Não queria começar pelo fim, mas a descarga de adrenalina no domingo foi tão grande que o vou dizer já aqui: o Grande Trail Serra d'Arga é uma prova perfeita! Quer dizer..quase! Bem, fiquem por aí que vou concretizar.
Desde que chegámos ao Minho, no sábado depois de almoço, um nevoeiro cerrado não deixava que se visse mais que dois palmos à frente do nariz. Foi assim em Caminha, o que impediu de apreciar a paisagem da avenida junto ao Rio Minho e ver Espanha na outra margem, foi assim em Vila Praia de Âncora, onde ficámos na confortável Albergaria Quim Barreiros (é mesmo dele!) junto à praia, e continuou assim em Dem, pequena aldeia no sopé da Serra d'Arga, local de partida do GTSA.
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Centro de Caminha |
Na manhã de domingo em Dem a temperatura era perfeita, a rondar os 17º. Cheguei um pouco em cima da hora com uns companheiros que estavam na Albergaria, a quem cravei boleia no próprio dia. Na rua da partida já estavam os cerca de 1000 atletas das provas de 53 e 33km. Passei pelo controlo zero (ouvi pessoas a dizer que tiveram penalizações de uma hora por não terem a manta! Não foi por falta de aviso...), fui até perto do pórtico e desloquei-me para um passeio, faltavam 15 minutos para a partida. A quantidade de caras conhecidas é impressionante, toda a elite lá estava, além de dezenas de caras que já vou conhecendo doutras corridas. O GTSA é uma espécie de encontro nacional do trail e ninguém quer faltar à festa!
A partida foi dada às 8 em ponto, depois de uma contagem decrescente a acompanhar as 8 badaladas do sino da igreja. Seguiu-se uma volta de 2km por Dem, de forma a dispersar o pelotão antes de enfrentarmos a primeira batalha. Reza a lenda que são 5, as batalhas de Arga, mas eu posso garantir-vos que não. São 6. E foi precisamente naquele ultimo round de uma grande luta que a Serra praticamente me derrubou. Lá chegaremos.
Foi ainda dentro
da névoa que começamos a subida que nos levaria cerca de 500m acima de Dem. Com
o pelotão ainda muito compacto seguíamos a bom ritmo pelos caminhos de granito
que nos haveriam de acompanhar até ao fim da empreitada. Esta é logo a primeira
diferença de Arga para o resto das provas. Aqui muito raramente vemos trilhos
abertos ou estradões, quase a totalidade do percurso é feito por caminhos com
rochas de granito arrumadas à mão.
Não precisámos de subir muito até estarmos
por cima das nuvens. É sempre uma visão espectacular quando isso acontece, mas
nunca tinha ficado tão impressionando como naquele dia. Ali estava todo o
nevoeiro dos últimos dias, um manto branco denso, rasteiro que cobria tudo
menos as montanhas. Mas o que me impressionou foi olhar para o horizonte e ver
cumes de montanhas até perder de vista! Em 360º só se via branco e pequenas
ilhas castanhas que se erguiam imponentemente. Uma coisa doutro mundo,
arrepiante!
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Esta fui eu que tirei, ainda com o pelotão muito junto, na Pedra Alçada, topo da primeira subida. |
O primeiro round
estava vencido. Chegámos lá acima com 5km, pelo mesmo caminho que haveríamos de
descer no final da prova. Fiz as contas e, tirando a volta inicial por Dem, a
descida teria 3km. Ou seja, a minha prova supostamente acabaria aos 50km,
depois era "só descer". Como estava enganado...
Apercebi-me
rapidamente depois de dobrar este cume o que se veio a confirmar ao longo da
prova. Arga tem muito desnível positivo, 2700m segundo o meu relógio, mas aqui,
mais do que em qualquer outro lugar em que tenha corrido, não se pode
menosprezar o desnível negativo. As descidas eram quase sempre feitas pelos
tais caminhos em granito. Imaginem uma espécie de calçada rudimentar, com
grandes rochas de granito espalhadas de forma completamente heterogénea. Sem
dúvida que tornam a subida mais confortável, mas a descer estamos
constantemente a saltitar de rocha em rocha com a concentração no máximo para
não torcer um pé. É impossível (pelo menos para mim) correr ali com um ritmo
estável, estamos sempre a ajustar a trajectória, a saltitar, a travar, a
desviar... É um esforço brutal para as pernas e exige concentração máxima. De
facto, depois de terminar a prova, na minha opinião o mais difícil de Arga não
são as subidas mas sim as descidas!
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Caminhos de granito (retirado do blog "Corre como uma menina") |
O inicio da segunda batalha coincidiu com a entrada numa face diferente da Serra. De repente as paisagens verdes, despidas e pontuadas por blocos de granito, foram substituídas por um bosque cerrado. Corríamos agora em cima de uma camada de caruma que devia ter uns 50cm de altura, parecia um autentico colchão que se deformava com os nossos passos. A subida foi-se mostrando tranquilamente. Serena, de segmento em segmento, de ponto de água em ponto de água, nunca demasiado inclinada e sempre pontuada por partes boas para correr. Foi só quando saímos da linha das árvores e voltámos ao granito que me apercebi que já tínhamos subido muito. Quando chegámos ao topo da subida e nos preparámos para uma pequena descida que antecedia o 3º round aconteceu-me uma coisa que nunca me tinha acontecido numa prova: arrepiei-me.
