As minhas corridas na estrada

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

VII Trail Nocturno da Lagoa de Óbidos (58km)

O Trail Nocturno da Lagoa de Óbidos é especial, ponto. Bastaram-me duas participações para perceber isso. Não é a mais longa ou a mais difícil, não é a que tem mais trilhos técnicos ou paisagens de cortar a respiração. Tem muitos estradões e, hajam pernas, até pode ser feita praticamente toda a correr! Então porque é que uma corrida que parece não ter nada a favor é tão especial?


Antes de mais, é especial porque Óbidos é uma vila especial. Começa por o ser quando ainda vamos na auto-estrada e vemos as muralhas que envolvem um sem fim de ruas estreitas e desorganizadas dispostas numa encosta, como se o projecto de urbanismo se baseasse num rabisco de uma criança. Lá dentro, milhares de pessoas literalmente vestidas a rigor alinhavam no ultimo dia da Feira Medieval que se realiza anualmente. Escudeiros com espadas de madeira, videntes, bruxas, bobos de corte  e guerreiros com focos de 200 lumens na cabeça vestidos com t-shirts fluorescentes misturavam-se todos criando um espectáculo esquizofrénico. Comigo viajou um portentoso contingente de 6 cavaleiros e 2 damas, da corte almeirinense, distribuídos pelas 3 distancias da batalha nocturna de Óbidos (55, 25 e 10km). Eram 20 horas quando acabámos de nos equipar no sobrelotado parque de terra fora das muralhas e nos dirigimos para o Jogo da Bola, local de chegada e de concentração para a partida.

Uma parte dos almeirinenses presentes, incluindo a Sara que se estreou nos trilhos!
Foi lá em cima que nos juntámos aos outros mil e tal atletas que esgotaram as inscrições do UTNLO em poucas horas. Os cerca de 30 minutos que aguardámos pela partida simbólica que nos levaria de novo à entrada da muralha foram suficientes para encontrar dezenas de caras conhecidas, incluindo uma grande parte da elite do trail nacional. A inclusão no circuito nacional de Ultra Trail da ATRP e a organização a cargo de decanos da corrida de montanha ajudam, mas é mais do que isso. Ninguém quer perder esta prova. Este ano havia a novidade das partidas conjuntas, o que resultou numa moldura humana impressionante na zona dos pórticos, mas que na minha opinião infelizmente tirou a diversão da partida simbólica. Era demasiada gente, acabámos por percorrer os 500 metros a andar quase em fila indiana.

Congestionado
A partida foi dada às 21:30 em sentido contrário ao do ano passado. Os primeiros 10km foram numa zona completamente nova em relação a 2014. Aliás, contas por alto, diria que cerca de 80% do percurso era diferente. A julgar por estes primeiros quilómetros a mudança estava a ser muito positiva. Muitos trilhos abertos de fresco, boas (mas curtas) subidas, descidas rápidas e em trilhos, passagens por túneis, outras por baixo dos grandes viadutos da A8, sempre muito rolante e divertido. Enquanto corria lembrava-me da Sara que vinha lá atrás na sua primeira incursão nos trilhos, na prova de 10km. Estava a ser uma amostra excelente!

Aspecto caótico na partida
A noite estava fresca, já tinha saudades de correr sem estar dentro de um forno. Sentia-me muito bem e várias vezes controlei o entusiasmo para não estragar o que podia ser uma boa corrida. Até aos 20km, onde estava situado o primeiro abastecimento, o percurso foi excelente. Algumas zonas em comum com o ano passado mas principalmente trilhos novos a estrear iluminados por um luar brutal. Nas passagens pelas povoações aproveitava para desligar o frontal e poupar pilhas, mas deixei de fazer isso quando percebi que era impossível orientar-me sem a luz a reflectir nos pequenos quadrados colados para nossa orientação. É o único reparo que tenho a fazer quanto à organização, as marcações. Talvez por estar mal habituado, mas perdi a conta às vezes que parei com dúvidas de qual o caminho a seguir. Tenho por sistema parar assim que tenho dúvidas, por isso acabo por não fazer muitos metros a mais, mas fui-me cruzando com muita gente desorientada. Enfim, nada de grave. Pelo menos durante a noite, não quero imaginar o pesadelo que terá sido ao pessoal que chegou de dia seguir as marcações!

