As minhas corridas na estrada

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Estrelaçor - Trail Longo (40km) - Somos mesmo estranhos...

Nós somos estranhos. 

Às vezes lembramo-nos daquela corrida perfeita, de nos sentirmos bem, da temperatura ideal, a paisagem tirada de um postal... Mas isso é só às vezes. 

Quase sempre, quando vamos ao nosso arquivo de memórias, as primeiras a querer saltar cá para fora são daqueles dias terríveis, de quando batemos no fundo do poço e mal nos conseguimos levantar, quanto mais sair dele. Mas saímos. Invariavelmente saímos, e é isso que fica.

Foi assim este fim de semana. Hoje, mais de um dia depois, não é de descer a fundo o Vale Glaciar ou de conseguir trotar na calçada romana à saída de Manteigas que me lembro. É de estar aos 1700m, a levar com chuva horizontal que me picava na cara como agulhas, dobrado para a frente para não ser levado pelo vento, a tremer de frio e dentro de água até meio da canela. É esse momento, um dos piores que já passei a nível de clima, que hoje me deixa um sorriso no rosto. 

Pois, somos estranhos...

Foto do "Bué da Fotos".

A minha segunda prova da era DC (depois de Covid) foi na Serra da Estrela, mais uma vez organizada pelo Mundo da Corrida. Inserida num grande fim de semana de trail, que incluía os gigantes 180km, os 100km do campeonato nacional de endurance e do EstrelAçor fazia ainda parte uma prova de 46km, esta ultima sem Açor mas com muita Estrela. 

Primeiro: de louvar o gigantesco esforço do Mundo da Corrida para por esta corrida pé, ainda por cima uma semana depois de terem sido anunciadas novas medidas. Esteve em dúvida até uns dias antes, não imagino o esforço que teve que ser feito para organizar uma prova que passa por tantos concelhos. 

Segundo: a coragem de organizar estende-se à luz verde dada à prova de 46km. A previsão desde o inicio da semana era de temporal, o que se confirmou no dia. Quando cheguei às Penhas da Saúde às 7 da manhã e vi que a partida tinha sido adiada uma hora por causa da chuva temi o pior. Ali, aos 1500m, as condições eram dantescas. Cinco graus, chuva torrencial e vento muito forte. Foi precisa uma grande dose de coragem (e loucura) para mandar 100 pessoas para a montanha naquela manhã!

Terceiro: nem tudo correu bem com a organização. Mas já lá vamos...

Dentro do carro, à espera da partida, com os grandes João Miguel e Alexandre. Lá fora chovia a potes.

Passava pouco das 9 da manhã quando parti, inserido no meu grupo de 10 pessoas. Debaixo de chuva e muito vento, equipado condignamente, enfrentei os primeiros 3 ou 4km que nos elevariam à cota mais alta do dia, nos 1700m. À medida que subíamos, e relembro que começámos aos 1500, o tempo piorou de uma forma completamente brusca. Foi inacreditável. O vento aumentava de intensidade quando parecia que era impossível piorar, a chuva tornava-se mais pesada e, para piorar, corríamos constantemente com os pés de molho. Os trilhos eram autênticos ribeiros, muitas vezes com água pelos joelhos. O cenário manteve-se na Nave de Santo António, uma clareira plana que mais parecia uma lagoa gigante, corríamos literalmente com água pelo joelho! 

Retirado do Facebook da organização. "Foto do Zé" no trilho que saía da Nave de Sto. António.

A descida ao ponto mais baixo, Manteigas, continuou no majestoso e inevitável Vale Glaciar. Desta vez rejuvenescido pelas dezenas de cascatas que brotavam de ambas as paredes do vale. Lá em baixo toda a água se concentrava numa furiosa linha de água que nos acompanhava, com o som omnipresente de água a correr. Adoro, mas adoro mesmo, estar na serra com chuva. A agua dá vida à serra. 

A descida, metade em trilho metade em estradão, pedia velocidade. Assim foi. Ainda com pernas frescas meti ritmos impróprios (abaixo de 4, onde é que já se viu) que trataram de finalmente me aquecer os pés. Estavam uns blocos de gelo desde lá de cima! É claro que este entusiasmo todo ia ser pago lá para a frente, mas que se lixe. À medida que descíamos de altitude a temperatura aumentava, gostava de saber a amplitude térmica que apanhámos nesta prova!

Abastecimento em Manteigas. Toca de meter máscara, roubar meia banana e arrancar logo para a segunda metade da corrida. Tínhamos descido 18km, agora íamos subir 22!

Do "Bué da Fotos", à saída de Manteigas.

