Ora bem.. 300km de carro para cada lado, pagar inscrição, noite num hotel em Seia, refeições, etc, para correr 3.7km e subir 1000m na vertical.
Claro! Porque não?!
Este nosso vicio leva-nos a fazer coisas estranhas. Por exemplo, acho que ainda está para surgir o comentário a um trail que não inclua "eishh, aquela subida foi violentíssima, matou-me!!", no entanto, que atire a primeira pedra quem ao passar por uma qualquer montanha não pense "epah quem me dera sair do carro e subir aquilo tudo de uma assentada!". Para quem não padece do nosso mal soa ridículo, eu sei que sim! Mas há coisas mais fortes que nós, como a Serra da Estrela! Está certo, não é preciso ir longe para encontrar picos que envergonham o nosso, mas em Portugal Continental é o mais alto! Qual de nós não fez as famosas viagens de fim de semana com os pais à Serra? Fazer sku, ver os cãezinhos, moldar pseudo-bonecos de neve e chegar ao carro com as calças de ganga todas molhadas. Todos nos lembramos daquela escalada infinita no banco de trás do carro dos nossos pais, com uma montanha imponente do lado direito e um precipício do lado esquerdo, as varolas amarelas e pretas e o desejar a todos os santos que haja neve lá em cima. Admitam ou não, a Estrela é mítica e faz parte da nossa memória colectiva. Agora propõem-me um assalto à Torre numa escalada épica a correr?
Com organização de um ícone do trail nacional, Armando Teixeira, teve lugar este domingo a edição zero do quilómetro vertical na Serra da Estrela. A proposta era vencer um desnível positivo de 1000m numa extensão de 3.7km. Para os poucos que estão a ler isto e não estão dentro do assunto, é mais ou menos o equivalente a subir de uma vez 300 pisos de um prédio. Sim, pela escada... Feitas as contas, enfrentaríamos uma rampa com cerca de 30% de inclinação. Os números assustam, é verdade, e foram estes números que me aguçaram a curiosidade. No entanto, depois de vencida a rampa, cheguei à conclusão que há mais no km vertical do que números. Pelo menos neste houve.
Depois de uma noite na excelente Quinta do Crestelo, em Seia, às 9:30 lá estávamos os 3 em Alvoco da Serra prontos para a partida. Já agora, para mim, que incluo sempre um programa familiar nas corridas que vou fazendo, é ouro sobre azul quando a organização tem alguma espécie de acordo com alojamento perto da meta. É verdade que muitas têm, mas raramente valem a pena. Não foi este o caso, a noite no hotel passou de uns impraticaveis 48 para 30€! De certeza que o meu caso não é único e acho que este é um aspecto que as organizações devem cada vez mais ter em atenção.
Bem, mas voltando à prova, às 9:30 lá estávamos para nos encontrarmos com mais dois Almeirinenses e os outros 76 atletas. No briefing curto, o muito simpático Armando Teixeira informou-nos que antes de iniciarmos a prova percorreríamos cerca de 1km numa partida simbólica, até à base da parede. Falou-nos ainda um pouco do percurso e das marcações. Retive a seguinte frase: "o percurso está marcado com setas e algumas fitas. Em caso de dúvida... é pra subir!" :)
Deixa lá ouvir o gajo. |
Percorridos os 1000m, chegámos ao que ele chamou Jardim do Alvoco. Aqui começaram as novidades para mim. Ao contrário da partida tradicional, esta foi dada dois a dois, com cerca de 30s de intervalo. Neste tipo de prova curta, pareceu-me excelente ideia. Apesar de sermos poucos, aposto que os primeiros metros seriam todos em fila indiana. Desta maneira fomos sempre com alguém no horizonte, mas sem nunca causar constrangimentos.
