Este fim de semana dei início a um novo objectivo. Desta vez não tem tanto a ver com o lado desportivo, mas com tudo o resto que o trail oferece. A ideia é subir aos pontos mais altos de cada distrito de Portugal. Dito assim parece básico, e, na verdade enquanto estava a ver a lista reparei que já tinha subido a praticamente todos! Mas este projecto é mais que isso. A corrida tem que ser guiada por alguém local, que conheça a serra como a palma da mão, e as voltas não serão demasiado longas, a rondar os 25/30km, para permitir ter físico e disposição para a segunda parte: passear com a família.
O primeiro distrito escolhido foi o Porto, por razão nenhuma em especial. Marcámos uma estadia de três dias em Amarante e falei com o Bruno Silva, amigo e organizador do Ultra Trail do Marão, do Marão Sky Up e de outras 1001 actividades na sua serra. Conhece o reino do Marão como ninguém e, mais importante ainda, tem uma paixão por aquelas montanhas que é impossível esconder. Para lá, não sei quem manda, mas no Marão manda o Bruno!
Vista da Fraga da Ermida |
Às cinco e meia da manhã já o Bruno estava à porta do nosso Airbnb. Infelizmente teve um azar há duas semanas, caiu de bike e anda com um braço ao peito, não me vai poder acompanhar na corrida. Decidiu ir na mesma comigo, para me dar "assistência". Ainda lhe disse que não valia a pena, afinal eram só 27km e ele já me tinha dado um track, mas percebi logo que para ele qualquer desculpa para estar na serra é boa. Cumprimos os cerca de 15 minutos de carro até Ansiães, uma aldeia no coração do Marão, onde há uns meses iniciou o Marão Sky Up.
"Pronto, vais por ali, encontro-te a meio do PR6".
Uns minutos antes das 6 da manhã lá comecei. Se leram o artigo que escrevi em Novembro sobre o Marão Sky Up, devem lembrar-se da descrição que fiz da parte final da ultima descida. Escrevi na altura que tinha entrado para o top dos meus trilhos preferidos de sempre. Pois bem, fiz questão de lá passar de novo, desta vez a subir. A adrenalina e frenesim da descida da prova foram substituídos pela tranquilidade do nascer do dia, num trilho e numa serra só para mim. Uma maravilha de subida, pouco inclinada e muito variada, perfeita para trotar.
As marcações são do PR6, aconselho muito a visitarem! Está completamente limpo e transitável. |
"Porque é que quando tiras selfies ficas sempre com cara de quem avistou um javali?" Sara. |
Postal |
Patamar atrás de patamar, lá saí do PR6 e entrei numa zona mais despida da serra. Desta vez num trilho mais a pique, daqueles que se fazem com mãos nos joelhos. Continuava a correr na sombra, mas o sol, mais alto, já começava a iluminar um a um os picos mais altos que me rodeavam. Um privilégio estar ali àquela hora, completamente sozinho, com a serra só para mim.
À saída do PR6 |
Bem, não era só para mim. Estava lá o pastor do Marão, o Bruno. Depois de me encontrar a meio do PR6, voltei a vê-lo por duas ou três vezes, nos locais mais inesperados, já perto da Sra. da Serra. Lembrava-me mais ou menos desta subida, por a ter feito a descer no MSUP, mas nesse dia estava um temporal lá cima, não deu para perceber bem o quão espectacular era o trilho na encosta ao lado da Sra. da Serra, onde se avista a proeminência do pico.
Sra. da Serra lá em cima. |
O cume foi conquistado 10km depois da partida, 1140D+ desde Ansiães. A Sra. da Serra é o ponto mais alto da Serra do Marão e do distrito do Porto, aos 1418m de altitude.
Normalmente de poucas palavras, o ar sério transforma-se assim que entra na serra, mas foi ali em cima que vi o verdadeiro Bruno. Como quem mostra as divisões da casa nova aos amigos, apontou-me para todas as montanhas que a vista alcança a 360º . Num dia de visibilidade perfeita, conseguimos ver até à Serra da Estrela. Vimos a Sra. da Graça, o Montemuro, Alvão, Nevosa e os vários picos do seu Marão. Falou-me das subidas que planeia abrir e das outras linhas que só ele conhece.
Apontou-me o caminho a seguir, como quem traça uma linha imaginária pelas arestas e picos. Contou-me dos dois dias que passou a desbravar o trilho na crista que me levará aos Seixinhos e do miradouro da Fraga da Ermida, apenas uns metros abaixo da Sra. da Serra. Marcámos encontro para um colo, uns km à frente.
Fraga da Ermida |
Antes de partir, aconselhou-me a, quando estivesse na Fraga da Ermida, fazer uma pausa e aproveitar bem as vistas. Assim o fiz, depois de uma boa subida que me voltou a deixar muito perto dos 1400m de altitude parei para respirar fundo junto ao marco geodésico da Ermida. Pausei o relógio e sentei-me no marco, a absorver o que me rodeava. Impossível descrever por palavras a serenidade que é estar lá em cima, completamente sozinho, com uma vista que alcança centenas de quilómetros. É isto que faz valer tudo a pena.
Seguia-se agora o tal trilho que demorou 2 dias a abrir, uma maravilha numa aresta, sempre a subir e descer maciços de granito, com um precipício para cada lado.
