As minhas corridas na estrada

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

111km

Saindo de Almeirim e percorrendo 111km, podia ir:

  • A Espanha comer caramelos (é isso que se faz em Espanha, não é?).
  • À Luz, ver o Benfica esmagar.
  • À Mealhada, comer leitão.
  • À Nazaré, ver as ondas à Praia do Norte.
  • A Fátima, acender uma velinha pra não ter lesões. E para o Benfica ser campeão.
  • Ir e vir a Santarém 8 vezes, só porque sim.
  • Ao Samurai de Belém enfardar 3 pratos de Sushi no buffet e depois rematar com 2 pasteis ali ao lado (oh, as saudades do tempo de faculdade...).
  • Tirar uma selfie em frente à prisão de Évora.
  • Comer um queijo de Nisa. Em Nisa.
  • Ao Fim da Europa.
  • Estudar fenómenos no Entroncamento.
  • Comprar sal a Rio Maior, por causa das câimbras.
  • Passar o dia na praia à Comporta.
  • Comprar um copo à Marinha Grande para beber vinho frisante enquanto como leitão na Mealhada.
  • A Almada, ao Cristo Rei, fazer um treino de escadas (agora que penso nisso, dá pra subir lá acima de escadas?).
  • Comer 2 bifanas a Vendas Novas. Não, três, sff.
  • Ver o Benfica esmagar o Sporting, o Belenenses e a Académica, fora.

Mas não. Vou calçar as minhas Salomon desfeitas, carregar com 2 litros de água às costas e partir à meia noite de Sexta-Feira para 111km a correr na Serra de Sicó.  

Vá-se lá perceber...










sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Curtas

Pior cor de sempre?

Há algum tempo que queria comprar um segundo par de sapatilhas de trail. As minhas Salomon XT6 Softground, único par que tive até agora, serviram para todas as provas e treinos que tenho feito em trilhos. No entanto, há medida que fui aumentando a distancia, também aumentaram as exigências. As XT6 são bastante rígidas e oferecem uma segurança excelente em trilhos técnicos, mas quando as provas são mais rolantes sinto falta de algum conforto extra. Senti muito isso no Douro Ultra Trail, prova que demorei mais tempo a fazer até agora (13h40). No fim tinha os pés muito doridos (mas nada de bolhas ou feridas). Nesta, e em todas as grandes ultras, existia um abastecimento a meio da prova onde podíamos trocar de equipamento, nomeadamente de sapatilhas. Lembro-me de ter pensado na altura que a rapidez em trilhos técnicos já pouco ou nada me interessava e que o que gostava mesmo era de calçar umas Nike de estrada, daquelas tipo sofá, para fazer o resto da prova! Mais recentemente li este post, do blog De Sedentário a Maratonista, onde o José Guimarães fala dos sapatos que usou no UTMB. Ele fala da opção que tomou a meio da prova quando teve de escolher entre umas sapatilhas mais rígidas e seguras e outras que privilegiassem o conforto. Optou pelas segundas, as Skechers Go Run Ultra 2 e ficou muito satisfeito! 

As Go Run Ultra são as anti-sapatilhas de trail. À primeira vista nem se parecem nada com sapatilhas para os trilhos e depois têm uma característica MUITO RARAMENTE vista no equipamento para o trail: não são estupidamente caras! O meu par custou 64€, vejam bem! Eu a pensar que o preço base no trail era 100€...  Lá fui eu então à loja da Skechers no Vasco da Gama comprá-las. 

Boa tarde. Tem as Go Run Ultra tamanho 43?

Tenho sim, vou ver que cores há.

Ok, obrigado.

Desculpe, mas só temos nesta cor :\


Estão mesmo a pedir uma voltinha nos Abutres.
O quê, já?!?

Como disse lá atrás, as Salomon têm sido pau para toda a obra. E se posso dizer maravilhas delas a nível do desempenho, já a durabilidade deixa muito a desejar. Ok, é verdade que já sofreram muito, mas porra, a sola está quase tão lisa como as minhas Asics Excell 33 de estrada e a malha exterior na parte da frente do pé.... bem, vejam por vocês próprios:

Pessoal que usa Salomon, também vos acontece?
MIUT e a táctica possível. 

