As minhas corridas na estrada

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Serra da Estrela - Eu nunca usei drogas, mas...

Tenho participado em cada vez menos provas. Não que não goste, não alinho nada naquela treta do trail já não ser o que era, de estar a seguir o caminho do BTT e do espírito não sei do quê ter morrido, bla, bla, bla... Tenho participado menos por uma razão muito simples: dinheiro. As provas que mais me seduzem são longe, e como gosto de viajar com a família toda torna-se muito dispendioso. Para compensar, este ano foram raríssimos os fins de semana que fiquei pelo meu quintal. Acordar às 4 da manhã de sábado de forma a poder sair, treinar e estar em casa à hora de almoço, já se tornou um hábito. Quase sempre no Montejunto, que não considero o meu quintal por ficar a 100km, mas é uma espécie de casa de férias tantas as vezes que lá vou, mas também em Sintra. Todos os sábados já é rotina a viagem de carro de madrugada. Além destes escapes semanais há as outras saídas, as novas Surf Trips, como o Sommer descreveu tão bem neste artigo. Foi assim em Julho, na Sierra Nevada, e foi assim o fim de semana passado, na Serra da Estrela.

Há meses que sonhava com este treino. Desde que lancei a ideia durante um longo para a Maratona do Porto, lá para Setembro, com o Alex e o Rodrigo. Inicialmente marcado para o primeiro fim de semana de Dezembro, teve que ser adiado uma semana por causa do temporal que se abateu sobre o país inteiro nessa altura. Não era sensato irmos para a Estrela num dia desses, mas foi perfeitamente compensado com um treino de 40km e 6 horas na Serra de Sintra, debaixo de chuva torrencial do inicio ao fim. Uma delícia e uma das barrigadas de trail mais divertidas da minha vida!

Vasco, Alex, Rodrigo e eu em Sintra, debaixo da chuva. A foto possível de um treino perfeito!
A hora de saída, marcada para as 21 na minha casa, deu tempo de jantar e deitar os miúdos. Seguia-se uma viagem de 3 horas até Gouveia, onde iríamos dormir umas horas, acordar às 4:30 e começar o treino de cerca de 40km às 6 da manhã em Loriga, de forma a voltar a Almeirim ainda em "horário útil". Engraçado, no caminho para Gouveia falávamos de como "os de fora" frequentemente acham estes planos absurdos, vá-se lá saber porquê...

As horas de sono foram passadas no Quartel da GNR de Gouveia. Sim, isso mesmo. O Alex é GNR e conseguiu que nos acolhessem nas camaratas do quartel naquela noite!

[Peço desde já desculpa pela qualidade das fotos, o meu telemóvel já não é o que era]

Impecável!
O plano de treino era simples: subir a Gargante da Loriga até à Torre, descer pelo KV do Alvoco e voltar para trás pelo mesmo caminho. Duas subidas à Torre e duas descidas. Simples.

Como combinado, arrancámos às 6 da manhã, ainda bem de noite. A temperatura estava nuns agradáveis 10 graus, mas saímos com roupa para o frio, já que o topo da primeira etapa só terminaria 1300m acima.

Já tinha descido uma vez a Garganta, mas a subir era novidade. Feita no sentido ascendente, esta mostra-se por níveis que vão aumentando de dificuldade. Primeiro 2km em estradão e trilho limpo, depois singles no meio do granito e mato e finalmente o nível final, que coincide com a entrada na Garganta propriamente dita, a parte mais técnica e dificil. Ainda de noite até sensivelmente meio da subida, o track no relógio era muitas vezes substituído pelas marcações PR e mariolas existentes. Progredimos sem problemas, com entusiasmo crescente, até chegarmos ao nível final.

Num timing perfeito, a claridade do sol que nascia do outro lado da montanha permitiu-nos desligar os frontais no átrio de entrada da Garganta. Esta divide-se em 4 ou 5 pequenos patamares planos cobertos de erva fofa e rasteira separados por picadas para escalar em rocha. Não tenho a certeza, mas penso que soltei um gritinho histérico, tipo pita que acampa no Meo Arena, enquanto corria num desses patamares. Que perfeição. O manto de erva recortado por pequenos ribeiros de água gelada, o granito imponente e escorregadio, duas paredes gigantes e claustrofóbicas de cada lado, o sol a acender os picos lá mais acima... Uff!! Já perto do fim da subida, o Vasco, que já anda nisto há uma data de anos e fez, por exemplo, a Ronda Del Cims, dizia-me com um sorriso "eu nunca usei drogas, mas deve ser alguma coisa muito parecida com isto".
Um dos patamares lá atrás

A inevitável Selfie na Garganta!
Quando chegámos à barragem, fim da Garganta, olhei para o relógio e íamos com 1 quilómetro vertical. Juro que não dei por ele passar, tal o prazer que estava a sentir. Saímos da Garganta, mas a subida ainda não tinha terminado. Faltavam 4km e cerca de 300m de subida que nos ligariam à Torre. Esta era a única parte do percurso que não conhecia, mas parecia-me relativamente pacifica.

Barragem no fim da Garganta
A temperatura tinha descido brutalmente, um vento fortíssimo empurrava nuvens que ora cobriam tudo num nevoeiro denso ora abriam e mostravam o sol e céu limpo. O cinzento do granito era tapado pontualmente por mantos brancos de gelo e neve, que cobriam rochas, ribeiros e mato denso. Formações graníticas enormes, completamente molhadas e com musgo. De repente a euforia da Garganta começou a dar lugar a alguma apreensão. O track do relógio era frequentemente ajustado de maneira a não passar por cima da neve, porque quase invariavelmente esta cobria armadilhas onde enfiávamos as pernas. Escorregámos e caímos dezenas de vezes nas lajes de granito, avançávamos muito a custo, guiados pelas mariolas, quando o nevoeiro deixava. Os pés molhados na neve começaram a arrefecer, e as mãos a congelar. Dividi as luvas com o Vasco, que se tinha esquecido delas, enquanto o Alex e o Rodrigo travavam também eles uma batalha contra o frio.





O meu relógio dizia-me que estávamos à cota 1960m, praticamente em cima da Torre (1993), mas só a conseguimos ver quase quando demos com o nariz nela.

A primeira subida estava feita. Demorámos uma hora a percorrer os 4km finais. As condições muito adversas e a progressão lenta não nos permitiu gerar calor, quando lá chegámos estávamos frios e desconfortáveis. Parámos só o suficiente para comer qualquer coisa e iniciámos o caminho até ao Alvoco da Serra - cerca de 7km com 1200m de descida.

Já tinha subido duas vezes o KV do Alvoco, mas nunca descido. Lembrava-me bem dos primeiros 2km, num planalto junto à Torre. Percorremo-lo sempre a correr, desesperados por gerar calor e aquecer um pouco. À medida que descíamos lentamente, o nevoeiro ia dissipando, o que permitia finalmente seguir as mariolas. Estávamos a descer do nível das nuvens, a temperatura estava a aumentar e sol rasante a aquecer-nos quando chegamos ao inicio da descida do KV propriamente dita. A vista sobre o vale era absolutamente incrível, com os cumes de nuvens a cobrirem os picos e o sol a brilhar por cima delas.

No topo do KV do Alvoco, antes de descer.
A alegria e boa disposição estavam de volta, e ainda bem, porque esperava-nos um prato bem complicado. o KV do Alvoco é uma brutidade a descer. Não é técnica o bastante para a fazermos a passo, mas tem pedra e é inclinada o suficiente para nunca irmos confortáveis no trote. É longuíssima, nunca desarma. Vamos a bater nas pernas durante 5km, sempre a travar, sempre a mudar de direcção e ajustar o caminho. Os quadricepes começaram a gemer mais ou menos a meio, mas era impossível resistir ao convite para ir a passo de corrida!

Chegámos ao Alvoco, ponto de retorno, com 4 horas e 19km. Tinha previsto um treino à volta das 7 horas, já estávamos bem longe disso. Paciência, agora só há uma coisa a fazer: voltar o cavalo e seguir pelo mesmo caminho!

O KV do Alvoco é capaz de ser das minhas subidas preferidas de todas as que já fiz. Adoro ir a subir sempre no limite. Ali não há descanso, não há patamares como na Garganta. é a partir pedra durante 5km. Sempre a dar! Foi a primeira vez que a subi sem bastões e adorei.

Pela primeira vez no dia seguimos cada um a seu ritmo, uns mais rápidos outros mais lentos, mas todos no limite. Todos sentimos o calor a apertar a meio da subida, todos desesperámos com os zigue-zagues no meio da pedra, todos tivemos ameaças de câimbras quando tivemos que abrir mais as pernas para subir a uma rocha e todos respirámos de alivio quando chegamos ao inicio do planalto que nos levaria até à Torre.
Mariola gigante que marca o fim do KV

De volta ao topo, já com quase 7 horas de treino, decidimos entrar no Centro Comercial da Torre para comer qualquer coisa. O único ponto mau do dia inteiro: parecia que estávamos no Colombo! Despachámo-nos a comprar cada um uma sandes gigante de presunto e queijo da serra e fomos comer para a rua. Meus amigos, neste treino só houve uma coisa melhor que a subida do Alvoco, aquela sandes!

Restava-nos descer até ao carro.

Ainda com a dificuldade daquele troço de 4km entra a Garganta e a Torre em mente, decidimos tentar outro caminho. Foi pior a emenda que o soneto. Desta vez já não havia nevoeiro, mas foi um autentico pesadelo descer por entre rochas molhadas, gelo e mato. Caímos cada um pelo menos uma dezena de vezes. Entrámos em becos sem saída, voltámos para trás e desesperámos pela barragem que marcava o inicio da Garganta. Mais uma hora super tensa e stressante em que arriscámos demasiado. Fiquei sinceramente aliviado quando voltámos à Garganta. Se pudesse voltar atrás, tinha riscado esta parte do treino e ido pela estrada de alcatrão paralela ao que fizemos. Deve ser impecável fazer este segmento no verão, mas é demasiado perigoso no Inverno.

