Acho que é inegável que vivemos numa época de ouro do trail em Portugal. Sim, do trail. Durante algum tempo fiz tudo por resistir ao inglesismo e insisti em chamar-lhe corrida de montanha, mas acho que nem é justo para as antigas corridas de montanha estarem metidas ao barulho, até porque muitas vezes os trails que se fazem só com muito boa vontade se podem considerar na montanha. Esse, o trail, existe em Portugal há pouco mais de dez anos e quer eu, que ando nisto há meia dúzia de anos, quer aqueles que começaram em 2018 estão a experiênciar o nascer de uma nova modalidade desportiva no nosso país. Tem sido exponencial de ano para ano o surgimento de novas provas. Umas morrem, outras criam raízes. Temos assistido a verdadeiras loucuras nas corridas a inscrições, mesmo com preços muitas vezes proibitivos. Há muitos que vaticinam a insustentabilidade disto, que são provas a mais, que o pessoal não pensa no futuro, que mais ano menos ano já ninguém liga ao trail. Não podia estar menos de acordo. Adoro ver o dinamismo deste desporto pelo qual me apaixonei. Adoro descobrir novas provas e organizações e com isso novos recantos do nosso país. Adoro que se arrisque na criação de novos desafios e sentir a dedicação das dezenas de pessoas que hoje em dia raramente organizam uma má prova, porque essas rapidamente desaparecem do mapa.
Nos 6 ou 7 anos que pratico trail participei em inúmeras boas corridas. Mas raramente acabei uma prova a sentir que se tinha passado algo especial, algo diferente de tudo o resto. Curiosamente, aconteceu duas vezes este ano, o que mostra bem a vitalidade do desporto. Primeiro na Serra Amarela e finalmente na maior surpresa do ano: a inacreditável Pisão Extreme Skyrace.
Foto fantástica retirada do feed da organização |
Chegámos ao Bioparque de Carvalhais, no sopé da Serra da Arada, às 7:30, meia hora antes da partida. Saímos de São Pedro do Sul debaixo de um nevoeiro cerrado. A minha esperança que fossem nuvens baixas confirmou-se quando chegámos perto da cota 500 e se começaram a ver os contornos da montanha. Estava um dia frio e previa-se céu limpo, condições ideais. O ambiente na partida estava muito bom, cerca de 150 atletas e muitos familiares aguardavam juntos enquanto o sol nascia. O Joca ia animando as hostes e reencontravam-se amigos destas andanças, até que às 8 em ponto, hora e meia depois da partida da prova grande, lá fomos nós!
Fotografia à chegada do Parque. A única que tirei o dia todo.... |
Trezentos metros de alcatrão e entrámos no trilho. Surpresa: era a subir! Não sei se já ouviram as "estatísticas" desta corrida, tem uns impressionantes 3200D+ em menos de 35km! Simplesmente não há espaço para terreno plano e todas as inclinações são monstruosas. O entusiasmo inicial ainda levou muita gente a trotar nesta primeira subida, que nos levaria até perto dos 900m. Primeiro em trilhos fáceis, mas à medida que fomos ganhando metros à encumeada a coisa foi-se complicando até estarmos a saltitar numa crista de maciços de granito gigantes.
A partida estava situada no extremo sul da Serra, por isso só entrámos verdadeiramente na montanha depois de virarmos os 1100m pela primeira vez, pelos 5km. Só vos digo que foi de cortar a respiração. Pequenos amontoados de nuvens preenchiam os vales mais profundos enquanto as pregas verdes e castanhas das encostas davam um relevo quase surreal à montanha. Tive que parar um pouco antes de me fazer à descida para absorver aquilo. Até ia tirar o telemóvel da mala para tirar uma foto, mas os bombeiros que lá estavam devem ter estranhado ver-me parado e começaram a dizer "é aí à direita!!". Pronto, deixa lá a fotografia...
O que vale é que alguém as tira por mim |
Foi aqui nesta primeira descida que a prova se começou verdadeiramente a revelar. A primeira subida, dividida em dois por 1km a descer ali pelo meio, passou tão depressa que nem me lembro dela, mas lembro-me perfeitamente de descer por um dos dedos da garra, num trilho super técnico e desafiante. A inclinação era brutal, como não podia deixar de ser, e parecia que quanto mais descíamos mais ela empinava. O trilho era maravilhoso, com bocados corriveis a intercalar o martelar super técnico da maioria do caminho. Era no entanto impossível correr descansado ou descontraído, o trilho exigia uma total concentração. Chegámos ao primeiro abastecimento, em Gourim, já depois de virar o fundo do vale e escalar uma pequena parede. Quase hora e meia para os cerca de 8km, entrei no abastecimento quase em euforia. Virei-me para trás e vi finalmente a famosa Garra em todo o seu esplendor, com pontos coloridos a rasgar uma das cristas. Incrível.
