Nós somos estranhos.
Às vezes lembramo-nos daquela corrida perfeita, de nos sentirmos bem, da temperatura ideal, a paisagem tirada de um postal... Mas isso é só às vezes.
Quase sempre, quando vamos ao nosso arquivo de memórias, as primeiras a querer saltar cá para fora são daqueles dias terríveis, de quando batemos no fundo do poço e mal nos conseguimos levantar, quanto mais sair dele. Mas saímos. Invariavelmente saímos, e é isso que fica.
Foi assim este fim de semana. Hoje, mais de um dia depois, não é de descer a fundo o Vale Glaciar ou de conseguir trotar na calçada romana à saída de Manteigas que me lembro. É de estar aos 1700m, a levar com chuva horizontal que me picava na cara como agulhas, dobrado para a frente para não ser levado pelo vento, a tremer de frio e dentro de água até meio da canela. É esse momento, um dos piores que já passei a nível de clima, que hoje me deixa um sorriso no rosto.
Pois, somos estranhos...
Foto do "Bué da Fotos". |
A minha segunda prova da era DC (depois de Covid) foi na Serra da Estrela, mais uma vez organizada pelo Mundo da Corrida. Inserida num grande fim de semana de trail, que incluía os gigantes 180km, os 100km do campeonato nacional de endurance e do EstrelAçor fazia ainda parte uma prova de 46km, esta ultima sem Açor mas com muita Estrela.
Primeiro: de louvar o gigantesco esforço do Mundo da Corrida para por esta corrida pé, ainda por cima uma semana depois de terem sido anunciadas novas medidas. Esteve em dúvida até uns dias antes, não imagino o esforço que teve que ser feito para organizar uma prova que passa por tantos concelhos.
Segundo: a coragem de organizar estende-se à luz verde dada à prova de 46km. A previsão desde o inicio da semana era de temporal, o que se confirmou no dia. Quando cheguei às Penhas da Saúde às 7 da manhã e vi que a partida tinha sido adiada uma hora por causa da chuva temi o pior. Ali, aos 1500m, as condições eram dantescas. Cinco graus, chuva torrencial e vento muito forte. Foi precisa uma grande dose de coragem (e loucura) para mandar 100 pessoas para a montanha naquela manhã!
Terceiro: nem tudo correu bem com a organização. Mas já lá vamos...
Dentro do carro, à espera da partida, com os grandes João Miguel e Alexandre. Lá fora chovia a potes. |
Passava pouco das 9 da manhã quando parti, inserido no meu grupo de 10 pessoas. Debaixo de chuva e muito vento, equipado condignamente, enfrentei os primeiros 3 ou 4km que nos elevariam à cota mais alta do dia, nos 1700m. À medida que subíamos, e relembro que começámos aos 1500, o tempo piorou de uma forma completamente brusca. Foi inacreditável. O vento aumentava de intensidade quando parecia que era impossível piorar, a chuva tornava-se mais pesada e, para piorar, corríamos constantemente com os pés de molho. Os trilhos eram autênticos ribeiros, muitas vezes com água pelos joelhos. O cenário manteve-se na Nave de Santo António, uma clareira plana que mais parecia uma lagoa gigante, corríamos literalmente com água pelo joelho!
Retirado do Facebook da organização. "Foto do Zé" no trilho que saía da Nave de Sto. António. |
Do "Bué da Fotos", à saída de Manteigas. |
Num estradão pela Serra. Do "Bué da Fotos". |
O segundo (e ultimo) abastecimento, nos Poios Brancos! Do Bué da Fotos. |
Pronto, já tirei isto da frente. Também não pode ser só dizer bem!
Onde é que íamos? Ah, sim, na subida. Depois da calçada romana a subida tornou-se menos constante e inclinada, ia sendo intercalada com patamares planos ou a descer ligeiramente. O tempo, mais uma vez, piorou bruscamente com a altitude e acima dos 1500 tornava-se mesmo muito agressivo. Principalmente quando começámos a correr num planalto completamente exposto. O vento era incrível, houve alturas que tive dificuldade em manter-me de pé!
Consegui sempre manter o trote nas subidas e correr no plano, mas, por incrível que pareça, NUNCA consegui aquecer! Estava constantemente com os pés dentro de água, com água empurrada pelo vento fortíssimo a entrar por todo o lado do meu impermeável. Corria literalmente a tremer o queixo, com as pernas tensas e perras. Nunca tinha sentido nada assim numa prova, normalmente quando corro o corpo aquece, mesmo naquelas segundas noites em que já nada funciona bem.
O percurso, cruel, fez-nos percorrer um planalto muito exposto antes do culminar de 22km de subida, numa marco geodésico no Curral do Vento. Foi nessa ponta final, com o marco em vista, que passei o pior/melhor momento da prova. Meti o trote de lado, mãos nas coxas e dobrei-me todo para a frente contra o vento. Com os pés dentro de água até ao tornozelo, fui arfando e tremendo no meio do granito, a lutar com todas as forças contra um desconforto total e absoluto. Quando cheguei ao marco e vi os telhados das Penhas soltei um grito de raiva! PORRA, sentia-me vivo!!
Chegada à meta, num dos raros momentos em que o vento forte empurrou as nuvens e deixou brilhar o sol. Foto do Bué. |
Prémios finisher do Piodão e Estrelaçor. Dos mais giros e originais que já vi! |