o périplo pela Arada desconhecida. Lá em cima o caminho dividia-se em 3. À direita ia o pessoal dos 24km, diretos ao Fujaco, ultima subida da prova, em frente os dos 35, que desceriam até Drave onde chegaria dali a alguns quilómetros, e nós fomos para a esquerda, rumo ao desconhecido. A prova ia, finalmente, começar.
Ainda não vos tinha mostrado o pente. O ponto de separação é ali no inicio da terceira descida. |
Uma descida enorme, muito técnica, com inclinações a andarem pelos 40%, empurrou-nos para as profundezas de um vale. A paisagem era de cortar a respiração, a toda a volta se viam cascatas brancas. Iamos conquistando a encosta despida de vegetação, sem trilho nenhum, por entre desequilíbrios provocados pela lama e xisto molhado. Lá em baixo começava a vislumbrar-se o destino: o inevitável ribeiro que teríamos que cruzar antes de subir. Mas desta vez havia uma diferença, não haviam bombeiros.
Comecei a planear na cabeça a travessia. Decidi tirar as luvas, pensei eu que molhar as mãos seria inevitável e quis evitar ensopar as luvas antes de enfrentar a próxima grande subida. Meti-as dentro da mala e preparei-me para atravessar. Assim que entro a corrente empurra-me e..zuca, água até ao peito e luvas molhadas! Tá bonito. Dou um passo atrás e começo a tentar agarrar os ramos de uma árvore que cobriam a travessia, mas partiam-se sempre. Na outra margem estava um companheiro (que falou comigo várias vezes mas não decorei o nome, com um impermeável amarelo. Se leres isto, diz!) com a mão esticada. Arrisquei um passo, inclinado contra a corrente, e agarro-lhe a mão, que me puxa para fora das águas geladas. Esperei que a Jocelina, primeira mulher e minha companheira de vários km, atravessasse o rio e seguimos os 3 juntos montanha acima. Todas as 5 ou 6 pessoas que estavam ali naquela altura só conseguiram passar com ajuda, nem imagino o que foi passar aquilo sozinho!
Mais uma foto brutal do Fritz. Este sou eu. |
A subida, com vista para o ribeiro, começou por umas escarpas muito agressivas. Calcei as luvas e preparei-me para a grande caminhada que nos levaria novamente à cota 1000. Mais uma vez o tempo foi piorando com a elevação, as nuvens que ora apareciam ora eram sopradas pelo vento, cobriam agora totalmente a serra. Não tinha conseguido aquecer depois do banho no rio e o ritmo de subida não era suficiente para produzir calor. A encosta era completamente exposta, o vento cada vez mais forte e cortante. Começou a chover com força e logo de seguida granizo que picava as pernas e a cara como agulhas. As mãos gelaram e pela primeira vez sentia-me eu próprio gelado, apesar de todas as camadas térmicas, que agora estavam completamente ensopadas. Seguia num comboio de 5 ou 6 pessoas, todas em silencio, provavelmente tão assustadas como eu.
Virámos finalmente a montanha! Só queria começar a descer para voltar a aquecer e, verdade seja dita, descida foi o que não faltou a seguir. Quase 4km, que começaram no trilho dos Incas e desembocaram nos Três Pinheiros (que eram três, em Julho já só eram dois e agora só já resta 1!), que fiz a subir uns meses antes na UTSF. Mais uma brutalidade de descida, super inclinada, pela encosta virgem, levou-nos a nova travessia de rio, esta muito mais larga e, agora sim, com dois bombeiros e cordas para ajudar. Vamos lá ao banho então.
Mais uma foto dos bombeiros de São Pedro do Sul. Que trabalho fizeram eles! |
Banho tomado e, como seria de esperar, mais uma subida nos separava do segundo abastecimento, em Regoufe. Aqui comecei a ver as primeiras desistências e o ar de desânimo era geral em todas as caras. A progressão estava a ser lentíssima, cheguei aos 18km com quase 4 horas de prova, mas tanto era lenta para mim como para os outros. Continuava num comboio um bocado compacto por esta altura.
A chegada a Drave foi por um trilho que já conhecia de outras aventuras e agora estávamos novamente a embocar no percurso dos 35km. Sabia exactamente o que me esperava: uma subida absurda à saída de Drave, depois descida por um trilho +/- corrível e finalmente uma parede quase vertical, conquistada à encosta.
Malta à saída de Drave. O elevador estava avariado! Foto do Fritz. |
Foi logo à saída de Drave que notei uma dor chata no joelho direito quando o fletia e usava a perna direita para me elevar. Comecei a defender-me usando muito os bastões, talvez por isso hoje ainda tenha alguma dificuldade em levantar os braços... As duas subidas, de 350+ cada uma, eram tal qual me lembrava: demolidoras. Sem trilho, com muita pedra e a exigir um planeamento de cada passo. A inclinação chega a passar os 60%! Tínhamos constantemente que usar os braços. Esta era a parte mais difícil da prova do ano passado e mais uma vez senti que estava dentro de uma máquina de lavar, desta vez nem faltou a água! É impressionante como as subidas se formavam à nossa frente, como uma onda gigante que vai crescendo, enquanto descíamos a encosta e vemos os pontos pequeninos do outro lado do vale.