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Era isto que se via, foto do meu telemovel. |
É impossível descrever por palavras, ou mesmo com uma fotografia, o espectáculo que a Serra nos proporcionou ali. O manto branco denso estava a dissipar-se, já só restava uma névoa quase fantasmagórica rompida pelos cumes de montanhas que se prolongavam até ao infinito. Nunca, nem mesmo no MIUT, fiquei com uma sensação de pequenez como ali. É verdade que nunca fiz uma grande prova na Estrela, já para não falar de maciços como os Alpes ou os Pirinéus, mas foi em Arga que tive a mais distinta sensação de estar em montanha a sério.
Foi a sorrir e arrepiado que fiz a descida até Arga de Baixo, base da terceira subida, onde estava situado o segundo abastecimento (não parei no primeiro). Os abastecimentos do GTSA são uma lição para todos os que dizem que gajos como eu não se podem queixar dos abastecimentos, e que estes só devem ter o mínimo, que o resto são mimos, e que lá fora não há nada disto, devemos ser autosuficientes, bla bla bla.. O GTSA é organizado por um dos melhores atletas de trail do mundo, é talvez a prova mais conceituada em Portugal e tem dos abastecimentos mais completos e variados que já apanhei. Ali não se pensa para os 10% da elite, pensa-se para os outros 90%. Além de terem uma localização e distribuição perfeita, tinham uma variedade como nunca vi. Já li por aí pessoas a queixarem-se que haviam poucos bidons para isotónico o que provocava algum tempo de espera. Epah, pessoal, não vamos exagerar...
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Porto do espeto e sopa, aos 33km |
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Havia coisas como "gelatina com BCAA", mas eu gosto mais de mousse de chocolate |
Tal como na segunda subida, nem dei por esta terceira passar. Ia com muito ânimo, a sentir-me muito bem fisicamente. O andamento era bom, os caminhos eram perfeitos, a paisagem distraía... Estava a aproveitar esta corrida como nunca. A descida foi pelos habituais caminhos de granito. Mais uma para moer os músculos. Tentei sempre resguardar-me nas descidas, nesta altura nunca ultrapassava ninguém a descer, tinha perfeita noção que mais tarde iria pagar se me excedesse.
O terceiro abastecimento coincidia com o inicio da subida à Senhora do Minho, ponto mais alto da Serra d'Arga com 800m. Antes da prova, meti na cabeça que esta seria a subida mais difícil, por isso poupei-me até ali, sempre num ritmo confortável. Não sei onde fui buscar esta ideia, mas achava que depois desta subida a prova estaria concluída, mesmo faltando ainda quase metade do desnível por vencer. Estava redondamente enganado, mas lá chegaremos.
Ainda com o pensamento que a seguir era canja, dei tudo nesta subida. Posso dizer-vos: foi a subida que mais gostei de fazer até hoje. Tinha as pernas muito frescas e parecia que não tinha nenhuma limitação física a segurar-me. Demorei um pouco menos que meia hora a chegar lá acima e pelo caminho passei umas 20 pessoas! Acho que nunca tinha passado tanta gente numa subida, normalmente sou o gajo que se senta nas rochas a deixar os outros passar :)
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Parte final da subida à Senhora do Minho. Foto do Nuno Silva no KV, retirado do Top Máquina! |
Lá em cima fui recompensado por uma instalação com 4 ou 5 torneiras de água colocadas ali pela organização. O calor já apertava, praticamente tomei banho ali. Seguiram-se cerca 2km de corrida confortavel num planalto antes de iniciarmos a descida mais longa da prova. Estes 2km foram optimos para esticar as pernas. Ligeiramente a descer, trilhos em terra macia, corríamos quase sem pensar. Estava com a auto-estima nos píncaros. Já tinha ultrapasssado 4 das 5 (ou seriam 6) subidas do GTSA, ia com um ritmo muito abaixo do que esperava e, mais importante de tudo, sentia-me fresco como uma alface! "Já está!!" pensei eu. "És pouco estúpido és!!!" penso eu agora.
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Fotografia no tal planalto. |
Metade da grande descida foi pelos habituais caminhos. Desta vez, ainda embalado por uma auto-estima claramente exagerada, decidi abrir um pouco a passada e acelerei. O meio da descida, aos 33km, coincidia com a chegada à Montaria, meta da prova de 33km. Quando parei no abastecimento apareceram umas amigas que já não me diziam nada há algum tempo, a Perna Direita e a Perna Esquerda. "Aaaah, afinal estão cá! Como é que é? Já estão cansadas?? Então mas...não se estão a divertir tanto como eu??" penso que elas responderam "És pouco estúpido és!!!", mas não tenho a certeza.