Com todas as dificuldades, cheguei a ansiar pelo conforto da descida da Garganta de Loriga, como se fosse só um pro-forma até chegar ao carro. 

Ahahaha.

Pobre diabo.

A descida da Loriga é 1000 vezes pior que a subida, é super difícil. Uma brutalidade, quase nunca deixa correr, ainda mais com as rochas molhadas! Um massacre brutal tanto para as pernas como para a cabeça. Espetacular!!

Chegámos finalmente ao carro com 9 horas de treino, 39km percorridos e 2700m de subida acumulada. Um percurso extremamente duro, tanto a subir como a descer. Um treino excelente, quase perfeito. 

Chegámos de rastos, esfolados, derreados e com um sorriso parvo na cara. Houve ainda tempo de comer uma bela bifana e beber uma mini antes de arrancarmos para mais 3 horas de viagem rumo a Almeirim. Cheguei a casa ainda a tempo de brincar um pouco com os miúdos e ajudar a Sara a preparar as coisas para recebermos uns amigos cá em casa para jantar. 

"Eu nunca usei drogas, mas...."

No Café S. Vicente, na Loriga. Um café com minis, bifanas, queijos e peluches.





segunda-feira, 28 de novembro de 2016

III Grande Trail das Lavadeiras - Puro.

Há sítios em Portugal onde o difícil é não fazer um bom percurso de trail. Por exemplo, na Lousã ou na Estrela é uma questão de compilar os melhores trilhos e paisagens e perceber o que funciona ou não funciona. Depois há outros que são uma folha em branco. Não há montanha, não há trilhos, nem sequer há paisagens de tirar o fôlego. Quando alguém decide fazer uma prova num desses sítios tem duas hipóteses: utiliza a meia dúzia de carreiros existentes, liga-os com quilómetros de estradão/alcatrão e chama os amigos para um convívio anual que certamente não durará muitas edições mas que no fim colhe os mais rasgados elogios do primo e do cunhado, ou então, se quer fazer uma coisa memorável, só tem uma solução: arregaçar as mangas e trabalhar. E, meus amigos, esta malta da Granja do Ulmeiro trabalha que se farta!

Antes da partida, com os companheiros do Grupo Desportivo da Parreira
Poucos minutos antes da partida, o speaker de serviço dizia-nos com um pesar na voz que, por terem vedado o acesso numa parte inicial, tiveram que alterar o percurso, por isso o primeiro quilómetro e meio seria em estrada. Quase consigo imaginar 2 ou 3 lavadeiros que dormiram mal na noite que souberam que o percurso ia ter 1.5km de alcatrão. E como é que lidaram com isso? Fácil, à maneira GTL: com trabalho! Assim que termina esta volta inicial pela Granja, entramos num single junto ao Mondego com quase 3km (sim, 3km!) todo aberto de propósito para esta edição! 

Um dos que deve ter dormido mal, no trilho novinho junto ao Mondego.
Rapidamente a prova se mostra, com subidas feitas a quatro e descidas de rabo. Tirando os Abutres, em nenhuma outra prova utilizei tanto as mãos para conseguir progredir. Aos quilómetros de trilhos abertos nos últimos anos juntaram-lhes outros tantos, prolongando-os e fazendo ligações entre eles, com os estradões a rarearem cada vez mais. O parte pernas é constante, assim como o piso muito pesado e enlameado. Passamos metade do tempo a saltar por cima de troncos ou a baixar-nos por baixo de outros, subimos escadas de madeira e degraus cavados na terra. descemos por cordas enlameadas, enchemo-nos de lama até à cintura e depois lavamo-la em água suja e gelada... Diversão do primeiro ao ultimo metro! 

Eu sei que já usei esta foto o ano passado, mas ilustra na perfeição o que é esta prova.
Não há lugar à monotonia nesta prova, mesmo que a altitude máxima sejam poucos mais de 100 metros. Não há uma falha na marcação nem um abastecimento fora do sítio. Há trilhos muito técnicos e há trilhos muito rolantes, outros cheios de pedras, outros com raízes e outros cobertos de vegetação que mais parecem um colchão. Há para todos os gostos, mas, acima de tudo, há trilhos, muitos trilhos!

Um percurso assim tão recortado normalmente quer dizer uma coisa: trilhos! E aquela parte junto ao rio engana, é o trilho que foi aberto de propósito, apesar de ser sempre a direito

Por causa do parte pernas, quase nunca deu para meter um ritmo constante, daí esta parvoíce de picos no gráfico da velocidade
Quanto à minha prova, fiquei muito satisfeito! Consegui vir a andar bem (para mim) até ao fim, sem grandes quebras, apesar de vir perto do meu limite. Ainda antes dos 20km fiquei sozinho e até ao fim (43km) andei sempre sem companhia. O percurso não passa por nenhuma povoação, por isso as únicas pessoas que vi durante horas foram os voluntários nos abastecimentos e os bombeiros que estavam nos locais mais perigosos. Foi espectacular estar embrenhado sozinho ali no meio daquele mato tantas horas, numa espécie de missão solitária.

Depois de dois meses de treino exclusivo para a maratona, está a saber muito bem voltar ao mato, e não podia pedir melhor que este percurso de puro e duro trail, com tudo a que temos direito. 

No fim um banho bem quentinho, para tirar os quilos de lama que ainda ficaram, mesmo depois de 100 metros numa espécie de lago com água por cima do joelho já perto do fim, duas bifanas de porco no espeto, uma taça de arroz doce e ficou feito!

Desculpem a porcaria das marcas de água, mas ainda não encontrei outra foto minha e sou um bocado forreta! A foto é do...adivinhem :P
Antes, na reta da meta, o speaker que me terá reconhecido do artigo do ano passado, disse que eu era um amigo do GTL. Mais que amigo, sou um admirador confesso do que este pessoal conseguiu ali fazer. Voltarei sempre que puder e, entretanto, continuarei com a minha cruzada: é obrigatório que mais gente conheça o GTL!



terça-feira, 15 de novembro de 2016

Trilhos de Casaínhos 2016 - Crónica de uma batalha

Este domingo foi dia da romaria anual de Casaínhos, uma prova curtinha (15km) com tudo na medida certa: subidas, descidas, trilhos e feijoada. Dia de convívio, de reencontrar amigos e finalmente conhecer outros. Foi essas coisas bonitas todas, foi... Mas antes disso também foi palco de uma batalha sangrenta que perdurará nos anais da história. 

Essa, a história, surge aqui relatada numa parceria Quarenta e Dois / Crónicas do Sr. Ribeiro, num texto escrito a duas mãos (cada um escrevia 1 ou 2 parágrafos e passava ao outro):



O Sommer chegou primeiro, levou toda a família e amigos. Talvez o peso da derrota do ano passado o tenha feito querer equilibrar a balança, e como de balanças percebe ele, levou mais carga para o seu lado.

O Filipe apareceu quase em cima da hora, com um ar de falsa descontração, sentia-se a pressão por trás dos sorrisos que tentava distribuir gratuitamente às pessoas que se aproximavam sentindo já o sangue da batalha.

Parou o carro à frente do seu adversário e antes de sair disse entredentes à mulher para seguir o guião. Mestre da dissimulação, meteu o mais falso dos sorrisos quando, cordialmente, cumprimentou o seu oponente. Nesse momento tenso, o Filipe reparou num leve tremor da sobrancelha direita do Sommer. Estava a resultar.

A conversa de circunstância quase os faz vomitar de angústia, mas o tempo passou e estavam agora a 5 minutos da partida. O Filipe conta as camisolas pretas da MRT que o cercam e arrepende-se de não ter trazido ele próprio reforços.

Lado a lado, esperaram tensos alheios ao bulício que os rodeia quando soa o sinal da partida que, sem aviso, os lança numa luta feroz.

O de Almeirim sabe que tem de assumir a prova, tem de encostar o de Lisboa, logo ali em Casaínhos, antes mesmo de Fanhões. E, assim, imprime um ritmo controlado apenas meio segundo acima daquilo que sabe que o seu opositor anafado aguenta. “Assim ele sofre, mas não rebenta, para já…”
Habituado aos esquemas, o Sommer combatente trafulha, procura esconder-se no meio da multidão, “Vou apanhá-lo de surpresa!”

E assim passam a porta do Estádio Municipal e voam pela estrada para uns primeiros quilómetros bem ao jeito do Filipe, que se apercebe pelo canto do olhos das dificuldades que o gordo tem em manter um ritmo alto enquanto saltita desconfortavelmente no estradão irregular. Chega a ser constrangedor.

O fosso estava criado, mas é nas subidas que o esquilo mais se sente em casa e, quando atacam a primeira, um trote tranquilo é o suficiente para se aproximar do ofegante adversário que se debatia num engarrafamento causado por outro frequentador de Monsanto. Enervado, o Sopa da Pedra sente a pressão e segue atabalhoado trilho acima, à espera que a descida o confortasse.
Virado o monte, abrem-se as portas do Inferno!!!!

À frente, o Filipe perde a noção da distância para o seu perseguidor e dispara com medo de ser agarrado, lá atrás, o gordo chegado ao cimo do monte, não teve outra hipótese, tapou o nariz, fechou os olhos e mergulhou, corajosamente, soltando um guincho, para fora de pé.

Era a primeira descida, o primeiro encontrão, as primeiras pedras, o da frente, procurava material para sopa, o de trás, não queria cair e ficar em picadinho!

“Mantém o ritmo só mais um bocado!!!” implorou a si mesmo o desgovernado ribatejano, enquanto aproveitava cada bocadinho de descida para ganhar metros à bulldozer que o perseguia. Aproximava-se o meio da prova e a decisiva parede, oásis de esperança para o Sommer, que se benzia a cada curva e contra-curva enlameada das descidas de Casaínhos.

Já na base da parede, o da frente nem teve coragem de olhar para trás "rais parta o gordo, que me respira no pescoço", pensou. Foi mãos nos joelhos, língua a raspar o chão e toca a papar metros que o grandão até bate palmas nesta subida.

