As minhas corridas na estrada

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Ultra Trail Serra da Freita (60km) - As Goelas do Mundo do Moutinho

Levantei-me, equipei-me e tomei o pequeno almoço em silêncio, para não acordar a família. Eram 5 da manhã quando saí do nosso Airbnb na Póvoa das Leiras, no coração da Serra da Freita. Estava fresco, nada que obrigasse a mais que uma tshirt. Liguei o carro e fiz-me aos 25km que me separavam de Arouca numa estrada muito boa, uma montanha russa a contornar as montanhas da Freita. O sol ainda não tinha nascido mas já se vislumbravam os contornos dos monstros e uma fina linha vermelha denunciava o crepúsculo. No rádio entrou a guitarra nervosa da música "Eu só preciso", do Jónatas Pires, quando um arrepio gigante percorreu o meu corpo todo. Volume no máximo e janelas abertas, deslizava sozinho na estrada, como se todas as peças tivessem encaixado naquele momento! Algo me dizia que o dia ia ser...épico!

Onde há Fritz há grandes fotos. Não falha.

Seis da manhã na Escola Secundária de Arouca. Há dois anos, no mesmo sitio mas para os 100km, estava um caco. Nervoso, ansioso, com tosse e dores de cabeça fruto de uma noite gelada e muito mal dormida. O pior de tudo é que estava longe de saber o que me esperava. Este ano estava no extremo oposto. Muito tranquilo, depois de uma semana com bom sono e a pulsação em repouso a indicar boa forma (yep, controlo isso), mas principalmente ciente do que me esperava e de como o enfrentar. Parti às 6:15, na quarta vaga de 100 atletas. Tudo perfeitamente organizado e fluido, como é apanágio do UTSF. 

Chefe Moutinho em frente da grelha de partida. Foto do Fritz

O percurso mantem-se igual a 2019 até aos 3km, mas logo abandonamos a subida até ao Detrelo da Malhada que caracterizava as edições anteriores, para nos embrenharmos num trilho num bosque húmido e muito fechado, com trilhos de terra escura, pedras de granito cobertas de musgo, lama e a sempre presente água que corria num ribeiro que atravessámos incontáveis vezes. Muito sobe e desce curto, a fazer lembrar os Abutres, naquele segmento entre Gondramaz e Espinheiro. A "Via Dolorosa", conforme nos informava uma placa no inicio. Um trilho técnico e de progressão lenta. Muito bom! O pior é que, tendo partido na quarta vaga de 100 atletas, os 10km que separavam a Via Dolorosa da partida não tinham sido suficientes para dispersar o pelotão, então foi todo feito num irritante e frustrante pára-arranca.

Outra do Fritz. Se eu fosse famoso tornava-o o meu fotografo oficial. Acho que isso é uma coisa que os famosos fazem.

Primeiro abastecimento em Pedrogão. Saímos do bosque e entrámos finalmente na Freita. Embocamos no PR8, um trilho arrancado à encosta, em xisto, muito exposto e difícil. Paisagem agreste e declives brutais levaram-nos às entranhas de uma garganta muito apertada. De repente eram só troncos, pedras, correntes e cordas. Impossível correr, enquanto nos enfiávamos dentro da barriga do diabo. Até que.. lá estava ela... a placa a indicar que tínhamos entrado nas Goelas do Mundo.

As Goelas vistas de cima. Aquele vale apertado lá em baixo é o que estava a falar. Foto tirada do Facebook da prova.

Uma das coisas que sempre me fascinou na Freita é a maneira como os trilhos têm personalidade. Fruto, obviamente, da paixão com que o Moutinho não só fala deles mas principalmente pela maneira como os pensa. Não há mais serra nenhuma em Portugal em que hajam tantos trilhos dos quais basta dizer o nome e que todos identificam. À Besta, Escadas do Martírio, Três Pinheiros, Bradar aos Céus, entre tantos outros, juntou-se agora o inacreditável Goelas do Mundo. Há meses que o Zé Moutinho nos prepara para ele na sua página de Facebook. Todos acompanhámos o trabalho árduo e a maneira como o mestre se apaixonou por este novo monumento. Era a grande novidade do UTSF e a razão pela alteração do percurso nos primeiros 20km. Dizer que sobreviveu às expectativas é pouco. Se não é o melhor e mais difícil trilho da Freita, anda lá perto!