Quando decidi embarcar na aventura MIUT, em Outubro do ano passado, não tomei a decisão sem antes saber exactamente onde me estava a meter. Li e pesquisei muito sobre aquela prova e desenganem-se se acham que foi uma decisão impulsiva. Aliás, em toda a minha vida de corridas só fui mal preparado para 2 provas: a minha primeira maratona e o meu primeiro trail a sério. Sabia que me estava a propor fazer uma das provas mais duras da Europa, com uma altimetria de loucos e trilhos super técnicos. Ora, que eu saiba aqui pelo Ribatejo não consigo encontrar condições parecidas para treinar, apesar dos 200m de altitude da Serra das Fazendas não ficarem nada a dever ao Pico Ruivo na Madeira :) Por isso cheguei à conclusão que a única forma era alterar o método de treino. Desde então pus os fartleks e séries de lado e comecei a fazer um trabalho diário de reforço muscular, rampas e muita, muita escadaria. Foram 4 meses de muita carga que tiveram um grande teste há duas semanas nos trilhos muito técnicos dos Abutres, teste que, modéstia à parte, penso que superei com sucesso! É verdade que a progressão foi muito lenta, mas nunca me senti debilitado fisicamente, e as únicas marcas Abutricas que senti nos dias seguintes foram devido à queda que me provocou a distensão que vos falei há uns dias

De facto, há uma infinidade de coisas que podem correr mal na Madeira (basta lembrar do que me aconteceu nos Abutres), mas nunca será por falta de treino que não vou cortar aquela meta!


Virgem dos 3

A preparação para a Madeira não podia passar só pelo treino, as provas são muito importantes. Desde logo comecei a pensar nalguns pontos chave e testes que teria que cumprir até Abril. A meu ver, havia duas vertentes que tinha que melhorar muito: a prática em trilhos mais técnicos e a resistência para aguentar uma corrida de mais que 100km e previsivelmente cerca de 24 horas de esforço. Mesmo com 6 meses de antecedência, havia duas provas que serviriam quase como um tubo de ensaio.

A primeira era os Abutres, com os seus trilhos super técnicos. Este ano ainda por cima com as condicionantes que já estão fartos de ouvir falar. Foi um teste perfeito não só pelos trilhos técnicos mas também quanto à necessidade de adaptar o equipamento que tinha vindo a usar. De facto, se não tivesse sido aquela malfadada queda que me debilitou fortemente logo a meio da prova, tinha acabado em muito boas condições físicas e sem nunca sentir que seriam dificuldades técnicas a parar-me. 

A segunda prova de fogo era a barreira dos 3 dígitos, já que o máximo que fiz até hoje foram 83km, na Arrábida. Como disse o Paulo Pires no seu blog Runbook de um gajo que mudou de vida, o MIUT não é nem de perto nem de longe a melhor prova para se tentar os 3 dígitos pela primeira vez. Comecei então a procurar uma prova que me permitisse isso sem forçar a evolução que estava a ter. Pensei até em cumprir a distancia em modo treino, aqui por "casa", mas decidi inscrever-me no Ultra Trail Terras de Sicó, 111km. Este tem lugar daqui a duas semanas, o que me deixa a exactamente 6 semanas da Madeira. Não é o ideal, eu sei, mas penso que 6 semanas bem geridas são o suficiente para recuperar do esforço e por outro lado tenho a certeza que me vou sentir muito mais confiante se conseguir superar mais este teste. 

O Terras de Sicó é uma prova longuíssima mas pelo que tenho lido não será especialmente dificil tecnicamente, por isso parece-me o ideal. Além disso a partida é há meia noite, tal como na Madeira, o que é uma novidade para mim. 


8 Semanas e uma distensão

Faltam exactamente 8 semanas para dia 10 de Abril. Se retirar uma semana antes de Sicó e outra antes do MIUT sobram 6. Seis semanas de treino. A distensão que vos falei impediu-me de correr por uma semana e meia depois dos Abutres, só ontem recomecei a correr e muito devagar. A primeira consequência foi perder duas semanas de preparação, a segunda foi o cancelamento da participação no Trail do Castelejo (45km) que serviria como ultimo treino longo antes de Sicó. Eu sei que vou pagar, e bem, estas deficiências na preparação, mas as coisas são como são. Só resta dar o máximo nas 6 semanas que me restam e esperar que seja o suficiente. 