Já lá em cima, virou-se, lentamente, como quem contempla a paisagem, mas o gordinho já não caía nessa, sabia que o Filipe o procurava e por isso atirou-se para o chão, com estrondo, escondendo-se por entre a vegetação, tentando que o opositor não o visse. Levantou-se quando se sentiu em segurança e galgou os metros finais, procurando encurtar a distância que os separava!
“Está a funcionar!” pensou, primeiro, para depois achar que estava a ser enganado, “Calma, está a funcionar bem de mais!!! Aqui há gato!”

Terminou a subida ainda a tempo de ver o adversário a fugir.

Parecia tão perto, mas perto também estava o fim da prova e da sua energia.

Era agora ou nunca, pensou o Sommer, enquanto recusava, a arfar, um copo de água oferecido no abastecimento, e arranjava maneira de voltar a colocar no sitio o pulmão que entretanto se tinha desalojado. Esqueceu o amor que até então sentia pela vida e atirou-se a mais uma descida num single aberto de fresco, cheio de raízes sacanas.

O de Almeirim, ainda meio desconcentrado com a visão do gordo a atirar-se para cima de uma silva lá atrás a meio da subida, decide que já não estava para brincadeiras e aumenta a parada. Faltava meia dúzia de quilómetros e tinha o passarão na mão.

O Sommer desesperava com a velocidade com que o trapaceiro se afastava, e balbuciou qualquer coisa para o seu companheiro do lado, mas quando não teve resposta, reparou que estava sozinho...
Estaria a enlouquecer? Seria o fim?

Sozinho atacou aquela que já não era a última subida, mas parecia ser uma depois!

O de Almeirim, com medo, tinha fugido! Engendrou um novo plano maquiavélico, para dar a estocada final no gordo… Ia lançar a contra-espionagem! Deu ordem de arranque aos seus reforços, para baterem as várias estradas, que se cruzavam com a prova, a fim de saber o paradeiro do perseguidor e gerir o ritmo sempre naquela sua forma malandra, abrandar, para o gordo salivar, e voltar a arrancar para o badocha desesperar…

“Desculpas!”, respondeu a Sara do Filipe, quando o gordito no seu delírio disparou qualquer coisa sobre carregar um companheiro ferido aos ombros durante os últimos quilómetros. "Ele vai todo torto e já não sabe o que diz, arranca que é teu", disse a matreira numa sms enviada ao Filipe, que ganhou novo ânimo.

O plano do campino tinha resultado. Faltava ultrapassar uma última parede e depois deslizar para a meta.

Frustrado, lá atrás o esquilo dizia mal da vida e pontapeava pedras na descida enquanto pensava o que tinha corrido mal.

Já com o Estádio Municipal em vista o nosso Ribatejano, finalmente, com gosto riu, por mais uma vitória que lhe sorriu.

Mas faltava alguma coisa… Emoção talvez… Uma perseguição final?? Cadê do gordo??

Ainda do outro lado da encosta, triste, cansado, suado, desidratado, arrastava-se ao som do oboé. Pópópó…

O gordo pensava em dizer, quando chegasse, “À terceira é de vez!”, mas sabia que lhe esperava de resposta, “Não há duas sem três”…

Dobrou a encosta e rebolou com o que tinha, para o estradão que lhe faltava, apanhou a parede caiada do Estádio, e virou, envergonhado passou o portão para os metros finais de mais uma humilhante derrota.

Por mais um ano ficará o machado de guerra enterrado entre os restos da feijoada ao almoço. A azia da derrota deu lugar àquela provocada pelo enfardamento de enchidos e a rivalidade diluiu-se em cerveja preta.

O sol pôs-se sobre o campo de batalha de Casaínhos, segue-se mais um ano, milhares de quilómetros separam os nossos guerreiros do seu próximo embate. Alguns – muitos - destes serão palmilhados pelos dois, fingirão amizade e partirão juntos em aventuras por este mundo fora, acertarão o passo e até darão a mão para ajudar o outro, mas sabendo sempre que se estão a medir e a preparar para o próximo derby de Fanhões, a prova que fica para lá do espírito do trail.


segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Maratona do Porto 2016 - Quem dá o que tem...

Desde o final do ano passado que o regresso à Maratona estava nos planos. A ideia era focar o ano nas duas grandes provas (MIUT e UTMB) e depois aproveitar um ultimo trimestre descontraído que incluiria uma maratona do Porto, assim, como dizer, a rolar (lol). Mas a prova rainha não se compadece com estes paternalismos e acabou por ser um dos momentos mais intensos do ano. Afinal de contas, a Maratona é a Maratona…


Há 3 anos tinha sido a minha 4ª maratona, e este ano regressei ao Porto para a sétima. Muito mudou entretanto. Mudei eu, que passei a focar-me muito mais na corrida de montanha, e mudou a própria corrida, deixando a partida de ser no centro do Porto para junto ao rio, em Matosinhos. Sinceramente, esta mudança para mim é irrelevante. Não é isso que vai mudar a essência do percurso. Esse, na sua grande maioria, era e continua a ser centrado no Rio Douro. Para a frente e para trás, sempre junto ao Rio. De notar, isso sim, o aumento de público tanto em número como em entusiasmo, com algumas zonas muito preenchidas!


Vista do pórtico antes da partida.
Esta maratona trouxe outra novidade: pela primeira vez na vida fiz uma corrida em equipa. É muito raro, tanto em estrada como em trail, seguir muito tempo com a mesma pessoa. Não gosto de adaptar o meu ritmo, seja para andar mais depressa ou mais devagar. Mas fiz todos os treinos de preparação para o Porto com o Rodrigo, estávamos exatamente no mesmo ponto e tenho a certeza que, se tivéssemos corrido em separado, os nossos tempos teriam sido iguais. Ambos um pouco mais baixos, mas iguais.


Com o Alexandre (estreia) e Rodrigo (segunda maratona)
Como já vos tinha dito anteriormente, com o decorrer dos treinos mudei de ideias de uma maratona "tranquila" para um ataque ao meu melhor tempo, de 3h19. Defini com o Rodrigo que fixaríamos o ritmo alvo nos 4'40''/km, o que daria algo na casa das 3h17. Para mim, a definição do ritmo da maratona é dos passos mais importantes na preparação. Tem que haver uma perfeita noção do trabalho feito e das nossas capacidades. Não podemos correr o risco de sermos ambiciosos de mais e levar a marretada no fim. Mas se queremos ir no limite, estabelecer um ritmo baixo de mais pode ser frustrante, na medida em que chegamos ao fim com a sensação que podíamos ter dado mais.

A partida foi dada na avenida entre as rotundas da Anémona e do Castelo do Queijo. Com vários blocos divididos por tempo e numa avenida larga, era de esperar que o pelotão fluísse bem, mas curiosamente não foi o caso. Talvez por logo a seguir à partida termos subido a Avenida da Boavista, os primeiros 2km foram bastante confusos, com alguns esticões e paragens. Demorámos um bocado até entrarmos no nosso ritmo.


Junto ao Parque da Cidade.
Mais aceleração menos aceleração, passámos nos 10km confortáveis e certinhos no ritmo alvo. Já se sabe que os primeiros 10km de uma maratona são os 10km mais fáceis que vamos fazer, se assim não for algo está errado.

Enchido o chouriço na volta à doca de Leixões, a prova começou realmente com nova passagem na Rotunda da Anémona, aos 12km. O pelotão dispersou finalmente e corríamos, agora sim, à vontade. Distraídos pela paisagem, os quilómetros passaram sem darmos por eles e o ritmo foi aumentando sem grandes sacrifícios.  Por volta dos 19km, nova estreia! Já posso dizer que tenho algo em comum com a Jéssica Augusto, depois de um pit stop numa casa de banho portátil. Despachado o assunto, meti um bocado de mais andamento para voltar a apanhar o Rodrigo, o que aconteceu cerca de 2km depois, mesmo a chegar à Ribeira. Muita gente na rua e a incentivar na pequena rampa de acesso à Ponte D. Luis, que subimos algo sofregamente. A Meia Maratona estava logo ao virar da ponte, no empedrado de Gaia, a qual cruzámos 1h38 depois da partida - mesmo em cheio nos 4'40''!


Pórtico da Meia Maratona
Confesso que gosto de provas com retornos. É impossível não nos distrairmos à procura de caras conhecidas, a gritar incentivos e a ouvir alguns de volta. Essa é a melhor parte deste segmento do percurso de ida e volta à Afurada, porque de resto é um pouco desinteressante, com a agravante de ter partes muito chatas de empedrado. No entanto estávamos a sentir-nos bem, e o Pacer das 3h15 no raio de visão (estaria a 300/400m) dava uma motivação extra. O ritmo voltou a aumentar e a passagem aos 30km com 2h19 até indicava que estávamos a ganhar algum tempo ao objectivo, mas foi então que levámos o primeiro pontapé nas canelas: a rampa de acesso à Ponte D. Luis para a travessia de volta ao Porto.

Passagem na Ponte D. Luís
Imediatamente senti que algo tinha mudado. Falei com o Rodrigo e ele confirmou que se estava a sentir um bocado desconfortável. A nossa prova ia entrar numa nova fase, a partir daqui só teríamos os depósitos de reserva, a luta ia começar.

Ultrapassada a Ponte voltámos à direita para novo enchimento de chouriço de 1.5km para cada lado. O ritmo não era fluído e olhava constantemente para o relógio, ainda assim mantinha-se no pretendido apesar de muito mais esforçado. Nova passagem por baixo da Ponte D. Luís aos 32km. Disse ao Rodrigo: pronto, metade está feito.

Os 32km são uma marca importantíssima na Maratona, e no Porto ainda adquire um significado maior. Deixa de haver atletas mais lentos em sentido contrário e ficamos apenas nós e uma recta infindável de 10km. A contagem decrescente ia começar.