Continuei em território conhecido na grande descida para Covas do Monte, onde os percursos se voltavam a separar. Agora já o comboio se tinha dispersado e seguia atrás de um atleta do país de Gales, que me serviu de companhia várias vezes. A descida era mais uma vez muito difícil, mas enganava e deixava-nos correr em certas alturas. Deve ter sido numa dessas que me desconcentrei e fiz uma daquelas entorses feias que até fazem CRAC. Dei um grito e sentei-me no trilho a dizer asneiras. O Galês perguntou-me se estava tudo bem e eu disse-lhe que sim, enquanto cambaleava novamente trilho abaixo para não deixar o pé arrefecer. O que vale é que foi no pé direito, a juntar ao joelho que estava a dar sinal só se estragava uma perna!
Mais uma foto brutal do Fritz. |
Em Covas do Monte, novo abastecimento, sorvo duas sopas bem quentes e preparo-me novamente para entrar em território desconhecido. O Rodrigo Quintal dizia-me que a partir dali a coisa aligeirava, mas eu já desconfiava que não devia ser bem assim antes de uma seta nos mandar para o lado esquerdo e começarmos a subir mais uma encosta virgem.
Esta foi a minha pior fase da prova, comecei a subida muito devagar e perdi algumas posições. Mas sabia que enquanto ela se mantivesse constante e sem grande tecnicidade eu conseguia ir descansando no ritmo e voltar a entrar na prova. Mas o Pisão tinha outros planos. A meio desta subida fizemos a primeira de muitas incursões em cristas.
É muito giro ver o Killian a correr nas cristas, a saltitar de pedra em pedra. Mas é lá em cima, perto dos 1000m, com chuva, vento e frio que se vê realmente o que aquilo significa. Esqueçam os trilhos, esqueçam as subidas típicas do sky que tanto vos falo, esqueçam descidas técnicas com lama e cordas. Ali é outro mundo. Ali sente-se como em mais lado nenhum a vertigem da montanha, o respeito pela enormidade que nos rodeia e, muito sinceramente, o mais visceral medo. As bandeirolas estavam separadas algumas vezes dezenas de metros, entre elas era pedra e mais pedra, bem no topo da montanha. Progredia como podia, com a respiração mais ofegante pelo medo do que pelo cansaço. Sentia que ao mínimo deslize, e friso, mínimo deslize, as consequenciais seriam desastrosas. Eu sei, já estão a pensar que isto não tem jeito nenhum. A verdade é que estas provas não são para todos. É bom que à partida as pessoas saibam onde se estão a meter, nem todos têm que gostar do mesmo!
Fotografia do Fritz num outro dia. Subimos por aquela crista de pedra. É pena não dar para ver bem a dimensão da coisa. Fritz, se estiveres a ler isto, faz favor de arranjar uma foto das cristas! |
A descida continuou íngreme até ao Rio Paivô. Lá em baixo voltámos a embrenhar-nos nas árvores, num trilho maravilho ao lado do Rio, que corria furioso. A subida para a aldeia da Pena iniciou numa garganta brutal, no Trilho do Morto que Matou o Vivo (juro que não sou eu que dou estes nomes). Um daqueles sítios com paredes tão altas à nossa volta que o GPS até perde o sinal! Subimos por um trilho aos ésses, a acompanhar uma cascata. A água foi omnipresente em toda a prova, é espetacular sentir a montanha viva.
Inicio do trilho do morto, num dia de verão. Imaginem isto com 10 vezes mais água. Foto do Fritz. |
A Aldeia da Pena surge numa pequena trégua a meio da subida. Um oásis que nos seduzia com as suas casas de xisto e fumo a sair de chaminés de salamandras. Parei no abastecimento e meti conversa com quem lá estava. Perguntei o que se seguia. Eram apenas 6km até à base de vida, faltava só metade da subida! "Mas a subida....." dizia a senhora, "a subida... bem, é ali". E apontou para uma encosta totalmente cinzenta do granito. "Como assim?" perguntei eu. "Sim, é por ali... mas é curta, são só 6km até à base de vida!". Hm.. algo se passava.
Estava prestes a enfrentar o Monstro da Pena.
Percebi imediatamente que estava lixado quando vi uma corda. Tínhamos passado por cristas vertiginosas, por inclinações de 60%, por descidas em precipícios e até por travessias de rápidos. Ainda não tinha visto uma única corda ou corrente! Agora ali estava ela, a rir-se de mim. Deixei os bastões pendurados nos pulsos e trepei por ela.
O Stian a passar na Aldeia da Pena. Vejam lá ao fundo as pedras, é o Monstro! |
O que se passou no próximo quilómetro foi uma insanidade que demorei quase 45 minutos a transpor. Foram metros e metros de autentica escalada, de becos sem saída, de pedras escorregadias e braços a latejar. Todos os movimentos eram pensados, etapa após etapa. À medida que subíamos a vegetação ia desaparecendo, aumentando a sensação de vertigem, até que finalmente progredíamos na crista, esta ainda mais eriçada que a anterior. Imaginava o que era pensar em desistir naquele ponto, não havia volta a dar a não ser continuar até chegar a porto seguro!
Quando finalmente pisei terra firme respirei de alivio e soltei um riso nervoso. Ainda hoje me arrepio quando me lembro dos sítios onde passámos!
A base de vida chegou pouco depois, aos 42km, em Macieira, depois de virarmos o São Macário. Estava com nada mais nada menos que 42km, 4700+ e 10 horas de prova. Sim, leram bem. Não tenho dúvidas nenhumas, estes foram os 42km mais difíceis que já fiz na vida. Nada se compara a isto.
Peço desculpa pelas "imagens de arquivo", mas não tenho nenhumas melhores para ilustrar. Esta é do Paulo Nunes! |
Na base de vida estava o meu amigo Hugo e a Ana, que foram incansáveis no apoio. Troquei a camisola térmica, tshirt, buff e luvas por outras secas, o que me deu nova vida. Bebi nada menos que 4 (quatro) taças de sopa e preparei-me para os 20km finais. Por incrível que pareça, mesmo depois daquele porradão que levámos até ali, sentia-me com força e ânimo! Enviei uma mensagem à Sara a dizer que só não acabava se me partisse todo numa descida. Acho que ela achou uma brincadeira, espero que não tenha percebido que isso era uma real possibilidade.
Felizmente a partir da Base de Vida a prova mudou completamente. Duas subidas de cerca de 350+ separavam-nos da graaaande descida em estradão até ao Fujaco, onde enfrentaríamos a ultima grande dificuldade, uma parede de 700+. Até lá segui acompanhado do Rodrigo Quintal, a navegar de fita em fita, em equipa, por trilhos mais acessíveis, que culminaram no tal estradão de 3km a descer até ao Fujaco.
Lá, no ultimo abastecimento e na base do ultimo grande obstáculo, estava o João Miguel que me contagiou com o seu habitual entusiasmo. Não me demorei muito no abastecimento, na verdade estava deserto para me por à prova na grande subida e chegar ao fim.
Tal como me lembrava, a subida era super inclinada, a primeira parte, com 1.4km de extensão, tem uma inclinação média de 36%! Mas é o tipo de subida que eu gosto e onde estou confortável: sem grandes obstáculos que exigam muita amplitude de movimentos e com inclinação constante. Relaxei e deixei-me entrar na subida, num passo muito constante e confortável. Quando me apercebi estava a apanhar malta na subida e a deixar outros para trás!
Agora era só cumprir os quase 7km de descida que nos separavam da meta, de trilhos fáceis e finalmente estradão, o que fiz quase sempre a trote. Afinal de contas, pelo menos até aos 42km a corrida tinha sido praticamente nula. Estava todo amassado da cabeça aos pés, mas os músculos da corrida ainda estavam intactos! Foi isso e o entusiasmo de chegar antes das 15 horas, coisa que.....falhei por 6 minutos! ahah Não sem antes, a 50 metros da meta e numa ultima travessia de um ribeiro, me tenha desequilibrado e dado um mergulho que me deixou dentro de água até ao pescoço! Muito agradável.. ainda hoje não consegui aquecer!
Na meta estava o Joca, ao qual respondi atabalhoadamente a algumas perguntas, e o meu amigo Sérgio, cérebro da organização, a quem dei um apertado abraço e agradeci pelas 15 horas passadas na montanha.
Esta foi daquelas que, muito mais que uma corrida, foi uma aventura. Sinto que não estou a conseguir passar neste texto as emoções que passei até à Base de Vida, mas há coisas que são perfeitamente indescritíveis. Esta prova é única em Portugal e, como disse lá atrás, não é mesmo para todos. Dos 120 que começaram, apenas 59 atravessaram a meta e eu fui o 25º destes. Muitos dos que ficaram pelo caminho são tão ou mais capazes que estes 59 vencedores, mas num dia destes há factores que são imprevisíveis e que de um momento para o outro nos tiram da prova.
Hoje sinto que fiz parte de algo especial, que todos os 120 que lá estiveram se tornaram meus irmãos de armas. Ah, e dou graças aos Deuses todos que existam por ter acabado, é que não me apetecia nada ter que voltar a passar por aquilo tudo!
Link para o Strava.