Escrevi "8 semanas" no Google. Adivinham o que me apareceu :)
Quarenta e Dois vezes 1

A data escapou-me na altura, mas fez há uma semana um ano que criei o Quarenta e Dois! Tem sido um prazer profundamente egoísta manter este blog, já que alia duas das coisas que gosto mais de fazer: correr e escrever. Lembro-me do dia em que o criei e de pensar "bem, mesmo que ninguém leia isto não faz mal, porque deu-me um gozo do caraças só escrever este post!". A verdade é que o número de visitas foi absolutamente surpreendente, ao ponto de às vezes nem acreditar. Uns mais "fieis", outros à procura de uma opinião sobre uma prova que também fizeram, mas já foram 40 mil as vezes que aqui vieram, o que não estava nem nas minhas melhores expectativas! Além disso conheci muita gente através dele, iniciei muitas conversas por causa disto e até pus amigos meus que nunca tinham pensado em corrida a falar de quilómetros e desnível acumulado! eheh Obrigado a todos!


Facebook

Umas semanas depois de criar o blog, iniciei também a página de facebook do Quarenta e Dois. A ideia era partilhar os posts que ia escrevendo com quem se interessava por eles, sem ter que chatear os meus "outros" amigos. Entretanto a coisa evoluiu e aquela página tem-me dado muito gozo. Além de mostrar os posts e escrever coisas que acho que não justificam um artigo no blog, partilho muitas vezes relatos de provas feitos por amigos, conhecidos ou estranhos, caso alguém me peça. Têm havido textos muito interessantes! Se não conhecem, passem por lá e deixem um gosto :)


segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Distensão

"Uma distensão ou estiramento muscular, caracteriza-se por um rompimento parcial ou completo de fibras ou feixes musculares, resultante de um esforço extremo realizado pelo músculo em questão."

Queridos deuses da corrida, 

Ok, foi giro colocarem ali aquela pedra na Serra da Lousã. O bastão escorregou, eu torci-me todo, o músculo abdominal obliquo distendeu, fiz o resto da prova em sofrimento e tenho dores tão más desde esse dia que ainda nem sequer consigo pensar em correr... Ok, isso tudo aconteceu, mas foi engraçado! O pessoal riu-se (pelo menos vocês), foi uma rábula interessante no relato da prova. Deu aquele ar de Rambo, só ficou a faltar sarar a ferida com pólvora! Epah, mas faltam dois meses para o MIUT... e não é só isso, sabem? Há outros objectivos, outros pontos chave que não posso falhar até lá. Vá lá pessoal, ando obcecado com isto há 4 meses....

Por favor, dêem-me uma folga...

Não, espera, deixem-me tentar encontrar outras palavras... 

Ah, já sei:


NÃO ME FODAM!!!!!!!


Era só isso.

Obrigado,

Filipe


domingo, 1 de fevereiro de 2015

Trilhos dos Abutres 2015 (50km) - brutal.

Três e meia da manha, toca o despertador. Estou na cama desde as 22 a insistir num sono leve e ansioso. Oiço os estores a abanar com o vento e a chuva a cair, nada que não estivesse à espera, as previsões apontavam nesse sentido. Num pensamento arrogante agradeço pela intempérie "vamos a isso, quanto mais difícil melhor!", achava eu. É incrível o que meia dúzia de provas bem sucedidas fazem ao nosso ego. De repente já ousava fazer frente aos Abutres, de peito feito! Mas eles puseram-me no meu lugar. Não, eles mandaram-me um rotativo na peito, uma esquerda seguida de uppercut no queixo e finalmente um cuspidela na cara quando já estava no chão!

Excelente cartaz, com o saudoso João Marinho
A hora marcada para o encontro com os meus colegas dos 20km de Almeirim era às 4:30 da manhã, e foi a essa hora que partimos de Almeirim rumo a Miranda do Corvo. Muita chuva e vento pelo caminho aumentaram a ansiedade. Um nervoso miudinho apoderava-se de mim mas sem me provocar medo ou respeito, só me queria fazer ao caminho! A 10 minutos de chegarmos a Miranda recebo uma sms da organização a avisar que devido às condições climatéricas a partida seria adiada duas horas. Nãoooo!! Já me estava a ver nos trilhos e agora faziam-me esperar esta ETERNIDADE? Grande desilusão! Ainda por cima se estão condições perigosas tanto melhor, a malta quer é dureza!