Conseguem ver o trilho ali na crista? Do Facebook da prova.

Depois do primeiro km, em que nos afundamos na garganta mas que mal subimos, chegamos a uma lagoa alimentada por uma cascata lindíssima. A partir desse ponto a progressão só é possível porque fixaram uns varões de aço na rocha que servem de apoio para os pés e mãos, era impossível progredir sem eles. Já saímos do meio das árvores e agora subimos completamente a pique pela crista de um dedo da montanha. O próximo quilómetro, em que subimos quase 400 metros, foi conquistado a força de braços e pernas, impossível usar os bastões. Este é daqueles que justifica o regresso todos os anos! O único problema foi o trânsito... Nesta altura os trilhos mais difíceis ainda eram todos feitos no pára-arranca.

Foto do meu amigo Marco Domingos. Procurem as pessoas.

Tebilhão, 20km, segundo abastecimento e o famoso ponto em que os percursos se separam. Desta vez segui, com alívio, para a direita, em direção aos 65km, em vez dos 100km. O que já não se pode dizer é que os 100km só começam ali, as Goelas já fazem bem parte do menu. 

4km de trilho fácil até à Povoa das Leiras e estava na base da Besta. Até me arrepio só de pensar no que a malta da prova grande ainda teria que passar até chegar àquele ponto! O ano passado cheguei ali completamente de rastos e ao início da noite. Agora estava com 24km e fresco de pernas, fruto do transito que apanhei até ali e que me obrigou a andar mais devagar. Mas a Besta é a Besta. Ou será a Freita? Bem, o melhor é subir.

A minha melhor foto da Besta. No dia seguinte fui lá com os miúdos. Acho que é um bom trilho para iniciação.

Aproveito para fazer aqui um pequeno parênteses no relato. Os 100km da Freita são a verdadeira prova idealizada pelo Moutinho. Os 65km continuam a ser uma prova extraordinariamente exigente, mas incomparavelmente mais fácil que os 100. É indescritível a diferença que aqueles 35km entre Tebilhão e Povoa das Leiras fazem. Há dois anos disse aqui que saí com um amargo de boca. De facto, não desfrutei grande coisa da prova. É demasiado difícil durante demasiado tempo. Corrijo, é SEMPRE difícil. Rebenta com os pés, o corpo e o espírito. Se a distância se tivesse mantido nos 65/70km, com aquele nível de exigência, pra mim era o ideal. Mas a minha opinião não conta pra nada e esta é a prova do Moutinho. É assim que tem que ser. Serve isto para dizer: querem ver o que é a Freita, vão aos 65km. Querem perceber o Moutinho, vão aos 100km. Mas preparem-se. Não é para qualquer um.

Bem, voltemos. 

Já sem filas, escalei a Besta ao meu ritmo. Que maravilha de subida. Não me entendam mal, é uma parvoíce de difícil, com pedras para escalar com mais de 1 metro de altura, rochas escorregadias e cheiinhas de musgo, água corrente, mãos e pés molhados. Como as pernas ainda estavam frescas não haviam sequer ameaças de cãimbras. Foi prazer puro o que senti, para transpor o km com 350+, até finalmente ser cuspido já depois dos 1000m de altitude. 

Já não sei bem onde isto é. Mas é do meu fotografo oficial e está boa.

Lembro-me do Moutinho uma vez ter dito que depois da Besta, até ao próximo abastecimento em Bondança, seria uma secção fácil, com trilhos limpos, planos ou a descer, para descansar da tareia que tínhamos levado até ali. Claro que isto faz muito mais sentido para quem vem na prova grande, mas ali soube mesmo bem rolar aqueles km até encontrar o abastecimento. 

Continuava a sentir-me super bem, com pernas para correr e força para subir. Depois de Bondança temos uma pequena subida que nos leva de volta aos 900m, antes da descida enorme para as Porqueiras. Mesmo naqueles metros finais da subida em que viramos o monte, meti o trote e as pernas responderam fácil. Com a "Eu Só Preciso" do Jónatas na cabeça desde o início, foi impossível não ficar arrepiado com a vista do horizonte enquanto corria leve e, agora sim, finalmente sozinho como eu gosto, rumo à descida. Um daqueles momentos perfeitos e inesquecíveis. 