Jardim do Alvoco, Uma pequena clareira no sopé da montanha. |
Se no trail ainda sou um novato, neste tipo de prova estava absolutamente a zero. Nos trilhos, o instinto diz-me para me poupar nas subidas. Ok, mas aqui vou poupar-me para quê? Já o equipamento, no outro dia fiz aqui uma lista extensa do que uso. Mas só vou correr 3.7km, será que é mesmo preciso aquela tralha toda?? E o tempo que vou demorar? A minha táctica é ir ver a edição anterior, ver o tempo que fizeram no meio da tabela, e assumir que não vou ficar muito longe disso. Normalmente resulta! Mas....estávamos na edição zero! Era como eu, estava a zero! Bem, feitos os cálculos mentais e ponderado o factor cagaço, decidi levar a mochila de hidratação com 1l de água e os bastões. Quanto à táctica decidi ir percebendo o que as pernas me diziam e improvisar pelo caminho. O tempo para chegar lá acima? Oh, logo se vê!
Outra novidade, em vez das habituais marcações km a km, esta era pelo desnível positivo! |
O Armando avisou-nos que os primeiros 900m seriam enganadores, que a verdadeira parede surgiria a seguir, com 2.8km e 850d+. Decidi seguir o conselho dele e não abusar nestes primeiros 900m. Ok, decidi isto antes da partida! Assim que chega a minha vez de partir o "Espirito dos 10km" (aquele que nos empurra para um 1º km de nivel Kenyano nas provas de 10km de estrada), há muito desaparecido, reaparece e desato a saltitar de rocha em rocha por ali acima!
Tumba tumba tumba, eia caraças, pareço o Killian, estou imparável!! Tumba tumba tumba, mais um saltareco, alça a perna, mais dois passos ligeiros e..... elaaaaahhhhh - pulsação a mil, pulmões a saltarem pela boca, respiração ofegante! Ui, o que vale é que já devo ir a meio! Claro.. a meio dos primeiros 400m.... Rapidamente deixei de me armar em parvo e adoptei um ritmo confortável e constante. Demorei algum tempo a recuperar o fôlego. É verdade que comecei ambicioso de mais, mas acho que mesmo a começar devagar demoraria algum tempo até encontrar o meu ritmo. Afinal de contas, começamos a trepar completamente a seco!
Quando cheguei aos 900m já me estava a sentir bem, mas a prova só começaria ali. Nesse ponto, no meio da encosta, estavam umas 30 pessoas da organização, bombeiros, caminhantes, escuteiros, etc, que puxavam por nós. Os gritos acordaram o Espírito dos 10km, mas eu rapidamente amansei-o. Foi nesta altura que afinei a minha simples "táctica" - passo confortável e constante. O importante era não parar ou abrandar. Primeiro porque quebraria o ritmo, e depois porque há medida que subíamos, o ar ficava cada vez mais frio, e transpirado como estava arrefeceria muito depressa.
Ainda consegui tirar umas fotos. Aqui foi pouco depois dos 900m. |
Os 2.8km, ou melhor, os 800m d+ seguintes, infelizmente não têm grande história. As rampas eram enormes e cada uma mais empinada que a anterior. Uma espécie de Diana em esteróides. Os músculos andavam perto da combustão, estava ensopado em suor e com respiração ofegante, mas cada vez que passava por uma placa com mais 100d+ ganhava novo fôlego. Corremos por baixo, no meio e finalmente por cima das nuvens. Com calor e com frio. Em troços de tufos macios e por cima de rochas à altura da cintura. A subir, subir, subir... Estava a divertir-me como um miúdo! Às vezes entusiasmava-me e desatava a correr por ali acima, mas era sol de pouca dura, logo a subida me punha no lugar. A certa altura vejo a placa dos 900d+. Mas mas mas..ainda agora comecei! Olhei para o relógio e já ia quase com uma hora! Como é possível, não dei pelo tempo a passar! Apertei um bocado depois dos 900d+, até que comecei a ver o pórtico de chegada.
Como sempre, lá estava a Sara e a Maria Amélia à minha espera. Passei os bastões para uma mão e desatei a correr para ficar bem na fotografia!