A crista vista da Ermida. É claro que não pus um pé no estradão, imaginem uma linha a fazer a aresta toda. |
Quase no fim da crista. Lá ao fundo, o ponto mais alto é a Fraga da Ermida, de onde vim. |
No marco geodésico dos Seixinhos. |
Para descer dos Seixinhos até Mafómedes fui pelo trilho da Luzzzir, dedicado à fotografa por excelencia do Marão, a Susana Luzir. Tentem lá adivinhar porquê:
zzzzzz |
Abandonado o granito, este trilho foi todo feito em xisto solto, sempre aos zês para desfazer o desnível, num esforço muito maior do que fazia prever, já que ia constantemente a travar e a ajustar a direcção.
Mafómedes é uma aldeia embrenhada na serra. É lá que está a Tasca do Valado, restaurante do Ricardo e da Paula, amigos do Bruno, e um albergue para montanhistas. Foi lá que enchi os flasks e me demorei uns minutos à conversa com o Bruno, antes de atacar os 500+ que me separavam da descida final até Ansiães.
Uma parte da subida muito boa depois de Mafómedes |
Já no topo da subida, pelo Bruno |
Seis km separavam-me agora de Ansiães, cumpridos praticamente todos a descer. O Bruno, como sempre, apresentou-me o trilho que se seguia, o dos "4 javalis". Mais um filho dele, aberto de fresco. O final perfeito para um percurso perfeito. Descida toda cumprida dentro de um bosque, sempre à sombra, a passar por várias linhas de água, por um trilho que parecia que sempre tinha existido ali daquela maneira. Para mim, é isso que distingue um bom de um mau trilho. Os bons trilhos parece que fluem pela montanha, nada é forçado, é intuitivo, nem precisava de olhar para o relógio para saber por onde seguir.
Chegada a Ansiães. |
Foram 27km e 1760+, como podem ver aqui no Strava. Mas, mais que isso, foi exactamente aquilo que eu quero que seja este "projecto". Uma volta guiada pelo anfitrião que conhece a casa melhor que ninguém.
Mas, como expliquei logo no início do texto, havia muito mais para este fim de semana que uma corrida. Ainda não era 11 horas quando cheguei a Amarante, bem a tempo de organizar as tropas para um dia em cheio. Voltámos a Mafómedes, para a Tasca do Valado, do Ricardo, onde almoçámos no restaurante com melhor vista de Portugal, pelo menos até prova em contrário.
A Sara na Tasca do Valado. Lá atrás na montanha dá para ver os zês da Luzzzzzir! |
De seguida, mais uma vez aconselhados pelo nosso anfitrião, fomos até à praia fluvial da Póvoa, um tesouro de águas translúcidas escondido aos 1000 metros de altitude.
Mas o ponto alto do dia foi mesmo ao jantar, num sítio que permanecerá secreto a pedido do Bruno, comemos trutas do Marão! Apanhadas há umas horas, num sitio que mais familiar só se fosse na sala de jantar da cozinheira!
Depois de jantar ainda deu tempo de ir comer um gelado ao muito bonito centro de Amarante e ouvir um concerto de música clássica por um quarteto de clarinetes dentro da Igreja de São Gonçalo! |
A ponte e a igreja de São Gonçalo. |
Antes do regresso ainda deu tempo para uma corrida por Amarante, desta vez mesmo pela cidade. Decidi experimentar uma funcionalidade da Garmin que andava há muito para testar. Consiste em pedir ao programa para fazer uma rota, na distancia que quisermos a partir do ponto que quisermos. Ele utiliza os dados de milhares de corredores e manda-nos para os sítios mais populares. Foi assim que fiquei a conhecer a Linha do Tâmega, uma linha de comboio desactivada transformada em Ecopista. Uma volta de 12.5km muito agradável, onde fiquei a conhecer outra parte de Amarante. Podem ver aqui no Strava.
A ecopista do Tâmega. |
Para o regresso dividimos os quase 400km com várias paragens. Cruzámos o famoso tunel do Marão até ao Peso da Régua, onde não estávamos desde 2014. Depois pedimos ajuda ao Google e encontrámos uma praia fluvial na Serra do Caramulo, onde estivemos bem lá em cima. Finalmente passámos pela Serra da Lousã e tomámos um banho rápido na praia fluvial do Cabril do Ceira. Este foi, sem dúvida, o momento anti-climax. O local é lindíssimo, mas parecia a praia de Carcavelos! Nem tive coragem de tirar uma fotografia. Aconselho muito a visita, mas vão lá durante a semana, de preferência no Inverno!
À saída do nosso pitoresco Airbnb. Vejam o link que meti lá cima para mais pormenores. |
No Peso da Régua, à beira Douro. |
No topo do Caramulo, rio Dornas. |
Um início perfeito para este "projecto" que não tem prazo ou pressas. O nosso obrigado ao Bruno. Foste um anfitrião perfeito. Não deixem de estar atentos aos projectos que ele vai lançando, que vão ser muitos, parece-me!
Nove horas depois de sairmos de Amarante, chegámos a casa. Completamente estafados mas de coração muito cheio. Foi um fim de semana com tudo o que gosto e procuro nesta paixão, que é a corrida de montanha. Não são só os trilhos que vão ficar na memória. É o ar satisfeito do rapaz que nos serviu as trutas, é aquele primeiro vislumbre de água cristalina depois de 3km stressantes a andar de carro numa estrada de terra esburacada a seguir à Póvoa, a surpresa de ouvir musica clássica dentro de uma igreja lindíssima, o sorriso orgulhoso do Bruno enquanto eu lhe dizia o que tinha achado do percurso... É isso e tantas mais coisas que fazem tudo valer a pena. Mal posso esperar pelo próximo!
Strava: