As minhas corridas na estrada

terça-feira, 26 de julho de 2016

O dia que tinha tudo para correr mal

Partimos de Évora já bem depois das 19:30. Até essa hora o dia tinha sido perfeitamente comum. Acordar à hora do costume, trabalho, as nossas mulheres, os nossos filhos... Tudo no seu devido sítio, era um dia igual aos outros. Mas às 19:30 íamos embarcar numa aventura que...bem, não há outra maneira de dizer: tinha tudo para correr mal!

Fomos só ali
Foi há umas 2 ou 3 semanas que o Sommer (o Sr. Ribeiro) me enviou uma mensagem no chat do facebook +/- assim: sair do trabalho, conduzir até à Serra Nevada, partir com directa, treinar e voltar. Assim mesmo à mau! Bora?

Pois com certeza!

Ora, as conversas sobre a viagem basicamente ficaram por aqui. Combinámos a hora de partida e o destino. Lá chegados, a única referencia eram 3 tracks sacados da net, um percurso desenhado na cabeça e a sincera esperança que no local as peças encaixassem todas e aquilo corresse tudo muito bem! O que é que podia correr mal?

Depois de um inesperado e espectacular jantar numa esplanada em Elvas, lá chegámos às 5 da manhã a Pradollano, Serra Nevada, uma estância de ski muito famosa. Com o carro estacionado num parque subterrâneo, recolhemos aos aposentos para um sono descansado e retemperador.

Pronto, na verdade os aposentos eram o parque de estacionamento.

Vá, e não foi bem recolher, deitámos os bancos do carro.

Ok, não foi bem descansado e retemperador, estávamos todos um bocado tortos... Mas, hey, acordei quase uma hora depois com a perna a doer-me e completamente adormecida, por isso pelo menos essa descansou bem!

Diogo, eu e Sommer. Sim, foi o Sommer que tirou a selfie. Que fique registado.
Saímos pela rampa do estacionamento e de repente estávamos no track. Ainda estava meio embasbacado a tentar decidir se os 2200m de altitude que o relógio indicava estariam certos, quando os vejo a atacar a subida. Respirei fundo, liguei o cronómetro e dei um passo em frente. O primeiro record pessoal do dia estava batido: nunca tinha corrido a uma altitude tão elevada. Mal sabia eu o que me esperava.

A primeira subida era o ataque ao Pico Veleta, o segundo mais alto da Sierra Nevada e 3º da Peninsula Ibérica com 3390m de altitude. Na base da pista de ski, onde nos encontrávamos, já conseguíamos ver lá em cima o imponente rochedo. Separavam-nos dele 6km com 1200D+.

Vista do Veleta desde Pradolano.
Seguimos até lá acima sempre pelas pistas de ski. O Diogo já lá tinha ido várias vezes esquiar e ia falando do que nos rodeava, mas eu estava a ter um sério problema em concentrar-me porque não conseguia parar de olhar para todo o lado, o que não dava muito jeito já que cada vez que me virava para trás lá vinha mais uma tontura por causa da altitude. A certa altura o track que seguia indicava dois caminhos para o pico, laterais ao vale, por uns estradões simpáticos. Por onde é que fomos? Pelo meio, pois claro. Apontámos alvo ao Veleta e seguimos pelo caminho mais curto. Dávamos dois passos em frente e um atrás? Siga!  Não podia correr mal, pois não?

A azul: Track que levava comigo. A amarelo: caminho mêmámau.


No topo do Veleta.
Lá chegados acima pudemos ver o nosso próximo destino: Mulhacen. O pico mais alto da Península Ibérica, só superado na Europa pelos Alpes e o Cáucaso. Se a paisagem que deixávamos para trás era deslumbrante, esta vertente da montanha, depois de virar o Veleta, era algo quase extraterrestre. Muito inóspito, árido, pontuado com neve aqui e ali. Uma paisagem quase lunar. 