Passei a meta 1 hora e 4 minutos depois de partir, o que como sempre me colocou a meio da tabela. Se foi bom? Não sei.. O que sei é que depois de cortar a meta fiquei com um amargo de boca. Ok, a subida foi brutal, super divertida e dura, mas...acabou tão depressa! Quer dizer, uma pessoa mete-se em coisas destas espera pelo menos uma pequena parte de sofrimento e superações épicas! Mas não..hoje foram só boas sensações, diversão, boa disposição...bah! :)
Da próxima vez levo esta peça de equipamento, já deve puxar mais pelo cabedal! |
Agora mais a sério. Foi uma experiência nova que já queria fazer há algum tempo. Toda a gente que anda nos trilhos devia experimentar uma vez, porque é completamente diferente do habitual. É quase como um maratonista que vai fazer uma prova de 10km! Uma dose grande de adrenalina, mas acaba depressa de mais. Agora é hora de voltar aos treinos, o próximo desafio está quase aí - Trail Serra da Lousã (42km). Aposto que esta vai ter mais drama!
Como sempre relato magnifico continua ....
ResponderEliminarAté dá vontade de experimentar :)
ResponderEliminarExcelente descrição da prova.
Um abraço.
João, runjoaorun.blogspot.com
Um dia tenho que experimentar esta coisa do km vertical...era moço para ficar no fundo da tabela, mas chegava lá ;)
ResponderEliminarAbraço
Não ficavas no fim da tabela de certeza eheh não é assim tão dificil como parece. Claro que se apanhássemos este monstro a meio de uma ultra era o fim do mundo, mas assim é diferente. É um bocado como nas provas de 10km, vais em agonia mas sabes que está quase a acabar então dás o litro eheh Tens de experimentar, vale bem a pena!
EliminarEssa zona de Alvoco da Serra é muito bonita!
ResponderEliminarBrindaste-nos com mais um excelente relato desta curiosa prova que, suspeito, irá ter grande incremento de participação nos anos vindouros.
Já agora, sabes a razão porque se chamou edição zero?!?
Um abraço e parabéns!!! :)
Ihih gosto muito dos teus relatos. :)
ResponderEliminarFazer 300km para cada lado para subires 3km é de atleta! E 1hora... Nem tinha noção!!! Eu ainda devia por lá andar, nesses 900 metros... :D
Por acaso, e sendo na minha Serra, com casa lá e tudo, é coisa para "um dia" experimentar...
Parabéns!
Epa Filipe ler um post destes sobre 3,7km é qualquer coisa! Tens um jeito nato para "blogares" :)
ResponderEliminarParabéns pela prova, eu simplesmente não era capaz, fazia tudo a passo provavelmente :D
Um abraço!
PS: Mudei o link do meu blog, agora é português :) http://aquelequegostadecorrer.blogspot.pt/
Por motivos profissionais não me foi possível ir. Mas um dia quero experimentar. E como não tenho pressa vou esperar pela edição 1, pois com a chancela Armando Teixeira valerá bem a pena.
ResponderEliminarQuanto a ti, muitos parabéns e boa recuperação!
(Deves estar com um andar sexy, não??!!)
Parabéns!
ResponderEliminarAquela maquina!
Também já fiz km verticais e são um espectáculo!
Aquele abraço.
A zona de Alvouco da Serra é bonita e muita dura! Imagino a parede... Um abraço
ResponderEliminarOlha que ideia gira!!! Gostei!!! :)
ResponderEliminarNem faço uma pequena ideia do que tu subiste Homem!!!
Nem nunca fui á Serra ahah .... como é possível não é?! :D
Beijinhos
Largaste o Kiliian em ti!
ResponderEliminarJá tenho lido sobre este tipo de prova, até porque no estrangeiro lá fora são famosas mas cá não sei de outra mas se calhar até existe.
Definitivamente a fazer, quem sabe na edição 1.0, agora que fizeste o favor de a testar :)
Abraço