Um dos tuneis onde passámos (estava seco)
O primeiro abastecimento sólido foi aos 20km, não parei no primeiro de líquidos aos 12. Mesas muitíssimo bem apetrechadas com o essencial e vários brindes, como melancia (não dá para tornar a melancia um alimento obrigatório em todas as provas?) e mini filhoses que comi que nem um alarve e ainda levei 3 ou 4 na mão para a viagem até ao próximo abastecimento.

Estes 12km, apesar de completamente novos, voltaram um bocado à matriz do ano passado: muitos estradões, algum alcatrão e quase sempre possível de fazer a correr. Foi talvez a parte mais desinteressante do percurso, mas felizmente sentia-me muito bem e os quilómetros passaram depressa, como podia comprovar nas placas informativas colocadas pela organização. Nelas podíamos ver a distancia (em contagem decrescente) para o próximo abastecimento e para Óbidos, um luxo, e ainda por cima batia certinho!

A caminho da praia
A chegada à praia foi coincidente com o abastecimento no km 32. A secção nas praias é a que marca o UTNLO. Quase como as arribas estão para o Monte da Lua, um daqueles factores que tornam a prova especial. Este ano a organização arriscou e cortou a secção pelo meio, só fizemos a segunda metade. Na pratica cortaram um segmento inicial de sobe e desce de dunas e deixaram a parte mais interessante e técnica, nas arribas. A consequência foi chegar às arribas menos cansado, o que permitiu desfrutar daquele cenário inigualável muito melhor. Acho que é de elogiar uma organização que tem a coragem de mexer com o ex-libris de uma prova com a convicção de que estariam a proporcionar uma melhor experiência aos atletas. Para mim, aposta ganha! Desfrutei muito mais da zona, senti-me bem e com o entusiasmo ainda acelerei um bocado. A luz da lua deixava o mar perfeitamente visível e reflectia na rocha clara desgastada pelas ondas, corríamos numa espécie de lusco fusco o que tornava a coisa ainda mais especial. Mais uma vez fiquei com a impressão que valeu a pena só por aqueles quilómetros.

O prato seguinte era outra secção marcante, e que até dá nome à prova: a Lagoa de Óbidos. São 10km planos, numa ciclovia que circunda a lagoa. Levei estes quilómetros na cabeça desde o início, sabia que era essencial chegar lá com pernas para o desafio psicológico que é ver a meta e saber que só lá chegaríamos uma hora depois. Foi assim, determinado, que percorri os 10km. Distraído por um concerto de HMB que estava a acontecer na Foz do Arelho e maravilhado pela luminosidade provocada pela lua gigante, cheguei a correr alguns quilómetros com o frontal desligado. Foi importante saber o que me esperava porque fui um pouco abaixo aos 5 ou 6km, mas sabia que dali a um quilómetro tinha que passar por um trilho no meio do caniçal que me obrigaria a andar uns 200m, por isso forcei até lá. Acabei por correr sempre a um ritmo a rondar os 5:30min/km, nada mau para quem já tinha quase 50km nas pernas!

Lagoa de Óbidos
O abastecimento surgiu aos 50km, a 8 da meta. Como sempre, muito animado, com muita gente, boa disposição e variedade de comida e bebida. Comi pouco, enchi os depósitos de água e segui caminho, já cheirava a meta!