Ponte D. Luís vista da Ribeira
9.
O trigésimo terceiro km foi dos mais memoráveis pela passagem no túnel. Eye Of The Tiger a bombar, 5 ou 6 televisões com a famosa corrida do Rocky Balboa pelas ruas de Philadelphia, e alguns cartazes motivadores. Muito bom!


8.
Logo a seguir ao túnel, uma subida. Uff!! Fazemos um esforço enorme para volta aos 4'40'' mas ainda conseguimos. Com que consequência??


7.
Porra. Porcaria do vento tá sempre contra?? E as descidas? Só subimos?? Não se desce?? Ritmo já nos 4'50''. Ui, que vai custar!


6.
Disse ao Rodrigo que estava a quebrar, para ele avançar se quisesse. Claro que ele também estava a quebrar, estava exatamente como eu. Ritmo a diminuir, margem a desaparecer.


5.
Estou. Farto. Do. Douro.


4.
Batemos no muro com força e seguimos atordoados. Digo asneiras a uma cadencia maior que os passos por minuto. Apetece-me caminhar um bocado mas não o faço por causa do Rodrigo, provavelmente ele está a pensar o mesmo. Porra destas bandas que só tocam forró ou lá o que é esta merda!


3.
F***** para os 39km!! Farto desta m****, f*****!!! O ritmo foi definitivamente por água abaixo, estamos completamente em modo sobrevivência!


2.
MERDA.


1.
NUNCA MAIS NA VIDA FAÇO UMA MARATONA!! Mas como é que é possível passar pela placa dos 41km e achar que ainda falta uma eternidade?? Corro completamente tenso, curvado, com os maxilares serrados e literalmente a rosnar. Enchente brutal na subida de 500m que nos leva até ao Queimódromo.


0.5.
Olha a Sara com a Mel ao colo! Fim da subida! Então mas isto tá a acabar? Oh Rodrigo, tu queres ver que já tá??


0.195.
Braços no ar, pernas leves, ADORO ISTO!


0.
TÁ FEITO, TÁ FEITO!!

[Rodrigo, a sério que não uma foto nossa na meta??]

Ainda abraço o Rodrigo antes de desfalecer no chão. Olho para o relógio, 3h19m56s, 3 minutos a mais do que aquilo a que nos tínhamos proposto. Os mesmos 3 minutos a mais que demorei a fazer a segunda meia em relação à primeira.

Aquela recepção.
Um fracasso? Nem por sombras. Estou super satisfeito com a nossa prova e orgulhoso do Rodrigo, que retirou meia hora ao seu anterior registo e do Alexandre, que terminou brilhantemente a sua primeira maratona. Deixámos tudo, mas mesmo tudo nas ruas do Porto e chegámos com o depósito completamente vazio. Foi muito difícil, e já não me lembrava quão difícil é. No fim o tempo não foi mau, acabei por igualar praticamente o meu record. Digamos que foi uma batalha muito difícil, no Porto, que terminou num empate com sabor a vitória. Isto faz-me lembrar alguma coisa... :)




quarta-feira, 2 de novembro de 2016

20km de Almeirim - 2016

Já tentei aqui pelo blog algumas vezes, mas é muito difícil definir por palavras o que significam para Almeirim, e particularmente para mim, os 20km. Há alguns factos que o explicam: é das provas mais antigas e com mais tradição em Portugal, neste momento é a única com a distancia de 20km, foi palco para os grandes nomes do atletismo português brilharem (o record nacional dos 20km foi estabelecido em Almeirim). É isso tudo, mas os 20, para nós Almeirinenses, é muito mais que factos.  Os 20 são a nossa prova. Mais que isso, os 20 são a nossa cidade. Até podem ser organizados por uma minoria de Almeirinenses (e eu até conheço pessoalmente muito poucos), mas todos nós que já os corremos, que já aplaudimos ou que já esperámos numa rua fechada para passar os sentimos como nossos. É na nossa rua que todos os anos passam 2000 pessoas a correr, são as nossas águas que bebem, a nossa sopa que todos falam e as nossas caralhotas que arrancam sorrisos.


Este ano comemorou-se a trigésima edição seguida, a primeira sem o membro fundador e pioneiro do atletismo em Almeirim Gabriel Duarte, a quem se fez uma justa homenagem na partida. Mas a melhor homenagem que lhe fizeram foi precisamente não mudarem nada. Tudo nos 20 trabalha em piloto automático. Eles, as formiguinhas, sabem exactamente o que fazer e onde estar. Nós, os que corremos, só temos que dizer presente. E os outros, os que enchem a recta da meta, os que espreitam à janela, os de Alpiarça que  esperam à entrada da barragem, os dos restaurantes que esperam 5 minutos antes de ir preparar a sopa para os turistas, esses só têm que continuar a observar com um sorriso orgulhoso. Porque afinal, os 20 também são deles.

Homenagem ao Gabriel Duarte
Este ano corri os meus nonos 20. O plano era percorrê-los a ritmo de treino longo, já que no próximo domingo é a Maratona do Porto. Tentei convencer-me a mim mesmo disso, mas não precisei de mais que 3km a seguir à meta para saber que só me estava a enganar. Nos 20 é para dar tudo, ponto! Acabei no limite, apesar de um tempo uns bons minutos pior que o meu melhor, e com a certeza que as pernas no dia seguinte iam protestar (e assim foi). Mas que se lixe, nada paga aquele sentimento de passar a voar pelos nossos quintais, de desesperar pelo retorno em Alpiarça, de antecipar o sofrimento na subida da Compal e finalmente percorrer a Avenida 25 de Abril com a certeza que se deixou tudo, mas mesmo tudo, nas ruas da nossa cidade. Só assim é que vale a pena! 

A entrar na recta da meta. Eu disse que ia a dar tudo!

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Cá vamos andando...

Olá. 

Venho falar-vos do estado das coisas neste momento. 

É o seguinte: 'tá bom, obrigado.

Pronto, até uma próxima!

....

Bom, vou aprofundar que isto já está aqui ao abandono há algum tempo. 

Depois das 3 grandes provas do ano (MIUT, EGT e UTMB), estava mais que decidido tirar uma espécie de férias até ao fim de 2016. Digo uma espécie porque o plano nunca foi parar por completo. Para mim, parar por completo não faz sentido. Eu gosto essencialmente é de correr, não me organizo por "épocas" desportivas. 


Posto isto, encarei o treino para a Maratona com descontracção, mas nunca com leviandade. Respeito de mais a distancia para isso. Não falhei um treino de séries ou longo, mas por outro lado raramente fiz descanso activo, optando pelo clássico dolce fare niente 3 vezes por semana, por isso foram poucas as vezes que passei dos 4 treinos semanais desde Agosto. E a verdade é que a coisa nem correu nada mal! Recuperei muito do que tinha quando treinava exclusivamente para a maratona e alguns dos longos foram mesmo muito animadores. Três anos depois vou voltar ao Porto, e se o plano inicial era fazer uma prova tranquila, nesta altura já estou a apontar para o ritmo que me deu o record pessoal (3h19) há três anos em Sevilha. Não sei se dará, mas vai ser intenso de certeza. Vou dar tudo o que tenho.

Entretanto, já este domingo é dia de correr em casa.



Vai ser a minha 9ª participação nos 20km de Almeirim, uma prova obviamente muito especial para mim. Infelizmente, por ser apenas uma semana antes da Maratona, não vou poder dar-lhe o que ela merece. Vou antes meter um limitador e andar ao ritmo desejado para o Porto. De qualquer maneira, é sempre um dia especial para mim e para a própria cidade, cuja história se confunde com esta prova. Ainda por cima pelos vistos nesta altura já é a única prova de 20km em Portugal! Que assim se mantenha durante muitos anos.

Apesar de treinar para a maratona me dar bastante prazer, confesso que já há algum tempo que ando desejoso por voltar a andar horas no monte. Até já sonho à noite com isso! Não paro de pensar nos objectivos do ano que vem e até já tenho as 3 grandes praticamente definidas! Outro dia falaremos disso. 

Ainda este ano, mal acabe a Maratona, vou imediatamente voltar aos trilhos para fazer outras duas provas onde me sinto em casa. Casainhos e Grande Trail das Lavadeiras.


Os trilhos de Casainhos são dos meus preferidos, e depois de apenas duas participações já são um local de romaria anual obrigatória (crónicas de 2014 e 2015). Ainda por cima este ano tenho que voltar a meter no lugar um esquilo com um elevado Índice de Massa Corporal (contexto). 

O Grande Trail das Lavadeiras foi sem dúvida alguma a prova que mais me surpreendeu o ano passado. Um percurso muito interessante construído literalmente a força de braços por pessoas que além de tudo sabem receber muito bem. Aconselho toda a gente que for da zona centro a aparecer por lá, dou-vos a minha palavra que não se vão arrepender.

Bom, até depois dos 20!


sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Acabou :(

Oh. Acabou-se... :(

Oito meses de antecipação, duas semanas de ansiedade, 3 dias de intensidade máxima e finalmente uma semana a flutuar numa nuvem de endorfinas depois... PPUUUMMM aterrei de cabeça numa tenebrosa depressão pós-UTMB. Vejo fotos, leio relatos (deste e doutros anos), vagueio pelo vale de Chamonix enquanto insiro dados numa folha de Excel, mas a verdade é que acabou mesmo. 

É altura de seguir em frente.