Tínhamos descido pelo fundo do vale, agora íamos subir do lado esquerdo, de volta às Penhas da Saúde. O início da subida foi pela calçada romana, um trilho que já conhecia. As pernas estavam um bocado perras do martelar da descida (cheguei aos 18km com média abaixo de 5'/km), mas decidi meter o trote no inicio da subida e ver até onde dava. Mais rápido ou mais devagar, com mais ou menos tricotar pelo granito, a verdade é que nunca deixei cair o trote! 

Estava a ficar entusiasmado com a minha prova. Como expliquei no post do Piodão, passei o verão praticamente parado por causa de uma porcaria de lesão, mas há coisa de mês e meio que tenho andado em crescente de forma e a sentir-me cada vez melhor. Este percurso acabava por ser perfeito para o actual momento. Pouco técnico e sempre corrível, deixava meter um ritmo muito certinho. Mas o percurso estava muuuuito longe de ser a maior dificuldade do dia.


Num estradão pela Serra. Do "Bué da Fotos".

Vou aproveitar esta parte da subida para explicar o que quis dizer com o terceiro ponto lá de cima, para não acabar o post numa nota negativa. Como disse, desde o início da semana que se sabia que no domingo estaria um temporal. A organização decidiu meter em acção o plano B e mudou o percurso do trail longo. O percurso passaria a ter 40km e 1650+ e já não subiríamos à Torre pelo Covão d'Ametade. Aliás, não subiríamos à Torre por lado nenhum! Na altura aquilo caiu-me mal, até fiquei com pouca vontade de ir! É claro que não demorei muito a perceber que a opção foi mais que acertada. O tempo estava mesmo muito agressivo e o trilho que sai do Covão é super técnico. 

Agora a parte má. Avisaram-nos que as marcações podiam falhar por causa do vento e chuva e aconselharam a levar o track no relógio. Ok, tudo bem. De facto constatei no percurso que as marcações estavam mesmo muito fracas e, verdade seja dita, tenho dúvidas que na maior parte dos casos tivesse alguma coisa que ver com o vento. Faltavam muitas vezes fitas em mudanças de direção e passei largas dezenas, até centenas de metros sem ver fitas. Mas ok, tinha track. Usei-o do inicio ao fim. O grande problema é que uns dias depois de enviarem o track com o novo percurso fizeram uma publicação no Facebook com uma TERCEIRA versão, a informar que seria o novo percurso. Mau. Saquei o track e meti-o no relógio, foi com ele que comecei a corrida. Felizmente não apaguei o outro, porque não demorei muito a perceber que não correspondia de todo ao que estávamos a fazer, tinham voltado à segunda opção sem avisar ninguém! 

Não sei quantas pessoas partiram, sei que chegaram 80 à meta, mas tenho a certeza que houve muita gente que se perdeu. É verdade, se calhar alguns deles nem se devem ter dado ao trabalho de meter o track no relógio, mas e aqueles que meteram o errado? Num dia com condições tão extremas ainda por cima a saberem que as marcações estavam fracas foi muito mau não terem reforçado a necessidade de o levar e pior ainda usarem uma versão que não a final! 

O segundo (e ultimo) abastecimento, nos Poios Brancos! Do Bué da Fotos.

Pronto, já tirei isto da frente. Também não pode ser só dizer bem!

Onde é que íamos? Ah, sim, na subida. Depois da calçada romana a subida tornou-se menos constante e inclinada, ia sendo intercalada com patamares planos ou a descer ligeiramente. O tempo, mais uma vez, piorou bruscamente com a altitude e acima dos 1500 tornava-se mesmo muito agressivo. Principalmente quando começámos a correr num planalto completamente exposto. O vento era incrível, houve alturas que tive dificuldade em manter-me de pé! 

Consegui sempre manter o trote nas subidas e correr no plano, mas, por incrível que pareça, NUNCA consegui aquecer! Estava constantemente com os pés dentro de água, com água empurrada pelo vento fortíssimo a entrar por todo o lado do meu impermeável. Corria literalmente a tremer o queixo, com as pernas tensas e perras. Nunca tinha sentido nada assim numa prova, normalmente quando corro o corpo aquece, mesmo naquelas segundas noites em que já nada funciona bem. 

O percurso, cruel, fez-nos percorrer um planalto muito exposto antes do culminar de 22km de subida, numa marco geodésico no Curral do Vento. Foi nessa ponta final, com o marco em vista, que passei o pior/melhor momento da prova. Meti o trote de lado, mãos nas coxas e dobrei-me todo para a frente contra o vento. Com os pés dentro de água até ao tornozelo, fui arfando e tremendo no meio do granito, a lutar com todas as forças contra um desconforto total e absoluto. Quando cheguei ao marco e vi os telhados das Penhas soltei um grito de raiva! PORRA, sentia-me vivo!!