Também esta secção final, com excepção dos últimos 3km, estava completamente mudada em relação a 2014. O ano passado penei muito naqueles últimos 3km, por isso este ano estava concentrado em percorrer o mais depressa possível os primeiros 5 e despachar aquilo de uma vez. Claro que só consegui isto porque estava num bom dia (ou noite) e ainda tinha pernas que me permitiram rolar sempre a bom ritmo. Foi nesta altura que pela quarta vez, sim QUARTA, fiz uma paragem técnica! Não sei se será do ar de Óbidos, mas este ano foi mais um caso sério de adubanço de pinhal. O que vale é que aprimorei bastante a minha técnica de cagar no mato à noite!

Tal como me lembrava, os últimos 3km mostraram mais uma face do UTNLO. Subidas a pique com cordas, descidas difíceis, parte-pernas à lá Abutres. Sempre que apanhava um troço que desse para correr metia o turbo. A analisar o track do garmin vejo que o meu pico de velocidade foi atingido aqui! Comecei a entusiasmar-me e a divertir-me muito naqueles trilhos técnicos, já fazia as subidas a correr e tudo eheh Quanto dei por mim já estava na base do castelo e só faltava a escadaria para o assalto final. Aquilo que o ano passado me custou tanto, desta vez fiz em passo de corrida e com um sorriso nos lábios! Incrível, há dias em que corre tudo bem!

Cheguei lá acima com 7h17 de prova para os 58km e 1500D+. Um tempo modesto, nada de especial. Mas fiquei super satisfeito porque me senti muito bem e acabei com força. Depois de ter sofrido tanto no Louzan e no Monte da Lua precisava de um boost de confiança como este. Assim que cheguei fui direito à mesa da comida, mas este ano nem toquei na sopa que estava muito calor. Estive um quarto de hora a enfardar melancia até ficar a deitar pela boca! No fim um banho quente nos muito bons balneários à nossa disposição e fiz-me à estrada até Almeirim com a Sara, que umas horas antes tinha completado a sua primeira prova em trilhos!

Na chegada, ainda a recuperar o fôlego
Quanto à prova, não precisava de ir lá uma segunda vez para comprovar que é realmente uma prova especial. Sim, é muito rolante e não tem altitude, mas também tem secções técnicas, trilhos corríveis, passagem por povoações, tem a praia, a lagoa, tem Óbidos e, acima de tudo, tem um grupo de fiéis que esgotam a prova em poucas horas e que dão um ambiente espectacular a esta corrida. Para o ano, no dia 1 de Junho à meia noite, lá estarei eu à frente do computador para me inscrever na oitava edição desta excelente corrida.

Já tenho para os amendoins e nozes, falta um para os pistachios 

   

11 comentários:

  1. Maurício Marquesagosto 03, 2015

    Olá Filipe, uma vez mais. (Já me estou a habituar a isto e isto de partilhar comentários sobre provas, mesmo com distâncias distintas, é algo de solidário / de espírito de pertença que nos trás boas sensações, na continuidade das da corrida).
    Mais uma tua fantástica prova, pondo em prática o maior trunfo de todos em provas longas: a gestão do esforço. Não é à toa que a idade média dos (bons) praticantes deste tipo de modalidades não está abaixo dos 30 anos (aposto que acima dos 35!). Acabar bem uma prova, a um ritmo estável e até com o sentimento de que foi melhor a segunda parte, por comparação com a primeira, é uma vitória maior que quaisquer 20 lugares acima na classificação ou 10% a menos no tempo de chegada. Ficamos com a boa sensação de que estamos "a crescer" ("até podia ter feito melhor / corria mais!", é o que dizemos a nós próprios vezes sem conta).
    Quanto à prova, ela é, de facto, especial: Óbidos, misticismo, noite, luar, lagoa, aderência e organização. Achei particularmente engraçado, na base das subidas, a organização ter afixado cartões com um caracol a dizer "calma pessoal!". E o "top" (como dizem os meus amigos acima do Mondego) foi encontrar uma placa com um "Cuidado: Raposa!", para reavivar a concentração dos mais exaustos. Acho que a raposa foi quem teve cuidado... connosco!
    Falo da prova dos 25 que achei formidável no percurso - tipo "CCC" ("Corrivel, Com Cordas!) - e impecável nos abastecimentos (a simpatia dos feudais dos sólidos no km 17 foi inexcedível!).
    Para o ano, inscrevo-me na ultra! A 1 de Junho. E depois... é voltar a habituar-me às directas... Bons treinos, boas corridas!