Fotografia da Garra pela organização. Não sei qual foi o dedo que descemos. |
Tal como na Zela, lá estava um senhor dedicado exclusivamente a fatiar um presunto. Obviamente que não quis desvalorizar o esforço e comi umas 4 ou 5 fatias empurradas com isotónico. A digestão foi feita numa "pequena" subida de 200+ feita a escalar uma cascata seca, até que virámos mais um monte e iniciámos a descida para a Aldeia Mágica de Drave. Oiço falar desta aldeia há anos, estava muito curioso por a conhecer e não defraudou as expectativas. Perfeitamente entalada no meio de encostas enormes, sem o menor dos comodismos, pareceu uma viagem no tempo. Mas nem deu para respirar porque imediatamente a deixámos para trás em mais uma subida a pique.
Esta foi a parte mais alucinante da prova. Foram 3 subidas e 2 descidas seguidas, todas com perto de 1km e 300m de desnível! O mais impressionante foi o vale a seguir a Drave. Enquanto descíamos para mais uma vez nos enterrarmos no fundo, uma parede, que parecia perfeitamente vertical, erguia-se à nossa frente. Desde o inicio da descida que a estudava pelo canto do olho, à procura de uma pequena aberta que desse para aliviar a subida, mas ela parecia infinita. Como uma onda que se vai formando lá ao fundo e vai crescendo até estar a rebentar mesmo em cima de nós. Até que finalmente vi uns pontos amarelos a rasgar a encosta. Tive que parar e apreciar aquilo com calma. Era perfeitamente vertical! Continuei a descida com um sorriso de orelha a orelha, ansioso por chegar à base daquela loucura!
Já fiz muitas subidas. Em Portugal, nos Alpes e nos Pirinéus. Já fiz duplos km verticais, já subi aos 3500m na Serra Nevada, mas uma coisa daquelas nunca tinha visto. Uma subida completamente selvagem, sem trilho, vertical. Do ponto mais baixo ao ponto mais alto, era só isso que precisávamos de saber, depois era só vencer os 40% de inclinação MÉDIA daqueles 800m. Os bastões eram inúteis, deixei-os pendurados nos pulsos enquanto usava as mãos para me elevar no xisto afiado. As marcações muito espaçadas indicavam apenas o ponto inicial e final, não havia trilho para seguir. Que maravilha. Tenho a certeza que aquilo foi cansativo, mas sinceramente não me consigo lembrar de ir em esforço!
O companheiro Vasco em plena jornada de trabalho. |
Depois de descer para o segundo abastecimento, em Covas do Monte, faltavam apenas dois montes até ao final, os mais longos. O primeiro, logo a seguir ao abastecimento, levou-nos a subir o famoso Portal do Inferno. Completamente enfiados numa garganta apertada, com cascatas e ribeiros por todo o lado, o trilho subia por patamares intermediados com pequenas descidas. Super técnico do inicio ao fim. Uma subida lindíssima, bem embrenhada na montanha. A descida seguinte, para o terceiro abastecimento, em Fujaco, foi das mais longas e fáceis. Uma espécie de miminho da organização. Quase 3km em estradão a fazer lembrar os zigue-zagues do Açor, percorridos a muito bom ritmo, com pernas de quem estava em prova há mais de 4 horas mas praticamente ainda não tinha tido oportunidade de correr.
Covas do Monte, tirado do Google |
Apenas uma maminha nos separava da meta, mas era precisamente a maior. A subida tinha nada mais nada menos que 500+ em 1.4km! Mais uma vez completamente exposta, selvagem, sem trilho. Tínhamos que ir a trabalhar do inicio ao fim, à procura do caminho que implicasse menor amplitude de movimentos. Depois daquela loucura que vos falei lá atrás foi a minha segunda subida preferida da prova, demorei 40 minutos a vencê-la! O melhor de tudo foi chegar ao estradão na encumeada, que subia ligeiramente, e as pernas responderam imediatamente ao trote! É uma sensação impagável. Mesmo antes de virar para a descida olhei para o relógio e vi 28km com 3000+.
Os 5km finais têm pouca história. Uma espécie de bonança depois da tempestade que foram os primeiros 30km. Sempre em trilho, lá fomos ganhando metros até que a voz do Joca estava mesmo já ali. Cruzada a meta ainda nos ofereceram um par de meias da socks by personalizadas com o logo da prova e um almoço de frango no churrasco.
Ainda não há fotos da chegada vai esta que está gira. |
Disse e repito: sou fã desta organização. Se conseguir, não vou falhar uma prova deles. O Pisão foi absolutamente memorável, correu tudo na perfeição e até um dia esplendoroso ajudou à festa. O percurso foi do mais desafiante que já apanhei, violentíssimo. Não é de todo para estreantes e é bom que se perceba isso antes de fazer a inscrição. Um ambiente muito familiar, ao que as poucas inscrições disponibilizadas contribuíram muito. Que assim se mantenha! Muitos parabéns a todos os envolvidos, tenho mesmo a impressão que foi um dia especial e podem estar de peito bem inchado porque fizeram história no nosso desporto!
Parabéns a todos, e obrigado! |
Quanto à minha prova, dificilmente podia pedir melhor! Não tive um momento baixo durante todo o percurso e senti sempre que tinha pernas. Em termos de tempo final foi bem melhor do que tinha projectado, mas também é difícil fazer previsões neste tipo de percurso. Foram 6h34 para os 35km, o que me valeu um 18º lugar nos quase 150! Nada mau!
Agora venha o Natal, os doces e a comida e....bah, quem é que eu quero enganar? Que se lixem os doces, eu quero é desnível!