Os 5km seguintes de descida, até ao Vale do Âncora, foram talvez os menos interessantes do percurso, se os 53km chegavam a ter 4km de estradões e estradas, 90% estavam concentrados nesta secção. Foi no entanto aqui que encontrei a minha excelentíssima esposa, que se perdeu a caminho da Senhora do Minho :)
Entrámos agora numa nova fase da prova, que será particularmente decisiva no meu resultado final: o Vale do Âncora. Foram 5km de subida sempre junto ao Rio Âncora, embrenhados num bosque muito fechado, com terra preta e húmida, muitas raízes, muito sobe e desce, paredes para escalar seguidas de descidas de rabo, ora dum lado ora do outro do Rio. Foi de longe a parte mais técnica do percurso e de repente, a envolvente que era estupidamente bonita, deixou de me chamar a atenção. Sentia as pernas cada vez mais presas e a queixarem-se no fim de cada obstáculo, e se eram muitos! Comecei a olhar para o relógio insistentemente, e isso nunca é bom sinal. Os quilómetros teimavam em passar, e eu só queria sair dali, voltar ao granito que pelo menos me deixava subir de maneira estável! Não me interpretem mal, foi das zonas mais bonitas de toda a prova, mas já só queria sair dali!
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Foto da Sara, dá pra ver o tipo de piso. |
Foi só quando saímos do meio das árvores que me apercebi que já tínhamos subido bastante. Esta primeira parte da ultima subida tinha sido devastadora para mim, a diferença que 5km fazem! Atingimos a marca de 44km no topo. Faltavam 9km para terminar a prova, é já ali! Quer dizer, é já ali mas primeiro tens que descer 150m verticais, só para os voltar a subir e meter-lhe mais 300 em cima! Esta é a parte mais sádica de todo o percurso. Quando acabamos de descer os 150m e chegamos ao ultimo abastecimento na base da descida conseguimos ver Dem e até dá para ouvir o speaker lá ao longe, era só descer mais uns metros e estávamos no paraíso, mas não, vais mas é subir aos 760m outra vez que te lixas!
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Foto que a Sara tirou, era aqui que andávamos. |
A subida final, o 6º round, o truque secreto que o Carlos Sá preparou para os mais distraídos, levou-nos novamente para as paisagens graníticas da Serra. Nesta altura um novo inimigo disferia golpes implacáveis: o calor. Desde o rio que sofria com o calor. Parava em todos os pontos de água e riachos para despejar água pela cabeça e tronco. Nesta altura batia-nos nas costas e estava mais forte que nunca. Comecei a debater-me com ameaços de cãibras constantes, assim como todos os companheiros que por ali andavam. A meio da subida há uma pequena descida que só consigo fazer a passo e muito hesitante. Quando entramos num estradão já muito perto do cume, o GTSA manda-nos um uppercut de direita que quase nos derruba. Uma ultima escalada, agora mais selvagem, sem caminhos, só com blocos gigantes de pedra que nos faziam levantar as pernas a ponto de se soltarem todos os músculos! 46, 47, 48km... Olhava para o relógio de 100 em 100 metros e aquilo não andava. À minha volta ia uma dezena de companheiros todos eles em dificuldades iguais, a Serra não é selectiva. Um ultimo esforço, uma ultima tentativa de soltar as pernas, e estávamos no km 50, de volta ao topo da primeira subida, na Pedra Alçada!
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Pedra Alçada - Tirado do Google |
Lembram-se de vos ter dito que estava redondamente enganado quando achava que a prova acabava aos 50km? Pois, quando cheguei lá acima e me mentalizei da brutalidade de descida que me esperava apeteceu-me dar um auto-calduço, mas daqueles mesmo fortes! Desde que corro em montanha demorei pouco tempo a perceber que as descidas podem ser tão ou mais massacrantes que as subidas, mas nunca senti tanto isso na pele como esta ultima descida de Arga. Tentava soltar-me, mas parecia um completo entrevado a descer. O saltitar das primeiras descidas tornara-se num espectáculo degradante, só me faltava um andarilho. Foi só a 500m da meta, agora já em estradão, que consegui soltar as pernas. Agora sim, 7h50 depois de partir, de volta a Dem, estava feito!
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Foto da Sara, à chegada |
Inscrevi-me no GTSA como um complemento de treino para o UTAX, mas para mim sempre foi muito mais que isso. Estava muito ansioso por participar nesta prova e a realidade superou em larga escala a expectativa. A prova tem de tudo, boas subidas, boas descidas, trilhos técnicos, paisagens brutais, abastecimentos perfeitos, marcações irrepreensiveis e um ambiente ímpar!
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Mais morto que vivo (foto da Sara) |
Ah, é verdade, querem saber o porquê do QUASE perfeito, não é? Bem, além do "quase" funcionar como um clickbait que faria inveja aos jornalistas do Correio da Manhã, encontrei um ponto negativo no GTSA: é longe pa caraças de Almeirim! Porra, 400km? Querem uma experiência extrema? Façam uma viagem de 400km de carro depois de correrem o GTSA! Ver se a organização faz alguma coisa em relação a isto, é uma vergonha!