As minhas corridas na estrada

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Zela Ultra Marathon (55km) - RUDE.

Outubro de 2020. Foi a ultima vez que usei um dorsal. Foram praticamente 7 meses nos quais continuei a treinar com a frequência do costume, a ir para os quintais do costume, com a distância e intensidade do costume... Por outras palavras: foram 7 meses bem instaladinho na zona de conforto! 

Não me entendam mal, nunca deixei de correr pelo menos 6 vezes por semana e nunca falhei uma ida à serra ao sábado, por isso mesmo sentia-me confiante e em forma. Tão confiante que há uns dias, quando o João Miguel me disse que estava inscrito na Zela Ultra Marathon (já não se lembrava), eu nem pensei duas vezes em dizer que também ia! 

Não demorou muito... Ainda nem 10km tinha quando o Filipe de 2019 apareceu com ar de gozão na minha cabeça e disse "ah achavas que isto era só querer? Prepara-te e aperta o cinto, vais embarcar numa bela viagem muahahaha".

Yep.

Fotografia do Fritz escandalosamente cropada. Desculpa amigo, lá para a frente já a meto completa, só queria que se visse melhor a a cara de bebé chorão do Filipe de 2021.

5 da manhã e estávamos os dois a sair de Almeirim. Claro que, com toda a leviendade, achámos que era perfeitamente razoável fazer 250km para cada lado, com uma prova de 55km e 3600+ pelo meio, no mesmo dia. 

Sete e meia da manhã já estávamos em Vouzela. Céu limpo, moderadamente frio, parti com roupa suficiente e ainda bem que não cedi ao fresco da madrugada, o dia viria a aquecer. Mostrámos o equipamento obrigatório e partimos na terceira vaga, pontualmente às 8:06. 

A partida, super bem organizada, foi numa grid tipo F1. Aqui partiram os aviões da primeira vaga, eu estava lá atrás com o João Miguel pronto para a terceira. Foto do Fritz.

Tinha feito a distância de 42km há 3 anos, mas lembrava-me muito pouco do percurso. Em 2018 foi um dia muito chuvoso e fechado, não me consigo lembrar de quase nada. Antes da prova ainda subrepus os dois tracks e percebi que haviam alguns troços em comum na primeira metade, mas cerca de 30 ou mais km eram novos. Enfim, siga, era só mais uma ultra! [inserir aqui aquele emoji do boneco com a mão na testa].

Logo logo, a prova mostrou ao que vinha. Mal passamos o pórtico começamos a subir a pique. Primeiro em estrada, para não nos assustarmos, depois estradão e finalmente nos omnipresentes blocos de granito. As subidas invariavelmente tinham troços de escalada, com o devido alçamento de perna e utilização dos membros superiores para nos içarmos. As descidas eram quase sempre tão ou mais dificeis que as subidas, super inclinadas e muito técnicas. A progressão era lentíssima, portanto. 

Foto do Fritz, que mostra bem ao que íamos.

Sabem aquela sensação nas provas grandes de olhar a primeira vez para o relógio e ficar surpreendido por já terem passado 20 e tal km? Pois. Esqueçam. Comecei a olhar para o relógio logo aos 6km, aos 10 tive que olhar bem para tentar perceber se por engano tinha mudado as definições para milhas em vez de km. Juro! Sentia-me demasiado quente, com dores de cabeça e suores frios. Vi a coisa muito torta lá para os 15km, passou-me pela cabeça que talvez viesse de Vouzela o meu primeiro DNF!

O parte pernas era de uma violência brutal. As subidas nunca eram longas o suficiente ao ponto de entrarmos em modo subida e as descidas invariavelmente eram dificeis de mais para recuperar o que quer que fosse. Não havia cume nenhum nas redondezas onde não fossemos picar o ponto, saltitávamos de bloco de granito em bloco de granito por cristas cinzentas. 

Claro que tínhamos que ir lá picar o ponto.

O acumular de desnivel positivo seguia o ritmo dos km. Os 3000+ chegaram bem antes dos 40km e a cada escalada sentia-me mais proximo do limite. As cãimbras ameaçavam, até que me tive que sentar no chão para acalmar um quadricepe em pânico. 

Aos 43km, local do segundo e ultimo abastecimento (já vamos falar sobre isso daqui a pouco), estávamos com 3300+ e cheguei lá com 7h30. Apenas uma hora antes do corte! (também já falamos sobre isso). Por esta altura sabia que já não me escapava, até porque os restantes 12km seriam quase sempre a descer e tinha 2h30 para os fazer, mas claro que a descida não foi pêra doce. Não me lembro da ultima vez que tive que ponderar os tempos de corte!

Não era esta descida. Esta era fácil e foi no início. Mas queria meter esta foto do Fritz que está muito boa!

Os trilhos das descidas finais foram conquistados às encostas a toque de roçadora, não eram óbvios. O mato tinha quase sempre um palmo de altura e escondiam pedras, buracos e cepos de arbustos maiores que foram cortados. A concentração tinha que estar sempre ligada no máximo, o que, aliado ao desgaste brutal da prova até ali, tornava a situação muito perigosa. 

Cheguei à meta com 9h13 para os 55km e 3600+. Se eu alguma vez achei que ia apanhar uma dose destas... Foi no primeiro de Maio mas fartei-me de trabalhar! Adorei a prova, o percurso, todo o dia... Como disse no inicio, foram muitos meses na minha zona de conforto, da qual fui arrancado com toda a força. Já não estava habituado fisica nem psicologicamente a este tipo de provas, mas fez-me lembrar porque é que gosto tanto disto!

Outra do Fritz, que às vezes me obriga a correr nas subidas.