Antes disso, para fechar o capítulo Monte Branco, há algumas considerações que queria fazer em relação à prova e semana UTMB. 
  1. Como disse o Sr. Ribeiro o ano passado, "Foi a pior prova que fiz na vida e a melhor e a pior e a melhor e isso vezes mil." A minha prova foi exactamente isto. Foi um desastre, muito longe do que imaginava que ia ser. Não sei exactamente onde falhei, não consigo apontar um momento ou uma decisão errada, mas a verdade é que foi completamente diferente do que planeei. A prova que tinha imaginado, a das 40 horas, meti-a na prateleira e arregacei as mangas, porque a outra prova, a das 44h30, tive que a ir arrancar lá bem ao fundo, a um sítio que nem conhecia. Foi linda, intensa e emocionante. Foi isso tudo! Mas também foi enervante, stressante, dolorosa e, há que dizê-lo, de um sofrimento muito grande. Mas sabem que mais? Não queria que fosse nem um bocadinho diferente.
  2. A semana UTMB em Chamonix é unanimemente reconhecida como a semana anual do trail a nível mundial. Realmente é verdade aquilo que toda a gente diz, ali vive e respira-se trail em todas as esquinas. Mas, e agora vou ter que ser sincero, não fiquei grande fan deste ambiente pré-prova em Chamonix. É demasiada confusão para mim. Quando andava na GIGANTE feira de trail só conseguia pensar qual era o caminho mais rápido para a saída. Os preços (de tudo) são muito altos, há gente e movimento a mais. No dia do levantamento do dorsal cheguei a casa completamente rebentado, e no dia da prova, antes da partida, comecei com uma valente dor de cabeça. Eu sei, sou um bocado bicho do mato, e de facto o ambiente no km inicial é absolutamente eletrizante, além da loucura que foi o km final, mas o resto foi de mais para mim.
  3. O percurso da prova é perfeito. Não mudava um centímetro, mesmo na terrível subida final a Tete aux Vents. Não é demasiado técnico, mas também não é corrível ao ponto de se tornar monótono. Pelo contrário, é sempre muito variado, com todo o tipo de subidas e descidas. A paisagem é absolutamente incrível, o apoio de toda a gente é indescritível, os abastecimentos são completíssimos, as marcações não deixam um pingo de dúvida.. Enfim, para mim é a prova perfeita. Se estão a pensar fazer 100 milhas esta é A prova, e se estão a considerar os 100km, o CCC é uma excelente opção.
  4. A recuperação (fisica) tem corrido muito bem. Tenho corrido, pouco, sempre com muito prazer e sem dores, além das mazelas nos pés que entretanto já sararam completamente. 
  5. Para terminar, quero agradecer a todos os que acompanharam a prova on-line, os que me felicitaram por a ter terminado e depois pela crónica que escrevi daqueles dias (que numa semana já é o segundo artigo mais lido de sempre por aqui!). Foi realmente emocionante reler tudo o que escreveram, e se não vos agradeço e respondo a todos individualmente é porque não quero que seja uma coisa demasiado forçada. Estas ultra-provações, além de físicas, são uma experiência muito emocional, acreditem que senti todo o vosso apoio durante a prova e mimo nos dias seguintes. Obrigado a todos, do coração.

Então e o que se segue agora?

Pois bem, está planeado um regresso às origens: a Maratona. Já há algum tempo que tinha vontade de voltar a correr a mítica e o regresso está marcado para dia 6 de Novembro no Porto. No entanto não estou com vontade de me dedicar a ela a 100%, por isso vou substituir alguns longos por treinos no monte. Fazer apenas o suficiente para correr uns 42.2km confortáveis e passar um fim de semana com amigos no Porto. Para o trail há o regresso certo ao irritante Trail de Casainhos (tenho a certeza que desta é que aquilo não vai prestar para nada!) e em principio à terceira edição do Grande Trail das Lavadeiras. Duas provas especiais para mim. Até ao fim do ano ainda irei participar na São Silvestre de Lisboa, para tentar finalmente baixar aos 37 minutos nos 10km. 

Entretanto já se fazem planos mais ambiciosos para 2017. Por enquanto só uma certeza: o MIUT 2017. Vou para o Hat-Trick! Não consigo não ir ao MIUT. Este ano será acompanhado por muitos amigos e com um objectivo especifico que mais tarde vos falarei. Até lá, em principio participarei nos Abutres e no Ultra Piodão, duas das minhas provas preferidas. Quanto às provas grandes, além do MIUT, tenho outras hipóteses em mente, mas ainda muito por decidir. Até lá, vamos falando :)

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Ultra Trail du Mont Blanc 2016 - A viagem de uma vida.

Às vezes, numa grande ultra maratona, há um momento em que deixas tudo para trás. Esqueces os objectivos de tempo ou de classificação, esqueces aquela celebração que tinhas sonhado fazer durante meses, esqueces as paisagens, esqueces onde estás, como ali chegaste, a tua família e os teus amigos. Juntas tudo, enfias dentro de uma grande mala e arrumas a um canto. De repente toda a tua vida se resume a um único objectivo. Tudo o que fazes tem que ser com a maior eficácia, sem distracções, com concentração, foco e determinação. Geres as dores, o tempo, o esforço. Tudo tem que funcionar perfeitamente afinado e oleado. Tudo para aquele que se tornou o grande objectivo da tua vida: conquistar o próximo metro.


Não vos vou dizer que o UTMB era o sonho da minha vida. Na verdade, nem sequer faço trail assim há tanto tempo! Tudo começou em 2011, na Lousã, e desde então as coisas fugiram um bocado do meu controlo. De repente estava a fazer ultras, depois provas de 3 dígitos, depois o MIUT e, de repente, comecei a pensar "e se...?". Fiz as provas qualificativas, inscrevi-me, tive sorte no sorteio e em Janeiro deste ano estava lá dentro. Parecia tudo tão simples! A própria qualificação para o UTMB sabia a conquista, agora tinha oito meses para me preparar, ir lá desfrutar da prova e tirar umas fotos em Chamonix. Confesso que durante estes oito meses raramente pus a hipótese da coisa correr mal. Delineei o plano a régua e esquadro e preparei-me bem, tudo afinado ao milímetro, só faltava correr as 100 milhas! Mas, de repente, chegou aquele momento. O momento em que deixei isso tudo para trás.

Horas antes desse momento, na Place de l'Amite, em Chamonix, estava de olhos fechados, arrepiado, a ouvir Vangelis no sistema de som enquanto um ambiente absolutamente frenético explodia por toda a vila. Entalado entre 2555 corredores e, literalmente, milhares de espectadores, limpei umas lágrimas malandras que se formavam, dei um ultimo abraço ao meu companheiro João e ouvi a contagem decrescente com o pórtico da meta a cerca de 200m de mim. Estava na hora, ia começar a maior aventura da minha vida.


A primeira etapa da prova era uma espécie de volta de consagração com 9km. E, meus amigos, consagração é uma palavra pequena de mais para descrever o primeiro destes 9km! Chamonix estava completamente à pinha, a lembrar aqueles sectores com mais público do Tour de France, a puxar desde o primeiro até ao ultimo atleta! 

Chamonix - Les Houches. 9km, 118+
Apesar de serem 9km em trilhos largos e estradões, era impossível dispersar o pelotão, éramos demasiados. Seguimos sempre junto ao Rio L'Avre, que corria com um caudal furioso proveniente da neve e glaciares que derretem no verão. Um sobe e desce muito suave, a entrar nos típicos bosques alpinos, muito cerrados a cotas baixas (perto dos 1000m). Seguimos todos em silêncio, nitidamente atordoados pelo entusiasmo demonstrado pelos milhares de pessoas que foram pontuando estes primeiros quilómetros. Em Les Houches tive o primeiro encontro durante a prova com a minha super comitiva: a Sara, Mel & Manel mais o Zé Nuno e a Joana, dois amigos que passaram estes dias connosco. Eles próprios estavam a começar uma grande aventura e na altura nem sabiam o que os esperava!

Encontro com a comitiva em Les Houches
O ritmo até Les Houches andou pelos 6min/km, o que demonstra bem como este segmento foi fácil. Mas as facilidades iam terminar muito rapidamente. Logo de seguida iríamos apanhar a primeira de 10 montanhas que haveríamos de virar. Vamos a ela!

Les Houches - Saint Gervais. 13km, 883+
Apesar desta ser a primeira subida da prova, continuámos em modo "vamos ser simpáticos com eles". Com o vale de Chamonix a ficar pequeno lá em baixo, subimos os 800m em 6km num estradão simpático, sempre aos zigue-zagues que cruzava várias vezes uma pista de ski. Nesta altura tudo era maravilhoso. Não sabia para que lado olhar, é espectacular a sensação de estar completamente imerso nas montanhas, um postal vivo a 360º. Cumpri escrupulosamente com o plano de alimentação, uma barra a cada hora. Sentia-me muito bem e controlado, mas a lutar com o desconforto provocado pelo calor e humidade muito altos. Felizmente (achava eu) a noite estava a chegar. 

Foto do Miro Cerqueira a meio da primeira subida
A descida foi exactamente o que eu imaginava que seria o UTMB. Um trilho largo, simpático, sempre aos ésses pelo meio de árvores gigantes e nascentes de água, muita erva verdinha, chão de terra bom de correr, declive pouco exagerado..uma delícia! Logo aqui se notou uma característica destes trilhos alpinos: quase sempre do topo da subida dá para ver o fundo da descida. É uma sensação quase vertiginosa perceber o caminho que temos pela frente, invariavelmente muito longo! Esta descida, por exemplo, perdia 1000m em 7km. Era das mais fáceis da prova e provavelmente a mais longa que já tinha feito até àquela altura! Só bastante mais tarde iria perceber que estas descidas deliciosas me deixariam tão perto do abismo.

Em Saint Gervais, nos 818m (cota mais baixa de toda a prova) teríamos o primeiro abastecimento sólido. Ainda demasiada confusão para o meu gosto, cumpri o plano de ir trincando qualquer coisa nos abastecimentos para complementar barras/geis e saí logo dali. A noite entretanto tinha caído mas guardei a paragem para colocar frontal e camadas térmicas para quando estivesse ao pé da Sara e do resto da comitiva, que estavam a seguir ao abastecimento à minha espera.


Vesti o corta vento e coloquei o frontal. Ainda estava calor, mas é importante não deixar o corpo arrefecer e ter que despender energia para o voltar a aquecer. Foi aqui, aos 21km, que finalmente acabaram as facilidades. Esperava-nos nada menos que uma subida com 24km e cerca de 2000d+. Despedi-me deles, roubei-lhes uma fatia de pizza e meti a minha game face. Só os voltaria a ver em Courmayeur, 60km depois. O UTMB ia começar.