Eu sei que esta é repetida, mas adequa-se ao momento. Do Fritz.

Desci motivado os 4km de trilhos que se vão tornando cada vez mais intricados e inclinados à medida que nos aproximamos do fundo, nas Porqueiras. Sempre a trabalhar de bastões, continuava a surfar a onda positiva que tinha apanhado desde o início. Que prova perfeita. 

Seguem-se as Escadas do Martírio, primeira metade da subida final de 800+. Muita água, muita sombra e muitos degraus apertados e curtinhos. Perfeito para manter um ritmo certo. Tal como em 2019, bebi água de cada charco que encontrava. Acho que repeti mais de 100 vezes na minha cabeça a máxima "água corrente não mata gente". O que é certo é que ainda não apanhei nenhuma dor de barriga!

No mal cheiroso paraíso da Lomba, local do mítico abastecimento da canja com cheiro a cabra, sentei-me bem disposto a uma sombra e comi a obrigatória bifana com uma mini fresquinha! Em mais lado nenhum bebo cerveja durante uma corrida, mas porra, soube pela vida!

A Lomba vista de cima. Do Facebook da prova.

Seguia-se agora a segunda metade da subida final. A subida de Bradar aos Céus. Em 2019 foi a estucada final, derrotou-me completamente e ainda hoje estou pra saber como é que a transpus. Estava convencido que este ano seria diferente. Só podia, estava a correr tão bem! Mas assim que comecei a meter a cabeça de fora a pensar que estava ganho, TUMBA, marretada!

Ao contrário das escadas, subia agora completamente exposto ao sol. A água já não corria pelo meio das pedras, agora só havia pó, xisto e moscas a atazanar-me. Já não haviam degraus certinhos, eram pedras de todo o tamanho que nos obrigavam a todo o tipo de abertura de pernas. Lembram-se de na Besta as cãimbras estarem longe? Pois bem, estavam guardadas para ali. Sentia-me completamente ensopado em suor, a gerir os líquidos, com os braços completamente rebentados de bastonar a subir e descer. Subi lento, lento, lento os mais de 300 metros de desnível positivo naquele km antes de chegar novamente ao planalto. Até que finalmente o ar deixou de estar pesado e morno e voltei a sentir uma brisa fresca. 

A Mizarela, pelo Fritz. Poucos depois de virar a subida de Bradar aos Céus.

Abananado pela violência da subida, demorei umas centenas de metros até voltar a mim, mas as pernas ainda tinham descida. Ufa, foi por pouco! Corri pelas pedras parideiras e batalhei no incrível PR7, com a Mizarela como imagem de fundo, até chegar ao ultimo abastecimento em Albergaria da Serra. Não me demorei lá mais de 2 minutos dentro, porque uns metros à frente, na praia fluvial, estava a Sara e os miúdos com um rissolinho de camarão e compal de pêra à minha espera. Que prova perfeita!

A rapaziada na praia de Albergaria.




Agora só 15km me separavam de Arouca. Meia dúzia ligeiramente a subir e finalmente a gigantesca descida final. Desta vez descemos pelo trilho que na edição anterior subimos no inicio, desde o Detrelo da Malhada. Mais uma mudança muitíssimo bem vinda. A descida é toda suave, num trilho muito bom  e fácil, no meio das árvores, como uma espécie de prémio para quem chegou até ali. Muito melhor assim. Afinal as pernas ainda estavam carregadas de descida e deu para curtir muito até ao fim. 

No pavilhão lá estava a Sara e os miúdos, que me acompanharam na meta. Já não o faziam desde Março de 2020 por causa da merda da Covid. Mas neste dia todas as peças encaixaram. Desde as 5 da manhã, quando saí do Airbnb, até às 5 da tarde, quando cheguei à meta, 11h07 depois de partir. Aliás, continuou a encaixar na perfeição nas horas seguintes, enquanto descansava ao fim do dia no jardim da nossa casa das Leiras e via os miúdos a brincar, enquanto jantávamos uma posta arouquesa na aldeia do Espinheiro, até ao momento em que nos despedimos da Serra da Freita, no domingo. Que prova perfeita.

Feito.







Fritz.



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