....agora que penso nisso, juro que nesta altura passou um abutre a voar e se vinha a rir!

A ansiedade dentro do pavilhão era palpável. O levantamento dos dorsais decorreu sem qualquer problema e o saco de ofertas incluía um magnifico buff da prova, mesmo da marca Buff original! Por ali nos mantivemos durante hora e meia a fazer tempo até às 9, para nos equiparmos. O tempo em Miranda não estava muito mau, mas no horizonte dava para ver as omnipresentes nuvens negras a cobrir a Serra. 

A excelente e muito completa feira Abutrica, vista das bancadas.
Eram nove horas e finalmente fomos equipar-nos. Mais uma vez, a arrogância imperou. "impermeável? Epah não sei bem, se calhar levo só na mochila, não deve estar assim tão mau... Luvas não levo, só vai atrapalhar". Felizmente ainda tinha uma gota de bom senso em mim, e parti com uma camisola de manga comprida, uma t-shirt do clube por cima e o impermeável vestido. Um buff na cabeça e outro no pescoço. Nas pernas, o habitual calção curto e nenhuma compressão. Ah, e sem luvas. Falo-vos da minha escolha de equipamento porque mais à frente ela vai-se revelar crucial, quase fatal para a minha continuação em prova!

Depois de um justificadamente rigoroso controlo zero encaminhámo-nos para o exterior do pavilhão. Estava finalmente na hora da partida! Como que a gozar connosco, o tempo nesta altura estava óptimo! Um sol radioso e temperatura amena elevavam a moral e o entusiasmo. 536 atletas estavam prestes a entrar na aventura de uma vida. 

5 dos 7 Almeirinenses presentes
A partida foi dada às 10 em ponto. Iniciámos então cerca de 5km corridos dentro de Miranda, para dispersar o muito grande pelotão antes de entrarmos nos trilhos. Foram 5 ou 6km nas ruas da cidade, muitas vezes com vista para um ribeiro que corria furiosamente ao nosso lado, quase a transbordar. Apesar de no sábado não ter chovido anormalmente, o mesmo não se pode dizer dos últimos dias. Entre conversas com alguns atletas locais, disseram-me que há 3 dias que chovia ininterruptamente na Serra. Cá em baixo conseguimos ter vislumbres do resultado dessa chuva, quase como um aviso da natureza. 

O rio que transbordou e inundou um campo de jogos
Percorri estes 5km a forçar um pouco o ritmo o que me colocou na metade da frente do pelotão. Na altura achei que talvez tivesse abusado, mas agora sei que esta decisão pode ter ditado a minha continuidade em prova. Já vão perceber porquê.

A entrada nos trilhos foi tranquila. Algumas poças, alguma lama, subidas difíceis mas não demasiado inclinadas e 1 ou 2km de trilhos corriveis que serpenteavam na floresta da Lousã. À medida que avançamos ficamos mais e mais embrenhados na Serra e no mundo dos Abutres. O ribeiro que corria ao nosso lado atravessa-se vezes sem conta à nossa frente. Ora pra cá, ora pra lá, lá fomos passando por cima dele. Umas vezes era uma passagem tranquila, noutras lá íamos molhando uma perna até ao joelho. De repente deixa de haver leito do rio, há um liquido castanho que corre por todo o lado! Não dá para saltar de um lado para o outro do ribeiro porque estamos a subir por dentro dele!

A minha cara parece dizer "Elaaaah, então mas, mas...."
A chuva que caiu nos últimos dias escorria sem regras pelas encostas da Serra, todos os caminhos valiam. Os trilhos abertos serviam como canais que facilitavam a descida da água, e era mesmo por aí que ela decidia vir. Pelo caminho trazia terra, folhas e matéria orgânica que lhe escureciam a cor. De vez quando parecia que corríamos contra uma torrente de lava castanho escura, quase preta, viscosa, que avançava vagarosamente cobrindo completamente o chão à nossa frente. Os buracos e raízes apareciam de surpresa, à traição, e os pés enfiavam-se muitas vezes dentro de armadilhas que nos enterravam até acima do joelho. Dizer que a progressão era lenta é favor. O terreno era plano e provavelmente corrivel em condições normais, mas naquele dia as condições estavam longe de normais. Todos os passos eram cuidadosamente medidos e ponderados, a consequência de não fazer este processo seria uma queda ou um pé torcido.