St Gervais - Les Chapieux. 30km, 2000+
Foi nesta mega subida que finalmente me apercebi da tarefa hercúlea que ainda teria pela frente. Rapidamente percebi uma coisa: no UTMB é tudo em grande. Todas as subidas são intermináveis, todas as descidas são massacrantes. Esta subida até Croix du Bonhomme, muito perto dos 2500m de altitude foi das que mais me impressionou. Desde St Gervais foram 4h30 sempre a subir. Primeiro 10km suaves, num estradão simpático com muita gente a assistir, mas à medida que conquistávamos metros à montanha o nível ia subindo. O estradão passou a trilho largo, que depois passou a trilho e finalmente a caminhos cheios de pedra muito técnicos. Cada vez mais inclinado. Subi sempre controlado, mas um certo desconforto estava a apoderar-se de mim. A muita humidade, que me fez transpirar litros, também me fez perder muitos sais e um dos quadricepes andou muitas horas no limiar da câimbra. Aumentei a toma de sais para tentar controlar a situação, o que deve ter provocado algum desequilibro já que comecei a ter dores agudas na barriga. 

A subida, essa, não facilitava. A cada cotovelo, quando parecia que estávamos muito perto do fim, ela apresentava-nos mais um carreiro interminável de luzes montanha acima. Era quase desesperante, e não era o único a pensar assim. A certa altura um inglês atrás de mim suspira e diz preocupado "my God, it just goes on and on!".

Quatro horas e meia depois finalmente virei a montanha. Esta tinha deixado marcas, principalmente na minha moral. Custou-me, a filha da mãe. Felizmente a descida (mais 5km com 900D-) foi das mais divertidas de toda a prova e aproveitei para desfrutar bem dela. É engraçado que estou a escrever isto e a perceber exactamente os sítios onde errei, mas lá chegaremos... Entretanto estava a aproveitar o trilho quase infinito, sem nenhumas derivações (esta prova quase que nem precisava de marcações) que serpenteava encosta abaixo até desembocar num estradão. Aproveitei mais uma vez para abrir a passada e ganhar algum tempo, quando cheguei ao abastecimento já tinha recuperado o ânimo. Peguei numa sopa e num copo de café e sentei-me na rua, onde estava menos confusão, a comer calmamente. À saída do abastecimento foi altura de uma inspecção surpresa do material obrigatório (atenção, nesta prova não facilitam MESMO) e parti de barriga cheia para o prato seguinte, e que prato: a conquista dos Col de La Seign e des Pyramides Calcaires.

Les Chapieux - Lac Combal. 15km, 1300+
O UTMB é uma prova pensada ao mais ínfimo pormenor, e acho que a secção seguinte foi a prova disso. Tanto a subida a Bonhomme como a descida a Les Chapieux foram muito duras, agora em vez de nos colocarem novamente muita carga em cima, apanhámos um estradão com 4km a subir ligeiramente pelo vale acima. Foi o ideal para recuperar da tareia anterior e preparar o que aí vinha. Claro que não durou muito, rapidamente se começaram a perceber as luzes brancas lá MUITO em cima na montanha. Saímos do estradão e entrámos em mais um daqueles trilhos inacabáveis aos ésses por ali acima.

Foi o primeiro ataque aos 2500m, no Col de la Seign. A subida foi toda feita em escuridão total, não havia luar e a única luz era a dos nossos frontais. Sempre em silencio, só intercalado com o tilitar dos bastões e os ocasionais suspiros desesperados. É engraçado que sendo a prova com mais participantes onde participei foi simultaneamente a mais solitária. Nunca andei sozinho no trilho, mas praticamente todas as minhas tentativas de meter conversa em inglês (não falo uma palavra de Francês ou Italiano) não surtiram efeito, e portugueses era raro encontrar. 

A chegada ao primeiro Col coincidiu com as primeiras luzes do dia, ainda antes das 5 da manhã. Muito muito leve, mas o suficiente para inaugurar um dos espectáculos mais incríveis a que já assisti. De repente o negro da noite começou a dar lugar aos contornos dos monstros que nos rodeavam. Ali, por mais altos que estejamos, há sempre uma montanha mais alta para nos intimidar. Tentava adivinhar qual dos triângulos perfeitos e monstruosos seriam as famosas Pyramides Calcaires enquanto fazíamos uma pequena descida de 200- para voltar a subir, desta vez até muito perto dos 2600m de altitude no Col des Pyramides. 

Esta foi das secções mais técnicas de toda a prova. Muita pedra, calhaus de todos os tamanho soltos, gelo e neve, muito difícil a progressão. Já tinha ouvido várias vezes que só diz que o UTMB não é técnico quem nunca lá foi, e agora apoio 100% essa afirmação. As dificuldades continuaram na descida, toda feita com muito cuidado e quase sempre a passo. Desta vez já não havia trilho divertido para recuperar, havia dureza e dificuldade. A única coisa que atenuava, e até fazia esquecer este banho de realidade, era o espectáculo indescritível do nascer do sol sobre o Lac Combal, a 2000m de altitude. 

Tirada por mim
Cheguei ao abastecimento do Lac Combal, km 66, com 12 horas de prova, 4 horas antes do corte. Estava bastante satisfeito com a minha prova até então. A primeira noite teve momentos complicados, mas estava a comer e beber bem, nunca falhei uma hora de intervalo. Estava naturalmente cansado e amassado, mas sem sono e com energia para continuar. Sentei-me no abastecimento a comer mais uma sopa e um chá quente, dois dedos de conversa com um grego e fiz-me rapidamente ao caminho. Só faltavam 13km para Courmayeur, onde estava a minha comitiva, e eu estava deserto para estar com eles!

Combal - Courmayeur. 13km, 468+, 1250-
No entanto, é quando menos esperamos que tudo muda. Uma subida relativamente fácil, com pouco mais que 400+, por um trilho simples em terra, numa paisagem de outro mundo, quase que me arrumou. O ritmo sereno e controlado que tinha aplicado em todas as subidas de repente tornou-se penoso. Custava-me a mantê-lo e a tentação de parar era crescente. Sentia a cabeça alheada, como se não estivesse ali, e as pernas tremiam. Uma ligeira tontura fez-me parar e debruçar-me sobre os bastões. Foi ali que tudo mudou.

Faltava pouco mais que 1km para chegar ao Arête du Mont-Favre, topo da subida (2417m). Custava-me a respirar e parava 30s a cada 4 passos. Uns americanos ao verem-me sentado perguntaram-me se tinha alguma coisa doce para comer, que estava muito pálido. Meti dois géis de rajada, ligeiramente preocupado. Quando cheguei ao topo sentei-me numa pedra e tentei meter a minha melhor cara, não queria que os oficiais da prova me viessem fazer exames médicos. Nesse bocadinho enquanto lá estive sentado a realidade bateu-me como uma porta na cara: faltam 100km para terminar a prova e eu levei uma marretada com toda a força. E agora...?

Bem, um passo de cada vez, vamos à descida.

Foi a segunda mais massacrante de toda a prova. Nove quilómetros onde se desceram 1250m. Uma inclinação brutal durante muito tempo, ainda por cima em trilhos bastante técnicos que exigiam manobra e travagens constantes. Uma tareia monumental para o core e principalmente os quadricepes! A entrada em Itália foi celebrada com um abastecimento a meio da descida, no Col Checrouit. Lá estava uma banda a tocar, italianos a falar alto, boa disposição e ... pasta! Não estivéssemos nós em Itália. Que bem que soube! 

Esta paragem a meio também serviu para dividir a descida em termos de dificuldade, a segunda parte foi onde perdemos quase todo o desnível num trilho super inclinado a fazer lembrar muito o MIUT. O trilho era belíssimo, não me entendam mal, sempre embrenhado na floresta com constantes mudanças de direcção, mas muito duro. Pumba, pumba, pumba, sempre a bater, não dava descanso! Estava completamente atordoado quando entrei no alcatrão de Courmayeur. Descemos brutalmente de altitude e a minha confiança seguiu o ritmo, estava muito lá em baixo. 

Courmayeur era onde estava colocada a única base de vida da prova, dentro de um pavilhão. Lá estava finalmente a minha comitiva para me receber. O interior do pavilhão, no local onde era permitido recebermos assistência, parecia um cenário de guerra. Dezenas de corpos estendidos no chão, apáticos, as famílias com ar preocupado sem conseguirem fazer nada, um calor brutal, muito abafado. Depressa decidir sair dali. Disse à Sara e aos miúdos para irem para o exterior, fui comer e depois encontrar-me-ia com eles na rua. 

Chegada a Courmayeur. Com o Zé Nuno lá atrás a puxar por mim.
Já na rua expliquei-lhes o ponto de situação. Era simples: tinha rebentado. Estava a meio da prova e tinha rebentado. Olha que novidade, pensam vocês, rebentar numa prova de 100 milhas! Pois, o problema é que quando rebentei estava a 100km e quase 30 horas da chegada. Psicologicamente foi simplesmente pesado de mais, rapidamente comecei a entrar num lugar muito negro. 

Quase falecido em Courmayeur
Decidi enfrentar um ponto de cada vez. Agora estava em Courmayeur, seguia-se uma subida muito dura, foi para lá que virei o meu foco. Demorei-me bastante na base de vida, talvez uma hora. Deitei-me na rua junto à minha comitiva sem conseguir dizer grande coisa. Logo ali naquele instante apeteceu-me lá ficar. Mas porra, nem para eles era justo. Não, vamos ver como corre a subida!

Courmayeur - Refuge Bertone. 5km, 800+
Esta subida seria decisiva. Se fosse como a anterior a prova estava condenada, ainda me faltava ganhar mais de 5000D+ até Chamonix, tinha que conseguir subir. Tomei um gel no ponto onde ela inclinou, o que me deu alguma confiança. Continuava a conseguir comer e beber bem, enquanto mantivesse o depósito com combustível podia ser que ele continuasse a carburar. Passou muita gente por mim na subida, nunca consegui encostar em ninguém, mas a verdade é que a fui papando metro a metro, quase maquinalmente, sem parar. 