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    1. Também fiz os 25K e subscrevo tudo o que diz, Maurício. Continuo a achar incrível como o Filipe vai registando na mente certos pormenores para depois aqui os relatar. Parabéns a ambos! E vou continuar a acompanhar o Quarenta e Dois nas provas em que participo e nas que não faço, para saber como foram :)

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    2. Maurício Marquesagosto 05, 2015

      Obrigado Nelson! Parabéns também pela tua prova! Também acho admirável esta memória visual do Filipe (mesmo de noite!...) e só revela uma coisa: forças ainda para desfrutar da paisagem mesmo em ultras!!! ;)

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  2. Muitos parabéns a ti, Filipe, mas especialmente à Sara pela sua estreia :)
    Ficamos a aguardar o eu relato!

    Um abraço

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  3. Parabéns Sara!

    E sim, Filipe, parece que estiveste bem ;)

    Gostei do pormenor de já teres saudades de não correres num forno, como te percebo e eu não faço ultras :)

    Abraço

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  4. Parabéns Filipe pela prova, e parabéns também à Sara, pelo que entendi terá sido a estreia dela em provas de trilhos

    Abraço

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  5. Pummm!! ganda tempo !!
    Se dizes que é "modesto" e "nada de especial" , então o que será quando estiveres mesmo contente com um tempo ! eheheh ;)

    Muitos parabens Filipe , grande prova , e grande relato.

    Tambem considero a prova de Óbidos "especial"... a mim tem-me vencido aos pontos...á 3 anos que lá vou (no primeiro á de 26k) , e sou sempre trucidado! :)

    mais uma vez muitos parabens Filipe

    abraço

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  6. Excelente relato como sempre e parabéns pela prova Filipe!

    Fica mais uma para a lista de trails que poderão ser indicados quando me apetecer aventurar na modalidade :p

    Fui à feira medieval no sábado, ainda vi lá e falei com umas caras conhecidas, mas a ti ainda não foi desta que te encontrei!

    Um abraço!

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  7. Filipe, concordo contigo. Esta prova teve muito bons abastecimentos e o percurso é interessante qb, zonas corríveis, algumas subidas inclusive com cordas. Adoro correr à noite e adorei estar a correr e o dia a nascer.

    Não querendo referir aqui no teu blogue os factores que contribuíram para que eu nunca mais volte a esta prova, quero apenas dizer que a sinalização era de facto fraca. De noite por várias vezes andámos um pouco à nora, aos "apalpões" a tentar perceber por onde seria o caminho e de dia...de dia tivemos que redobrar a atenção pois era praticamente impossível descortinar as fitinhas minúsculas. Dá mesmo a impressão que quiseram poupar na sinalização...

    Parabéns por mais uma excelente prova! Achas esse tempo modesto? Mas todos concordamos que é um tempo brutal!!!! =)

    Até à Rocha da Pena!

    Beijinhos

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  8. Muitos parabéns, Filipe, pelo teu tempo "modesto"! ;)
    Concordo com as sinalizações, embora ache que este ano as tenha posto ligeiramente maiores, porque do que me lembrava de anos anteriores eram quadradinhos minúsculos! De qualquer forma, e sabendo que as 10h de tempo limite já iria implicar correr de dia, devia ter-se reforçado a sinalização nos kms finais. Ver aqueles adesivos durante o dia? Esquece... :)
    De resto, e apesar de algumas situações menos felizes, continuo a achar que é uma prova especial. Correr à noite, junto à Lagoa, com aquele luar, foi um espectáculo.
    Parabéns à Sara também!! Tens de partilhar como correu e o que ela achou! :)
    Beijinhos

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  9. Gostei daquela parte da descarga; por isso pergunto; onde fica a parte de trás da árvore?
    Chico

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