Conseguem ver lá à frente alguém que caiu numa armadilha.
Os Abutres estavam finalmente a mostrar a sua personalidade. Rapidamente percebo que não me iam dar tréguas, nunca! A cada troço de 200m que conseguia correr seguia-se um obstáculo incrivelmente técnico. Começaram então a surgir as subidas. Mas não eram simples subidas! Eram autenticas escaladas por encostas completamente enlameadas. Cada passo em frente era um desafio, cada apoio era seguido de uma escorregadela. Subíamos agarrados a árvores, a pedras, aos bastões, uns aos outros, como desse! Subimos sem parar tempos e tempos, com a dificuldade sempre a aumentar, sem dar tréguas!

Um exemplo do tipo de subidas por onde andámos vários quilómetros
Esta prova é conhecida pela sua dificuldade técnica elevadíssima, mas não nos podemos esquecer de avaliar o desnível acumulado. Foram 2450d+ muito duros, quase sempre por trilhos muito técnicos que nunca nos deixavam subir com um passo certo. A meio de grandes subidas por vezes apanhávamos um descida a pique, um autentico escorrega de lama e pedras que exigia a máxima concentração e não permitiam o mínimo descanso. 

O perfil, que só conta uma parte (pequena) da história
O primeiro abastecimento, ao km 15, marcava o inicio do primeiro ataque aos 900m de altitude. Encostei no abastecimento para comer qualquer coisa, já que o pequeno almoço tinha sido às 4 da manhã. Assim que paro oiço um grande trovão. Ok, vamos ter festa. Foi logo a seguir ao abastecimento que apanho a primeira chuvada de granizo. Toda a gente que ia perto de mim começou aos gritos de alegria, sorrisos, piadas, ....  Já íamos com 15km de Abutres e mesmo assim continuávamos a menosprezá-los. Mas não ficaríamos a rir durante muito mais tempo.

Considero que a prova só começou verdadeiramente neste ponto, no inicio desta subida. Mais uma vez, foi implacável. Cada vez mais embrenhados num floresta muito densa. O som da água a correr era omnipresente, por todo o lado víamos correntes de água que desciam violentamente pela encosta. Muitas vezes a vir contra nós. O granizo que há pouco teve a sua piada não parou e até aumentou. Era agora incomodativo e aumentava ainda o caudal de água. As paredes sucediam-se e só eram interrompidas com descidas abruptas no meio da lama. Correr era praticamente impossível, até andar era difícil. Seguia com máxima concentração, sempre focado no passo seguinte.



À medida que subíamos e nos aproximávamos da cota máxima a temperatura baixava perigosamente. O vento soprava agora cortante, já que a vegetação diminuía à medida que chegávamos perto do topo. O granizo tinha-se transformado em flocos de neve que se transformavam em água assim que tocava no chão. Sentia-me a arrefecer muito e foi aqui que começaram os meus problemas. Estupidamente, e reforço a palavra ESTUPIDAMENTE, achei que não precisaria de luvas, logo eu que tenho muitas dificuldades em aquecer as mãos! Mas agora ia pagar um preço muito elevado por isso.

Dá para ver o granizo
Os polegares foram os primeiros a perder a sensibilidade. Custava-me agora a agarrar nos bastões. De seguida foram os dedos mindinhos. A perda de sensibilidade começou a dar lugar a uma dor horrível nos dedos. Parei, várias vezes, tirava a alça do bastão e tentava mexer as mãos, batê-las contra as pernas para ganharem vida, mas nada. Não conseguia dobrar 2 dedos de cada mão, e quando forçava o movimento tinha dores de morte. O vento, cada vez mais forte e frio, cortava-me as mãos que imploravam por calor. Comecei a sentir uma dormência muito grande nos 3 dedos que me "restavam", até deixar de sentir as pontas. Estava agora no ponto mais alto da Serra e debaixo de uma chuva intensa de granizo. A meio de cada subida só pedia um troço recto para conseguir correr e recuperar a temperatura corporal, mas o Abutre é cruel e no fim de cada subida apresentava-me mais um escorrega de lama dificílimo. Comecei a ter pensamentos tão negros como as nuvens que me cobriam, apetecia-me ir para casa ter com a minha filha e mulher, para o quentinho e conforto da minha casa. Estava a entrar em desespero com as mãos que deixei de sentir por completo. Foi num trilho apertado, bem lá em cima, que perdi a esperança. 