Tal como na chegada, onde descemos a pique, foi a pique que saímos de Courmayeur, e quando finalmente o vale se revelou por trás das árvores no topo da subida foi mais um daqueles momentos arrepiantes. Mais impressionante ainda que o vale de Chamonix, a cidade Italiana está instalada na única área que não é composta por paredes monstruosas.

Gostei desta subida. Gostei ainda mais de ter chegado ao refúgio com ânimo, sem nunca ter parado. Nesta altura preferia ainda não pensar se conseguia acabar a prova ou não, faltava tempo de mais, mas agora estava concentrado noutra coisa: a travessia entre os refúgios Bertone e Bonatti.

Ref. Bertone - Ref. Bonatti - 7km, 300+
Esta travessia estava para mim como o ex-libris do UTMB, tal como a travessia entre os picos Areeiro e Ruivo no MIUT. E, meus amigos,  não desiludiu nem um bocadinho. Um trilho perfeito, com muito sobe e desce, dezenas de ribeiros a atravessá-lo com água gelada e boa para beber. Sempre na encosta de uma montanha totalmente coberta de verde do lado direito, e o esplendoroso maciço do Monte Branco do lado esquerdo, separado por um vale profundo 1000m abaixo, uma coisa abismal. Cruzaram-se connosco dezenas de caminheiros que estavam ali a passear. Gostava de voltar ali com a Sara e os miúdos, é daqueles sítios que todos deviam visitar antes de morrer.

Reparem no trilho do lado direito. Aqui até eu sou bom fotógrafo.
Nesta fase estava num período tranquilo da minha prova. O ponto baixo de Courmayeur estava ultrapassado. Claro que me sentia cansado, com 90km nas pernas também mal seria. Acreditava que conseguiria continuar mais uns bons quilómetros, mas a sensação de achar que estava feito continuava muito distante. 

O Refuge Bonatti chegou depois de uma subida de 200m a pique, só porque o senhor Bonatti achou que uma casinha aos 1900m não era fixe o suficiente. No abastecimento haviam várias vitimas do calor, terá sido um factor decisivo para um número record de desistências em 2016 (42%!). Felizmente, o calor que para mim costuma ser um factor super limitativo, não me estava a afectar muito. Talvez porque bebi água e molhei-me em TODAS as nascentes que vi, e acreditem que foram muitas neste percurso. Descansei uns minutos no abastecimento e fiz-me à descida até Arnouvaz, base da grande subida até ao Grand Col Ferret, ultima incursão aos 2500m de altitude. Curiosamente, neste pequena e aparentemente inofensiva descida, reparei numa coisa: estava muito entrevado a descer. Pouco fluído, muito esforçado, com pequenas dores aqui e ali... Era estranho, nunca me tinha acontecido. Preferi não ligar.

Arnouvaz - Grand Col Ferret. 4.5km, 760+
A subida ao Grand Col Ferret marcava para mim um ponto de viragem importante na prova. Era a ultima vez que íamos tão alto e de seguida tinha uma descida de 20km que em principio daria para carregar energias para a parte final da prova. Precisava de a conquistar para definitivamente ver a luz ao fundo do túnel, como tal encarei-a com toda a sobriedade. Comi bem no abastecimento, descansei uns minutos e fiz-me a ela. Devagar mas constante, como sempre.

O que eu não sabia é que esta subida além de determinante é das mais espectaculares do percurso, pelo menos das que fiz de dia. O trilho era perfeito. Pouco técnico, serpenteava encosta acima com inclinações monstruosas e cotovelos a cada 200m, só para termos a certeza que tínhamos uma boa vista de toda a área. Por todo o lado ouvia-se o barulho da água a correr dos glaciares, como se estivéssemos em pleno inverno. O maciço do Monte Branco parecia ganhar uma nova cara cada vez que olhava para ele, e quando chegamos ao Col e pudemos finalmente ter uma vista desafogada do Vale d'Aosta, com o Monte Cervino a destacar-se, foi realmente de tirar o fôlego. Que privilégio poder estar ali!

Uma das vistas lá de cima.
Nesta altura mandei uma mensagem à Sara: "Só não acabo isto se ficar barrado. Vai ser até à ultima gota". 

Devia ter ponderado melhor isso, porque a seguir... bem, ficou pouco mais que uma gota.

Grand Col Ferret - Champex. 24km, 1500-, 400+
Eu adoro descer. Gosto de uma boa subida, mas adoro descer. Não sou o gajo mais rápido, nem nada que se pareça, mas fazer uma boa descida é das coisas que me dão mais prazer no trail. À minha frente tinha 1500m de descida distribuídos por 20km. Isso mesmo, leram bem. Vinte quilómetros a descer. Nos sítios onde treino, Montejunto e Sintra, consigo no máximo descer durante 2 ou 3km. Na Serra da Estrela consegui um pouco mais que isso e no MIUT talvez uns 5 ou 6. Nada que sequer se aproxime desta monstruosidade. Isto é sem duvida alguma um factor determinante quando se apanham descidas destas, muito mais do que nas subidas longas.

Bem, mas não era altura de pensar nisso. A descida começava num trilho maravilhoso muito fácil de correr, e eu fiz-lhe a vontade. Corri que me fartei, feliz da vida! Foram 4km sempre a dar, a descer lentamente para dentro do vale, uma maravilha! Depois, já na Suiça, o trilho mudou. Estreitou bastante e ganhou pedras no caminho, mas continuei a forçar. A Sara, os miúdos e o resto da comitiva estavam lá em baixo à minha espera! Mas a descida não abrandava, nem facilitava. Continuou, e continuou e continuou... O trilho era cada vez mais desafiante, sempre com pequenas subidas pelo meio. Segmentos com muita pedra que nos obrigavam a travar constantemente, outros cheios de raízes que obrigavam a mudar de direcção e massacravam os pés. E ela continuava e continuava, sem fim à vista. Será ali La Fouly? Hm, não.. demos a volta à montanha e continuámos a descer. É ali? Não. Mais descida...

Quando finalmente cheguei a La Fouly, a meio da descida, estava devastado. Parecia que um comboio me tinha atropelado. Vinha atordoado, sem saber bem o que tinha acontecido. Mudei o chip e voltei novamente a um lugar sombrio, voltei a preocupar-me com gestão do tempo de corte e rapidamente fiz as contas para quanto tempo poderia ficar no abastecimento para poder continuar com uma boa margem de segurança. 


No abastecimento a Sara, os miúdos, Zé e Joana dão-me muito ânimo, mas vejo na cara deles que percebem que estou a cair. Também não ajuda eu já não conseguir articular frases com mais que 5 palavras. Deitei-me num parque de estacionamento junto a eles e ali permaneci uns 15 minutos, totalmente imóvel de olhos fechados. 

Um bocado macabro.
Levantei-me com frio, a noite estava a cair. Decidi preparar-me para ela e não fui meigo com as camadas térmicas: camisola interior térmica, tshirt, corta vento e impermeável. Na cabeça coloquei o buff e o frontal. Sabia que estava altamente debilitado, não precisava nada de entrar numa situação de hipotermia que naquele estado muito facilmente se formaria. Despeço-me deles e preparo-me para mais 10km de massacre a descer. Assim que entro novamente no trilho BRRRUUUMMM um trovão gigante precedido de um raio! Oh oh, temos festa!

Os 10km de descida foram muito parecidos com o que ficou para trás. Reparo que não devo ser só eu que vou mal, já pouca gente me ultrapassa. A trovoada veio mesmo e e fustigava agora brutalmente o vale. Chuva grossa e relâmpagos que iluminavam todo o vale, trovões que pareciam avalanches de neve. Um espectáculo que iria apreciar muitíssimo, não estivesse eu já tão perto do abismo que é a completa exaustão física. Custava-me terrivelmente a descer, já implorava por uma subida. Ela chegou aos 120km, pouco depois de um abastecimento improvisado no quintal de uma família onde bebi sentado um grande copo de café quente. 

Iniciei a subida de cerca de 400+, pequena para o resto da prova, com a confiança totalmente abalada. O trilho ainda por cima não facilitou, era cheio de raízes, com lama e chuva, secções a pique e pequenas descidas enervantes que nos afastavam da cota do abastecimento. Tal como no Lac Combal, volta a ser uma subida "pequena" a dar uma estocada enorme. Tenho que descansar várias vezes e afundo-me cada vez mais. Tenho dores horríveis nos pés, normais de tanta pancada, que se acentuam cada vez que piso uma raiz. Sinto-me a cair cada vez mais a pique. Tento agarrar-me ao facto de estar bem dentro do tempo limite e à tal mensagem da última gota, mas o depósito parece-me perigosamente vazio. Teria já gasto a ultima gota?

Chego ao abastecimento de rastos, física e animicamente. A Sara encontra-se comigo dentro da tenda (as regras deixam uma pessoa por atleta dar assistência lá dentro) e apercebe-se imediatamente do meu estado. Deito-me num banco corrido e peço-lhe que me vá buscar uma sopa e um café. A Mel quando me vê deitado naquele estado começa a choramingar e eu sinto-me terrivelmente mal com isso. Forço um sorriso e digo-lhe que o pai está só um bocadinho cansado, que dali a nada íamos brincar os dois. Ela fica muito caladinha a fazer-me festas, coitadinha... A Sara percebe que aquilo não estava a ser bom para ninguém e diz-me que se vai embora, para eu ficar ali meia hora deitado. Digo-lhe que muito dificilmente vai dar, e estava a ser sincero. Naquela altura não me estava de maneira nenhuma a ver a completar os 46km que faltavam até à meta. Ela dá-me um beijo e diz-me que não me preocupe, que faça o meu melhor. Prometi-lhe que ia fazer uma ultima tentativa. Saíram e eu desliguei.