Chegada à meta, num dos raros momentos em que o vento forte empurrou as nuvens e deixou brilhar o sol. Foto do Bué. 

Abriguei-me no secretariado e deram-me um copo grande de chá quente, mas estava a tremer de tal maneira descontrolada que não conseguia segurar no copo sem o entornar todo. Troquei umas palavras com o Hugo Água e o Orlando Duarte e fui a tremer para o carro, onde me vesti. Demorei pelo menos uma hora até me sentir minimamente quente! Lá fora a chuva caía cada vez mais forte. Fui vendo o pessoal a chegar, incluindo os meus companheiros João e Alexandre, todo uns verdadeiros vencedores que sobreviveram a um dos dias mais agressivos que apanhei numa prova. 

Prémios finisher do Piodão e Estrelaçor. Dos mais giros e originais que já vi!

O resultado final foi um "não tão bom como parece" 6º lugar, em 4h21 para os 41km com 1650+. É claro que este brilharete só foi possível porque não estavam lá muitas trutas. Mas fiquei muito contente por voltar a fazer uma prova a sentir-me em forma. Venha a próxima, seja lá quando e qual for!

domingo, 4 de outubro de 2020

Piodão Trail Running (25km) - Espera lá, isto foi uma prova?

Sete meses depois do Ultra Louzantrail, num mundo completamente diferente do de Março passado, foi dia de voltar a colocar um dorsal. O Trail do Piodão, inicialmente programado para Abril, seria o ultimo teste para o MIUT, que aconteceria 3 semanas depois. Neste universo paralelo a esse que deixámos em Março, o Trail do Piodão foi o dia de voltar a sentir o que é uma prova. 

Tirei esta foto no dia da Travessia Arganil - Manteigas, da estrada que vai para o Piodão. Não foi no dia da prova mas conta na mesma!

Antes de começar, um pequeno throwback. Lembram-se daquele dia na Serra da Arada? De como foi espetacular e a fundo e à antiga? Pois bem, foi um bocado de mais. As pernas, que já estavam ofendidas dos 66km que tinha feito pelas ruas de Almeirim na semana anterior, não aguentaram as descidas da Arada. Passei o limite e agarrei um porcaria de uma lesão na coxa direita que me atazanou o verão inteiro. Estive a pensar e a ultima vez que tive uma lesão foi em Junho de 2018! Na verdade, este era o fim de semana em que embarcaria nas segundas 100 milhas da minha vida, desta vez no Gerês. Inscrevi-me no primeiro dia! Enfim, 2020 a ser 2020... Depois de mês e meio em que fiz mais quilómetros a caminho da marquesa do que a correr, há duas semanas voltei a correr minimamente confortável. No entanto, foi só na sexta feira, a meio da tarde, que decidi ir ao Piodão, depois de trocar meia dúzia de mensagens com o João Miguel, que me faria companhia. 

O Piodão, também tirado no outro dia.

Nos nossos dorsais constavam duas informações diferentes do habitual: uma fazia referência ao uso obrigatório de máscara, a outra informava sobre a hora da nossa partida. 9:22 para mim. Estranho mundo novo...

Chegamos ao Piodão um bocadinho antes das 9. Equipámo-nos ao pé do carro no meio de tremeliques provocados pelos 6 graus que se faziam sentir na altura. Lá em baixo, no centro da vila, o Hugo Água dava ordem de partida ao primeiro bloco de atletas da prova dos 25km. Seguir-se-iam novos grupos de 3 em 3 minutos, ou o tempo suficiente para reunir 10 pessoas. Perto da meta um conjunto de atletas de máscara aguardava pacientemente que chegasse a sua vez de entrar no garrafão da meta. Um ambiente tão frio quanto a temperatura que se fazia sentir. Sem sorrisos nervosos, abraços ou aquelas conversas típicas de inicio de prova... Depois de ver o João a passar o controlo, foi a minha vez de entrar no bloco. Como um empregado de uma fábrica, piquei o ponto e juntei-me a meia dúzia de companheiros debaixo do pórtico. O Hugo, coitado, tentava dar a habitual animação ao momento, mas a solenidade da partida ficou no outro universo. Enfim, 9 e tal, depois de um 3, 2, 1 e uma buzinadela, lá partimos. 

1400+ divididos em duas subidas. Perfeito!