Mandei os bastões para o chão, não consegui encostá-los, e meti as mãos dentro do impermeável, junto ao corpo. para as aquecer com o calor corporal. Não estava a resultar e comecei a arrefecer ainda mais. Tirei a mochila para sacar da manta térmica e embrulhar-me nela, a minha prova acabava ali, só pensava como conseguiria voltar para casa!

Assim que tiro a mochila passa um colega por mim, que me pergunta se estou bem. Eu digo que estou +/-, que tinha perdido a sensibilidade nas mãos e que estava a arrefecer muito. Ele perguntou-me: "Queres umas luvas? Trouxe um par a mais!". 

Só conseguir balbuciar uns 4 ou 5 obrigados, que me tinha salvo a prova, obrigado obrigado! Ele reconheceu-me do blog, coincidência das coincidências, era o Paulo Oliveira do "Pela Estrada Fora"!! Continuei a agradecer-lhe, quase em lágrimas, até que ele seguiu. 

Tinha as mãos tão rígidas que não conseguia calçar as luvas grossas, até que passa mais um colega por mim que me pergunta se estou bem. Peço-lhe ajuda e ele passa ali dois minutos a calçar-me as luvas. Incrível. 

Nunca falei aqui no blog do famoso "espírito do trail", porque acho que isso não existe. O que acho mesmo que existe são pessoas boas, dispostas a fazer tudo para ajudar o próximo. O Paulo e o colega que me ajudou são duas dessas pessoas boas. Ainda agora me emociona pensar naqueles 15 minutos lá em cima e digo muito sinceramente que a minha prova teria terminado ali se não fossem eles. Obrigado aos dois, do fundo do coração! Ah, e Paulo, diz qualquer coisa nos comentários para eu te enviar as luvas pelo correio :)

A segunda melhor opção, a seguir ás luvas do Paulo 

Seguia agora com o ânimo restabelecido e com a moral em alta. As pernas até agora ainda não se tinham queixado, e tive sempre a sensação que conseguia passar todos os obstáculos. Talvez tenha sido esse excesso de confiança que me provocou o primeiro tombo a sério, numa descida. Escorreguei de rabo e de costas uns 10 metros, sem conseguir parar, até ficar com uma perna e nádega em sangue. Levantei-me, atordoado e sorri para os companheiros que vinham atrás. Siga, isto é para acabar!

Ainda antes de chegar ao abastecimento e controlo dos 30km passaríamos por algumas das zonas mais técnicas do percurso. Primeiro foi isto:


Porque as descidas não eram complicadas o suficiente, lá tivemos que descer por um ribeiro com espuma branca a correr furiosamente! Foram cerca de 300 metros muito perigosos. A meio deste curso de água passei por um atleta com um golpe grande no joelho, tinha caído numa das tais armadilhas. 

A descida abrupta continuava, e foi nesta altura que tive o meu segundo grande incidente da prova, que mais uma vez iria mudar o rumo das coisas.

Ao descer um dos famosos escorregas de lama apoiei todo o meu peso no bastão do lado esquerdo, que resvalou numa pedra. Isto originou um movimento muito estranho, como que me dobrei sobre mim mesmo lateralmente, não sei se conseguem imaginar. Ouvi imediatamente um som estranho e senti uma dor lancinante no flanco esquerdo.

Pronto, já te f.....

Levantei-me e levei a mão ao sitio onde me doía. Respirei fundo umas vezes e reparei que quando enchia muito a caixa era como se levasse uma facada. Ensaiei um passos de corrida, não era insuportável. Não voltaria a correr com alegria até ao fim da prova, teria sempre aquela nuvem negra e aquela dor forte cada vez que retomava o passo de corrida, cada vez que me apoiava no bastão e cada vez que respirava fundo. Mais uma vez, pensei que aquele não era o meu dia.

O abastecimento dos 30km era coincidente com o infame corte das 5h30. Até agora, nunca tinha feito nenhuma prova a olhar para o relógio preocupado com os tempos limites. Foi mais uma lição de humildade que os Abutres me deram! Quando passei pelo tapete de controlo do chip lembrei-me do post da Isa e olhei para o relógio. Cinco horas e 18 minutos. Por 12 minutos não fiquei logo ali retido! Este corte iria ser responsável pelo fim de prova de muita, muita gente. Uma quantidade à primeira vista absurda provocada por um tempo limite bastante complicado de cumprir, lembro que seguia +/- a meio do pelotão! No entanto, ele tinha razão de ser, e já vamos ver mais à frente porquê.