Foto tirada pela minha filha no abastecimento.
Meia hora depois de um sono leve, deitado em cima de um banco corrido, voltei a sentar-me. Estava ensopado e a tremer de frio, mesmo com todas as camadas. Empurrei umas colheres de sopa que já estava fria e senti-me terrivelmente desconfortável quando me forcei a levantar. Mandei uma sms ao Chico, ao Rodrigo e ao Sommer, que desde o início me vinham a enviar mensagens de ânimo, a dizer que ia tentar uma ultima vez, mas que sentia que aquele não era o dia.

Há quem diga que o UTMB só começa aqui, em Champex. Pois bem, eu estava a começar com um pé e meio de fora.

Champex - Trient. 17km, 900+
Cá estavam elas. As famosas 3 montanhas finais do UTMB. Parecem pequenos montinhos, mas cada uma delas tem perto de 1km vertical. A dificuldade vai crescendo de uma para outra, como um videojogo macabro. Enquanto faço aquela pequena descida antes da subida, um italiano diz-me "isn't it just beautifull when you have to go downhill just to go uphill?". Nunca tinha pensado nisso daquela maneira mas...sim, consigo ver a beleza nisso. Acho eu.

A subida teima em não se mostrar. Andamos ali a engonhar em trilhos que fazem lembrar a Lousã, para cima e para baixo. Começo a enervar-me e a ficar impaciente, vamos lá, de uma vez por todas! Até que, olho para cima e vejo umas pequenas estrelas lá muuuito em cima, no escuro. Atrás de mim um colega diz, assustado "oh my God....". Não eram estrelas, eram frontais. O monstro revelou-se.

Respiro fundo e ataco o trilho. É mesmo como eu gosto: trabalhoso. Daqueles que obrigam a tricotar por entre rochas para encontrar um caminho que envolva a menor amplitude de movimentos possível. Já estou quente nesta altura e subo vagarosamente quando o telefone toca. Mensagem do Sommer: "Agora já está feito, tens tempo. É só ir andando.". 

Foi então que se deu o momento que vos falei no inicio desta crónica. O momento em que deixei tudo para trás. Deixei de pensar na lama, nas subidas, nas descidas, nas dores, no corpo, nos abastecimentos, nos géis e nas barras. Deixei de pensar em tudo menos numa coisa: o próximo passo. O próximo metro. A próxima meta. O sucesso estava à distancia de um metro. Um a seguir ao outro. Passinho atrás de passinho. Fui subindo. Concentrado, focado. Só isso interessava, dar o próximo passo.

Cheguei a La Giete, no topo, e era um homem novo. Fiz contas rápidas e percebi que a subida tinha sido feita a um ritmo bastante aceitável. Inacreditável. 

Comecei a descida para Trient com o mesmo propósito da subida. Os quadricepes doíam-me horrivelmente, a grande descida dos 20km tinha-os destruído completamente, mas isso agora estava em segundo plano. Se não conseguia correr andava! Mais 6km a descer, mais 800- no corpo, mais uma tareia. Mas a primeira das três montanhas estava virada e era este o meu ar à entrada do abastecimento:


Lá no abastecimento já não estava a Sara, mas estava o Zé Nuno e a Joana. Já tinham feito centenas de quilómetros naquele dia, foram levar a Sara e os miúdos a casa e voltaram sem dormir para irem ter comigo a Trient. O Zé é dos meus amigos mais antigos, quase um irmão que conheci a vida toda. Digo-o com toda a certeza, não sei se teria conseguido chegar ao fim sem a ajuda dele.

Cheguei ao abastecimento com 3h abaixo do tempo de corte. Analisei as últimas barreiras nas duas montanhas seguintes e achei-os apertados, decido que tinha que sair de Trient com pelo menos 2h30 de folga, e assim foi. 

Venha o Round 2!

Trient - Vallorcine. 10km, 900+
Esta foi a minha subida preferida de toda a prova. Talvez por a ter feito sem relógio, que estava dentro da mala a carregar, foi o perfeito exemplo de subida metro a metro. Outra vez um trilho mesmo como eu gosto, dos que dão trabalho. O sol nasceu a meio da subida, o que me deu ainda mais pica. A segunda noite passou sem deixar grandes marcas e nem sequer me sentia especialmente sonolento. 

Cheguei a Catogne meia hora antes do que estava a prever inicialmente. Mais um boost de confiança! Mas o pior foi a descida. Muito pior que a subida! Não era especialmente difícil, e fresquinho tinha sido uma loucura porque a paisagem era incrível. Mas foi aqui que definitivamente deitei a toalha ao chão em termos de descidas: já não dava. Os quadricepes estavam completamente rebentados. Eu sei que isto é difícil de imaginar, mas não conseguia dar dois passos de corrida a descer sem sentir dores horríveis. Bem, paciência. Metro a metro. Conformei-me e fiz a descida a caminhar, apoiado nos bastões porque até isso me custava.

Cheguei a Vallorcine com as mesmas 2h30 de folga em relação ao corte, a segunda montanha tinha sido virada mais uma vez com sucesso! No entanto decidi que neste iria ficar apenas o mínimo indispensável. Aproximava-se a derradeira subida, o assalto a Tête aux Vents, o último obstáculo no caminho da glória de Chamonix, e toda a gente dizia que esta era A mais difícil do UTMB. Despedi-me do Zé Nuno (sim, estava lá, como sempre) e fiz-me a ela.

ROUND 3!

Vallorcine - La Flegere. 11km, 910+
Começou com um estradão simpático que subia lentamente por 4km. Fi-lo sem grandes pressas, sempre a poupar energia para o que aí vinha. quando cheguei ao fim deste segmento o calor já apertava muito. Despi todas as camadas térmicas menos a t-shirt, a subida ia ser completamente exposta ao sol. Até que a vi.

Linda. 

Uma parede vertical recortada de cima abaixo por pontinhos coloridos até perder de vista, num zigue zague muito geométrico, quase como se fosse uma parte viva da montanha. Senti um arrepio quando a vi e respirei fundo antes de a atacar.

Vamos lá Filipe, tu consegues. Tu sabes fazer isto. Tricotar até lá acima, evita levantar muito as pernas, evita esforços desnecessários. Não puxes demasiado mas não adormeças. Tu sabes isto, vá lá!!

Eu, de facto, sabia isso. Mas não sabia que o que ia encontrar era todo um novo nível de subida. Pedra, pedra e mais pedra. Rochas para trepar, segmentos inclinadíssimos. Subida interminável, parecia que ganhava força de cada vez que virávamos a montanha. "pleeeease, just make it stop!!" dizia eu aos meus colegas japoneses que, como sempre, não me ligavam patavina. 

P*TA DE SUBIDA!

Sacado da net, aqui já não tirei nenhuma foto.
Chegados ao topo, Tête aux Vents, ainda havia um segmento de 4km até La Flegere, local do ultimo abastecimento e controlo de tempo. Parecia fácil, 4km a descer ligeiramente. Mas espera, era a descer, porra! Eu não conseguia CAMINHAR a descer, quanto mais correr num sitio cheio de pedra! 

O sangue começou a ferver. Via o tempo de corte cada vez mais próximo e o abrigo de La Flegere que teimava em não se aproximar. AAAAH se ao menos estivesse fresco derretia esta merda de pedra toda!!! 

La Flegere chegou depois de uma subida de 100+, fi-la quase a correr, estava genuinamente preocupado com os 8km a descer que iria apanhar de seguida até Chamonix. Tinha umas estonteantes 3 horas para os fazer, por isso podem imaginar o meu estado físico para ficar preocupado com uma folga destas.

ROUND FINAL

La Flegere - Chamonix. 8km, 885-
Aí estava ele, o meu ultimo inimigo a separar-me da glória. Uma descida. Uma merda de uma descida. 

Foda-se, esquece as dores, faz-te homem, desce isto a correr, porra!!

Cerrei os dentes e foi literalmente a gritar que fiz os primeiros metros. As dores nos quadricepes eram lancinantes. 

MERDA!!!

Não dá, não dá, não dá!! 

PORRA, vira-te, vai de costas, faz o que puderes!! 

Desci mais de um quilómetro a correr de costas, só parei porque o trilho derivou para um single com muitas raízes e aí era arriscado. Mais uma vez tentei ignorar as dores horríveis, enquanto via no relógio o tempo a passar muito mais depressa que os quilómetros. 

Tomei um voltaren, que se lixe.  AAAAH corre estúpido, esquece as dores!! 

Parei em todas as nascentes para molhar as coxas, levantei os calções de compressão até acima para ver se era disso, dei murros nas pernas.. sei lá, fiz tudo! Mas não havia volta a dar, os músculos estavam destruídos, nada os repararia de repente! 

Merda, aperta contigo porra!!!

De repente a inclinação começou a acalmar e o trilho a abrir. Voltei a correr de costas, mais um par de quilómetros desta vez. Até que encontro um casal português que me diz: "está feito!! O alcatrão de Chamonix está já ali!!!"

Hein? Está feito? Como assim? Acabou a descida?

Estrada plana. 

Corri. 

Consegui correr novamente. Corri, corri e corri. Disse 1895 vezes merci aos milhares de pessoas que batiam palmas e me congratulavam. 

"BRAVO BRAVO!!" Diziam eles. "Merci, merci, merci!!" Dizia-lhes eu! 

No fim já só me ria. Só me ria enquanto corria e tentava perceber se aquilo era só um sonho. Estava em Chamonix. Estava em Chamonix a correr e a rir. 44 horas depois, 171km depois, estava de volta a Chamonix, e estava a rir. 

SUPER! ALLEZ! BRAVO!! Diziam eles!!

Merci, merci, MERCI!! Dizia-lhes eu!!

Ultima curva, a seguir ficava com o pórtico em vista, eu conhecia aquilo!!

A Sara, a Mel, o Manel, o Zé e a Joana. Todos. Na ultima curva antes da meta à minha espera. Levantei os braços e não evitei começar a chorar. Peguei na Mel ao colo e abracei-me à Sara. 




Obrigado, disse-lhe.