Agora, sobre a organização. Tenho lido por aí muitos comentários depreciativos sobre os abastecimentos, a dureza do percurso, os tempos de corte... 

Meus amigos, a sério? Estamos em 2021 e ainda não sabem ao que vão? Deixem-me só relembrar-vos que esta organização, a Spot Criativo, é a mesma que vos trouxe o inenarrável Pisão. A prova tem "sky" no nome, esta malta leva essa denominação a sério. As provas deles não são para qualquer um, ponto. Não quer dizer que qualquer pessoa não as faça, mas não são para o gosto de qualquer um. 

As marcações não são daquelas à prova de cegos, é preciso ir com atenção, mas não falham (eu nunca tive dúvidas no caminho). 

Os trilhos não são fofinhos, são rudes, selvagens, duros. Às vezes nem trilho há, são só algumas fitas que têm que ir seguindo. Convençam-se que vão subir a cada marco, antena ou pico que vejam pelo caminho, nem que tenham que descer imediatamente a seguir.

Os tempos de corte são apertados? Sim, são... O percurso é extremamente dificil e de progressão muito lenta, mas deixem-me lembrar-vos que o Carlos Ferreira, Jaguar, fez o percurso em 6 horas. Yep. Se não conseguirem cumprir é perfeitamente normal, isto não tem que ser uma coisa garantida. Faz parte do desafio. Ninguém quer uma medalha oferecida! 

Quanto à distância e número de abastecimentos, de facto, eram poucos. Apenas 2 para os 55km, um aos 22 e outro aos 43km. Talvez devido às regras mais restritas para evitar ajuntamentos, não confirmei isso, mas nas outras provas que fiz desta organização o número de abastecimentos foi sempre adequado. Mas a verdade é que todos sabíamos à partida quantos eram e onde estavam os abastecimentos, só tinhamos que nos preparar! Levavam mais comida, abasteciam em todas as fontes e ribeiros que fossem encontrando. Adaptem-se! 

Agora sim, a foto completa!

Está feita e doi-me o corpo todo. Objectivo cumprido! 


Link para o Strava.

9 comentários:

  1. Hehehe .. muito bom: Parabéns pela prova e por mais um excelente texto - já tinha saudades de correr contigo. No fim dizes tudo ... eu acho que foi muita gente sem saber bem no que se estava a meter. Como há falta de provas tudo o que aparece é siga e os "pormenores" não são tidos em conta. Azar!!! 55km não são iguais a 55km ... e é por isso que escreves (tecnicidade do percurso) que eu evito este tipo de provas ... o meu joelhinho não permite. Escolho outras ;) ...boa recuperação Filipe. Aquele abraço

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    1. depois de reler o meu comentário lembrei-me da Voltas dos Impossivel ... afinal meto-me em algumas ... seja o que o Deus Moutinho quiser ;)

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  2. Vasco Nunesmaio 04, 2021

    Parti na tua boX e segui-te à vista os primeiros 3 quilómetros! Estou plenamente de acordo contigo quando dizes que a prova tem o selo skyrunning! Treinei bem no entanto a realidade é que não é para todos.Nunca tinha feito esta prova e sem referência tentei perceber a tua abordagem inicial!Sou forte mentalmente mas sofri muito para ter o meu pé direito sem nenhum entorse afinal o meu ponto fraco.Cedo percebi que as barreiras horárias iam ser outra dor cabeça a juntar a tecnicidade do percurso .Ao km 43 passei as 8horas e cinco para terminar em 9h54! Bela narrativa que subscrevo e assino por baixo !Grande tareia e superação de todos os participantes afinal nós é que escolhemos as provas e por isso temos que aprender e aceitar! Parabéns pela prova um Grande Abraço da Vila de Sintra...até breve nos trilhos...

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  3. Parabéns! Mais uma belíssima narrativa, dinâmica que segue o trilho do monólogo ao diálogo fazendo participar este leitor nessa façanha, mesmo que sentado a tomar o café da manhã 🙈 Extraordinário. Obrigado.

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  4. Boas Filipe, parabéns pela superação! Também gosto muito dessas provas onde o homem da marreta está sempre presente,... Bons treinos!!

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  5. Filipe, muitos parabéns pelo texto e pela dura conquista!

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  6. Muitos parabéns por este texto e todos os outros que adoro ler!
    Andava super curiosa para fazer sky e escolhi os 21k desta prova para experimentar. Revi-me em tudo o que escreveste, apesar da distância ter sido bem menor. Eu sabia ao que ia e adorei. Também ouvi muitas queixas... inclusive do meu marido que só não me bateu naquele dia porque já não tinha forças para isso :)
    Corro há muito pouco tempo mas sempre que me inscrevo numa prova, venho aqui ver se já a fizeste e qual o teu feedback para ir lá "correr antes virtualmente". Relatos sempre fantásticos!

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  7. Já tinha saudades de ler uma crónica de uma prova tua!

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  8. A primeira coisa que pensei quando vi o teu post no facebook depois da prova foi: será que vai haver relato?! Pois claro que sim!

    Demorei uma semana para vir lê-lo, mas soube mesmo bem voltar a correr contigo, sentada aqui no conforto do meu lar :D

    Lá está, por tudo o que dizes, eu sei que isto é o tipo de provas que eu nunca farei... E está tudo bem. Sei as minhas capacidades e as minhas limitações. Sei que andar a trepar rochas não dá para o meu metro e meio. E está tudo bem. É pena é que a malta não páre um pouco para pensar, e depois critique as organizações!

    Pelo que dizes, foi uma excelente prova e acho que fizeste um excelente regresso. Imagino que esses trilhos "rudes, selvagens, duros" te tenham sabido pela vida :) Mas são só para quem pode... Parabéns!

    Ficamos à espera da próxima :)

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