Este abastecimento marcava o inicio de mais um ataque ao topo da serra. Estava mal disposto, já bastante saturado daquele suplicio e a dor por baixo das costelas retirava-me o resto da alegria. Comi uns cubos de marmelada à pressa e fiz-me ao caminho, só queria chegar. 

Mais um erro.

Demorei quase duas horas a percorrer os próximo nove quilómetros. Mais uma vez sucederam-se as paredes de lama seguidas de pequenas descidas só para acabar de partir as pernas. Nesta parte do percurso nem faltou uma cascata de cerca de 2 metros (era mais alta que eu) que tivemos literalmente que escalar no meio da água! Nenhuma subida era fácil, nenhuma descida era fácil, nenhum troço dava para correr. Os Abutres estavam agora no seu auge, perfeitamente implacáveis!

Passámos ainda pela famosa cascata dos Abutres, que nesta foto estava calmíssima. Este sábado parecia um trovão autentico, com jactos de vapor por todo o lado, furiosa, assustadora, lindíssima!

Sacado da net
Subimos e subimos até a vegetação começar a desaparecer. O vento aumentou e a temperatura voltou a baixar abruptamente. Agora dava para ouvir as eólicas que permaneciam escondidas no meio das nuvens. A meio da subida comecei a ficar com muita fome e com tonturas, como aconteceu no Réccua Douro Ultra Trail. Tirei imediatamente as duas barras que levava comigo e comi-as sofregamente, com terra e lama à mistura. A subida continuava, bruta, sem dar folgas. A cada apoio do bastão era como se me dessem um murro no flanco, estava a ficar insuportável. As mãos estavam controladas mas sentia o corpo a arrefecer cada vez mais. Pela primeira vez sentia frio nas pernas e nos pés.

Até que finalmente chegámos ao topo, onde havia um abastecimento dentro de uma tenda. Lá dentro, milagre! Bifanas em papo seco quentinhas e um chá a ferver! comi duas bifanas, dois copos de coca cola e rematei com um copo de chá a ferver. Demorei naquele abastecimento pelo menos 20 minutos. Valeu cada segundo, mais uma vez enchi os depósitos de ânimo!

Saio do abastecimento e preparo-me para mais uma tareia na descida. Mas, acreditem ou não, o Abutre deu uma folga!!! Assim que saímos da tenda entramos num trilho no meio de pinheiros gigantes aos ésses pela encosta abaixo. Um trilho seco, sem descidas malucas, sem lama pelo joelho, sem ribeiros para atravessar - diversão pura! Os primeiros passos de corrida são feitos com um movimento muito forçado, dobrado, rígido, numa tentativa de disfarçar a dor por baixo das costelas. À medida que avanço começo a aquecer e a esquecer a dor, consigo assim correr cerca de 2km, sempre devagar, mas 2km de puro prazer. As pernas responderam sempre bem. Mais uma vez culpo o reforço muscular! O pior é quando tenho que parar numa subida e depois volto a abrir a passada para a corrida. Imediatamente é como se levasse uma facada. Tenho que fazer alguma coisa em relação a isto, não vou desistir a 10km do fim!

Como devem ter reparado, coloquei bastantes fotos no inicio do texto e depois deixei de pôr. Isto porque a certa altura cheguei à conclusão que para fazer filmes e tirar fotos significava quase sempre um desequilíbrio e posterior estatelanço no chão! Ainda por cima, cada vez que queria filmar tinha que limpar a câmara que estava sempre coberta de lama! Decidi deixar-me dessas aventuras e concentrar-me no caminho. Só para perceberem o que estou a dizer, vejam o estado da gopro no fim da prova:



O abastecimento dos 40km, o penúltimo, foi em Gondramaz, a aldeia do xisto que vos falei no post do Trail Serra da Lousã. Decidi tomar o brufen que levava comigo, para tentar amenizar as dores que sentia. Mais uma vez, dependi da ajuda de outra pessoa que me retirou o comprimido da mochila, abriu e mo deu para a mão. Desta vez um membro da organização. Obrigado!