Duzentos metros depois, uma placa a informar que podíamos tirar a máscara. Assim o fiz, dobrei-a e guardei-a na mochila. De repente vi-me no meio dos corredores estreitos ladeados pelas casas de xisto do Piodão. As primeiras queixas das pernas enquanto subia a trote uma escadaria, o primeiro alívio quando abri a passada na descida, a primeira sensação de euforia quando entrei no espetacular trilho que nos levaria até à Foz d'Égua... De repente senti a necessidade de subir o ritmo quando o trilho limpava, de apertar a passada nas ligeiras subidas. Senti o pulso a subir e a respiração a ficar pesada. A adrenalina a subir, as curvas, as pedras, as árvores a arranharem os braços. Espera lá, isto é mesmo.....uma prova??

Terceiro km, Foz d'Égua. Base a primeira subida. Seguiam-se 7km quase sempre com desnível positivo, com passagem por Chão d'Égua, onde estava o primeiro abastecimento, no qual nem abrandei. Esta parte da prova era igual à que tinha feito em 2016 e 17, na distância ultra e ainda há 2 ou 3 meses lá tinha passado na Travessia Arganil - Manteigas, era a quarta vez que passava naquele estradão aos ésses, que nos levaria vagarosamente à cota 1300. Desde a primeira vez que lá passei sempre fiquei com a ideia que era uma excelente subida para fazer a trote. Mas por falta de pernas ou, no caso da travessia, economia de esforço, nunca tinha tentado ou conseguido. Desta vez não escapava. Meti um trote económico e tão constante como o desnível que nos embalava. As pernas foram-se soltando ao longo dos 4km e 500+ e cada vez me sentia melhor, à medida que ia passando companheiros. Seriam do meu grupo? Da distância ultra? De grupos que partiram à frente? Não faço ideia... Fui fazendo a minha corrida sem a menor noção da minha posição relativa. 

O estradão da subida. Tirado do Facebook da organização.

Lá em cima abandonámos o estradão e entrámos no trilho que nos levaria até Malhada Chã, em 5km de descida. A sensação de passar do trote e ter pernas para aumentar o ritmo na descida é impagável, as saudades que eu tinha! Ainda por cima fiz toda a descida completamente sozinho. Só eu, a minha respiração, concentração no trilho por vezes bastante técnico e o barulho da minha passada. Uma vozinha avisava-me para não abusar, é precisamente nas descidas que a coxa dá sinal. Portei-me bem, não fui à maluca. Apesar das pernas ainda terem reservas e a dor não ter aparecido sabia que as consequências apareceriam mais tarde. 

Visto no fim da primeira subida. Também tirada na travessia.

Início da segunda subida e fiz, pela primeira vez no dia, uns metros de subida a passo, num trilho mais inclinado. Quando entrámos num estradão parecido com o primeiro voltei a trotar em direção ao marco geodésico. As pernas continuavam lá, o que me muito me surpreendeu pela positiva, já que tenho treinado mesmo muito pouco. Virámos a ultima montanha e já se via Piodão lá em baixo, seguiam-se 5km a descer, metade em estradão metade em trilho. Desta vez as reservas já foram bem maiores que na primeira descida, já que a coxa deu sinal, mas mesmo assim foi a muito bom ritmo que fiz a descida final que me deixou no Inatel do Piodão, 2h41 depois!

Cruzei a meta ofegante, de máscara, e desliguei o relógio. Como expliquei lá atrás, fiz a prova em contra relógio, não fazia ideia se andava a ganhar ou a perder posições, mas isso não me impediu de deixar lá tudo! A classificação on-line esclarece que fiquei em 13º. Ok, eu aceito! 

A única foto do dia!

Mas se durante as 2h41 anteriores voltei ao mundo pré-covid, o ambiente na meta voltou a lembrar-me da nova realidade. Muito pouca gente, sorrisos e esgares de esforço tapados pelas máscaras... Sentei-me um bocado sem falar com ninguém enquanto esperava pelo João para poder finalmente extravasar um bocado a euforia que sentia. É essa a principal diferença neste universo paralelo. O convívio pré e pós prova desapareceu e isso faz muito mais falta do que eu imaginava!

Mas nem tudo é mau! A prova foi espetacular e soube-me pela vida voltar a sentir-me dentro da competição. Nunca pensei que me fizesse tanta falta, principalmente porque nunca competi com muito mais que eu próprio! Fez-me ver que é possível haver provas nesta merda de mundo novo, é possível alguma normalidade. As coisas hão-de voltar ao que eram, até lá vou aproveitar todas as migalinhas e fazer o que mais gosto: correr!

Link para o Strava.