Não há volta a dar. Estou cada vez mais viciado neste tipo de provas! Curtas, com quantidades absurdas de desnível, técnicas a roçar o perigoso e em montanha a sério. É principalmente isso que adoro, andar na montanha. Sair da linha das árvores, escalar pedra, sentir as diferenças de temperatura brutais à medida que subimos a cota, andar enfiado em rios no fundo dos vales e sempre, sempre com o coração a sair pela boca! Não há volta a dar, estou apaixonado pelo Sky Running! Foi a essa vertente do trail que decidi dedicar a ultima metade do ano. Depois dos 42km da Freita e dos 25km da Lousã, desta vez o desafio foi na Serra do Marão, no Marão Sky Up (MSUP), que tinha como cartão de visita uns astronómicos 30km com 3000+!!
Uma das minhas fotografias preferidas de sempre, pela grande Susana Luzir |
Reunimos uma tropa impressionante de malta Almeirinense (éramos sete!) e no sábado lá seguimos no furgão da Associação 20km de Almeirim rumo à aldeia de Ansiães, no coração do Marão. Pela primeira vez fiquei em Solo Duro e, tenho que dizer, foi muito positivo! Penso que os meus companheiros, munidos de colchões que iam de 0.5 a 3cm de espessura, não tiveram a mesma experiência. Eu, como não brinco em serviço, dormi numa king size:
A minha cama está a rir-se de todas as espumas da Yoga deste mundo |
Os Vintes presentes no MSUP. |
Durante toda a semana fui falando com o Bruno, traçador do percurso e mentor deste MSUP e do Ultra Trail do Marão, que me dava conta das más condições meteorológicas e como isso lhes estava a dificultar a vida, obrigando mesmo a algumas soluções de recurso. Choveu praticamente todos os dias, incluindo na noite antes, mas na manhã de domingo estava bom. Frio, mas bom. Apesar disso, as nuvens não deixavam ver o topo da serra, o que antevia piores condições lá em cima. Nem eu imaginava quão piores! Mesmo com o Bruno a avisar-me que "o Marão é um inferno, de verão ou de inverno"!
Às 8:30 em ponto, depois de um briefing, feito pelo Bruno e o Isaac (responsável pela segurança), a alertar para as más condições e para a perigosidade de algumas secções, lá partimos para a primeira edição de mais uma grande prova do nosso calendário.
Partida. Da organização |
Parti preparado para o pior. Vestido com uma térmica de manga curta, com a tshirt da equipa por cima, e manguitos. Estava bom para o fundo do vale, mas para enfrentar as cotas mais altas levei na mala um impermeável, buff e luvas. Acabei por usar isto tudo e, em certas alturas, puxar os manguitos para baixo e achar que a térmica era de mais!
O perfil era mesmo como eu gosto! Com o enorme desnível concentrado em três subidas, duas delas km verticais. A primeira era a mais curta das 3, com 500+, que nos levou até ao primeiro pico do dia. Uma subida fácil, em 3km, com alguns estradões, trilhos poucos inclinados e alguns mais difíceis, elevou-nos à cota 1000 onde se percebeu que a partir dali entrávamos noutro mundo. Mas desta vez ainda não ficaríamos lá em cima muito tempo. Uma descida absurdamente inclinada, com vários pontos acima dos 40% de inclinação, tratou de nos enfiar no fundo do vale. Esta é das tais que afasta os curiosos e que activa aquele click na cabeça de muita gente que diz "não, o sky não é para mim". Eu compreendo. Sinceramente, também não é o meu tipo de descida favorito. Com cordas, rapel, quatro apoios e uma dose grande de sorte a afastar-nos de uma queda feia. Mas faz parte! O objectivo é chegar lá abaixo o mais depressa possível, então, siga, mergulha!
Fotografia da Lia Rodrigues. Vejam onde está o viaduto, íamos passar por baixo dele! |
Comecei a prova longe daquele sentimento de Fast & Furious que descrevi na Lousã. Era a quinta prova em cinco semanas seguidas. Durante a semana que a antecedeu senti-me sempre muito dorido e as sensações durante as duas primeiras horas de prova nunca foram boas. Até ao inicio da primeira grande subida, que não era um KV puro porque lá em cima tinha uma descida de 100m para ir buscar o resto do desnível, passou muita gente por mim e até já estava conformado para fazer uma prova tranquila, sem a corda no pescoço.
Mas uma boa subida conquista-me sempre...
Primeiro uma rampa muito inclinada e depois maioritariamente em estradões. A subida foi-me embalando, deixando-me entrar, pondo-me à vontade. Fui-me sentindo cada vez melhor, com as pernas a perderem peso com a altitude e a cabeça a desanuviar, ao contrário das nuvens, que seguiam um caminho contrário, fechando cada vez mais à medida que passávamos da cota 1000 para cima. A temperatura baixara brutalmente, o vento era fortíssimo. As minhas mãos estavam geladas quando virei o pico e ataquei a descida. Demasiado tarde para calçar luvas ou meter camadas, o melhor é correr para aquecer!
A bastonar até ao topo. Foto da Susana Luzir |
A descida desta vez também estava a ser amiga. Sempre fácil, boa de correr, o que me metia cada vez mais dentro da prova. Mas dos quase 1000 metros de elevação que se perderam, os 100 finais tinham uma surpresa reservada. Já perto da base do KV embrenhámo-nos no fundo de um vale e cruzámos algumas vezes um rio no qual corria, furioso, o caudal resultante de uma semana de chuva. Muito dificil e até perigoso, a corrente era fortíssima! Mais uma vez, faz parte.. Neste tipo de prova, neste tipo de serra, vamos ter que passar em sítios assim!
Saí revigorado do rio. As pernas agradeceram a água gelada e, agora sim, estava completamente dentro. Game face on e siga trepar o quilómetro vertical!
Cerca de 5km, foi a distancia que nos fez ganhar os mais de 1000m verticais e nos deixou na Sra. da Serra, ponto mais alto do Marão. Estes são os números, mas a subida foi muito mais que números. Foi sky running condensado. Um inicio dificil e quente no fundo do vale, trilhos fáceis dentro de bosques, corta fogos inclinadissimos, o tempo a fechar cada vez mais, a temperatura a baixar abruptamente e o vento a aumentar na mesma razão, o terreno a ficar cada vez mais técnico, mais rochas, água por todo o lado, nevoeiro cerrado, frio, chuva, vento, muito vento, como raramente o senti e que empurrava as nuvens à nossa frente, num cenário caótico!! Não se viam mais que 5 metros à frente, apenas o suficiente para vislumbrar o cor de laranja vivo das marcações impecáveis!! Vesti o impermeável, enfiei o gorro na cabeça para proteger as orelhas do vento cortante! Senti-me vivo ali em cima! Mais que isso, senti-me aumentado! Que saudades que eu tinha de um momento daqueles, agreste, rude, dificil, quase de sobrevivência!!
Susana Luzir. Não encontrei nenhuma foto mesmo lá em cima! Também não era fácil |
Um vulto chamou-me a atenção para um abastecimento que estava instalado num refugio de montanha, lá em cima, nos 1400m. Entrei lá dentro e o mundo parou. Quente, abrigado, com comida e bebida quente. Balbuciei qualquer coisa e levei dois bocados de banana à boca. Não queria estar ali, a vida estava lá fora! Bora descer!!!
Estávamos com 20km e 2750+ de subida. Que loucura! As pernas acusaram bem o desnível conquistado enquanto tentava atirar o martelo na descida, mas já não estava a dar. Com o dia plenamente ganho por aqueles minutos lá em cima, deitei a toalha ao chão e limitei-me a curtir a grande descida final. Antes de chegarmos ainda passámos por uma levada que entre diretamente para o meu top de melhores trilhos onde já passei! Que maravilha! Ou, como disse o Bastos, que Marãovilha!
Mais uma foto brutal da Susana Luzir, na tal levada. |
Cheguei à meta com 5h09 num respeitável 12º lugar, o que acabou por nem ser nada mau. Mas, mais que isso, cheguei à meta mais uma vez de alma cheia. É ali que eu gosto de estar, naquele fio da navalha lá em cima, adrenalina a bombar e sentidos apurados. Como diz o slogan da prova, no Marão Sky Up não se corre, vive-se!
Honestamente nem sei que escreva.... sempre que leio os teus relatos falta-me o ar!
ResponderEliminarParabéns por mais uma prova bem sucedida
Estou eu aqui a aproveitar a hora de almoço para beber o meu chá e tentar aquecer, mas com um relato destes, é impossível!
ResponderEliminarQue loucura, mais uma vez! Definitivamente, descobriste o teu lugar...
Não pude deixar de me rir com a foto do teu colchão! Isso sim, é luxo :) É levar o conceito de solo duro a solo mole... Confessa, gozaram muito contigo? Ou ficaram só invejosos? ;)
Apesar de ter consciência que esse tipo de provas não dão para mim, não deixo de me sentir fascinada por elas. Acho que a sensação no final, depois de ultrapassar todos esses obstáculos, deve ser mesmo incrível :) Sobretudo, quando dás tudo como tu deste!
Muitos parabéns pela tua excelente prova e por mais um relato que nos leva a andar pelos trilhos contigo :)
Muitos parabéns, Filipe... quem diria, há 4 anos, toda esta trajectória...impressionante!
ResponderEliminarAbraço
Parabéns Big Boss. Gostei de toda a descrição, principalmente "uma boa subida conquista me sempre" Aquele Abraço
ResponderEliminarAssim deixas me com saudades dessas subidas arrepiantes misturadas com as descidas que nos fazem tremer. A tua descrição poe-nos nos trilhos e em frações de segundos quase que parece que conseguimos sentir o vento a cortar nos as orelhas 😊 Desta vez no terreno só te apanhei ja quase a perder te no meu binoculo 👀 ... mesmo para quem acompanha do lado de fora o tempo também estava bem agreste. Resta me aplaudir aos sobreviventes deste dia. Parabéns Filipe e vemo nos no Pisão 😋
ResponderEliminarShow de bola! Mas uma leitura... Fantástica!
ResponderEliminarO que mais gosto e mais se nota quando leio o que escreves é a alegria que transborda da escrita.
ResponderEliminarPercebemos que é algo que gostas mesmo!
É continuar ;)
Abraço.
PS: O Nuno não foi à prova mas estão aí fotografias mesmo muito boas.
Simplesmente... top!
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