Até ao próximo abastecimento seriam 5km. Estranhei logo a distancia ser tão pouca, mas depois percebi porquê, já que demorei uma hora a lá chegar.

O percurso começou com um quilómetro bastante corrivel. Sabia-me incrivelmente bem correr nesta altura. As pernas estavam muito massacradas mas até li tinha corrido muito pouco, por isso quando havia oportunidade para isso era uma alegria. O segundo quilómetro foi feito num trilho muito apertado, numa encosta íngreme. Até aqui tudo bem, mas havia o pormenor de termos que dividir o trilho com água que corria a toda a velocidade e bastante caudal. Coitada, tinha que descer por algum lado. No terceiro quilómetro voltámos a entrar dentro da floresta e para junto de água. Estávamos a entrar numa das partes que achei mais perigosas de todo o percurso. Sempre a entrar e a sair de cursos de água que corriam fora do caudal. Já eram 5 da tarde, estava a escurecer, imaginei fazer aquilo de noite e percebi a razão do corte tão apertado. Mais que nunca, ali senti que um passo em falso facilmente teria consequências desastrosas! Passámos por umas 10 "pontes" rudimentares, que mais não eram que dois ou três troncos cheios de musgo! Segundo soube depois, esta parte era em comum com o UTAX. Quando entrámos num estradão a 500 metros do abastecimento já era praticamente de noite, tinha que ligar o frontal. Segundo um colega que já tinha feito a prova dos 25km, até à meta seria um estradão tranquilo. 

AHAHAH claro...

Parei no ultimo abastecimento, a 5km da meta, apenas para ligar o frontal. O brufen fez efeito e aqueles últimos metros de corrida antes do abastecimento souberam-me muito bem! No abastecimento perguntei ao pessoal que lá estava quanto faltava para a meta. Responderam-me:

5km.

Boa. 

De lama.

Ok, nada de novo, mas já deitava lama pelos ouvidos.

De lama até ao pescoço.

Hm? Nah, devem estar a exagerar. Não pode ser pior do que já apanhámos até aqui!

Mas podia.

Os 3km seguintes foram indescritíveis. O tal "estradão tranquilo" estava coberto de água e lama. como se toda a água que tem caído tivesse ido ter ali. Passo sim passo não ficávamos com lama acima do joelho. Era de noite, estava completamente saturado, só me apetecia chegar! Enquanto pensava nisto enfiei o pé num buraco e fiquei com lama pela barriga! De noite! A chover! Sozinho! 

Na altura aquilo pareceu-me um bocado desnecessário. Não tinha nada de técnico, era só perigoso e molhado. Agora que penso nisso, chateia-me menos. O costume...

Acelerei até apanhar um grupo, não me apetecia nada ir sozinho naquelas condições. Esse mesmo grupo acompanhou-me até ao fim, no ultimo quilómetro que faltava percorrer dentro de Miranda.

Ah, mas antes da meta falta contar esta história:

Uma espécie de Walking Dead
Antes de mais, o tom pastoso resultante de uma camada muito grossa de lama que entretanto secou. Depois o sangue. Podia dizer-vos que foi num tronco que estava debaixo de água ou num calhau pontiagudo, mas não. Depois de 49km duríssimos foi no quilómetro final, dentro de Miranda, quando passámos por um jardim publico que eu decidi saltar por cima de um canteiro. De rosas.

A aventura chegou ao fim 9 horas certas depois. Foi um tempo bastante fraquinho, sei disso. Mas digo muito sinceramente que nesta prova senti-me um vencedor por ter conseguido terminar, sem qualquer ponta de exagero. Resta dizer que dos 538 iniciantes, apenas 319 terminaram, o que equivale a 59% dos atletas! 

Na meta, com o excelente troféu 
Dizer que foi duro é menosprezar o que se passou. Eu sei que os Abutres são assim, implacáveis, mas este ano ainda teve um condimento especial que elevou a fasquia. Foi extremo, incrível, brutal! Fiquei contente por ter superado o desafio e pelas lições que aprendi para o MIUT. 

Este deve ter sido o relato mais comprido que já escrevi, agradeço a quem teve paciencia para chegar até aqui! Desculpem, mas agora que penso nisso foi a prova com mais para contar que tive até hoje. 

Ah, e a mais difícil, não sei se já vos tinha dito! :)

Despeço-me com uma fotografia do meu lindo impermeável azul. Sim, vamos chamar-lhe azul.