Vista do Veleta. Lá ao fundo o Mulhacen.
Cerca de 7km separavam-nos do próximo pico, e esta era das partes mais interessantes do percurso. Acontece que não eram "apenas" 7km, mas sim 7km sempre acima dos 3000m de altitude. Um dos maiores desafios era conseguir correr neste planalto e perceber como o nosso corpo reagia à altitude. Para quem nunca tinha passado dos 1990m de altitude da Torre, tinha tudo para correr mal!

Fixámos o pico como destino, mais uma vez evitámos os estradões do track e seguimos quase sempre por trilhos que existiam em todo o lado. A certa altura  um trilho levou-nos a uma escarpa muito pronunciada. Na parede estavam presas umas correntes e havia um pequeno patamar de 20 ou 30cm para se fazer uma passagem de 100 metros. É claro que não fomos por lá. Nenhum pai de família que se preze passaria numa via ferrata a 3000m de altitude com um precipício de 500m para trás. Ouviram Sara, Joana e Inês? Isso teria tudo para correr mal, juro que não passámos por lá. E eu não fiquei todo borradinho e com as pernas a tremer. A sério, voltámos para trás!

Também não sei quem tirou a foto.
Já muito perto do Mulhacen o trilho levou-nos a uma cratera que quase parecia de um vulcão, com um lago lá em baixo. A encosta, ou parede, do pico, coberta de xisto refletia o sol dando-lhe um aspecto surreal. Tirando a primeira vez no MIUT, no caminho entre os picos, nunca tinha ficado tão assombrado com uma paisagem.

Lá ao fundo a parede de 400m que teriamos que escalar antes do pico. Ainda iríamos descer 100m antes de o atacar.
Este ataque final ao Mulhacen é o meu ideal de subida. Muito inclinado, sempre com uns ésses apertados, constante e longa. Os efeitos nefastos da altitude já não se faziam sentir desde o Veleta e aproveitei esta subida muito bem. No entanto, reparei que à mínima variação de ritmo as pulsações disparavam, a respiração ficava mais ofegante e sentia ligeiras tonturas. O truque era subir perfeitamente constante e foi assim que o fizemos. 

Parte final da subida. Havia muita gente a fazer caminhadas na Serra.
Cheguei lá acima num estado quase de euforia. Que subida perfeita! Já para não falar do tempo, que apesar de muito sol, àquela altitude soprava um vento fresco que nunca deixava a máquina aquecer de mais. Lá em cima havia um pequeno palanque em betão e ao lado um rochedo. Eu armei-me em esperto e subi ao rochedo. Foi giro, descobri uma coisa nova: tenho vertigens! É indescritível a vista lá em cima. O pico tem uma proeminência brutal, o que quer dizer que a vista é desafogada em quilómetros e quilómetros.

No Mulhacen, antes de ficar quase em pânico com as vertigens!
Fotografia da praxe. Uma já estava!
Na fase seguinte tínhamos planeado descer até aos 2500m, onde existia um refúgio de montanha. Para isso tínhamos um segundo track e a vã esperança que as coisas magicamente se interligassem na perfeição. De certeza que ia correr tudo bem! Assim que ligo o track aquilo não batia certo. Hm.. caga no track, vamos perguntar ao espanhois. É para ali! Diziam eles. Onde? Naquele vale? Si si! Bem, não há-de ser nada, sabemos que é mais ou menos para aquele lado, é ir andando! O que é que podia correr mal?

A descida dos 3500 aos 2500 foi das minhas partes preferidas do treino todo. Primeiro num single cheio de pedra, sempre aos ésses mesmo como eu gosto e depois quando já só tínhamos estradão à vista (relembro que não sabíamos bem para onde íamos) decidimos mandar-nos de cabeça pela encosta, sem trilho nem nada, cada um inventava a sua trajectória, o importante era chegar à base do vale e esperar que o refúgio estivesse mesmo lá! Uma loucura, acho que foi das vezes que me diverti mais a correr de sempre!

Na base da encosta, conseguem vê-los lá atrás. Foi por aqui abaixo mêmámau!
Incrivelmente, numa estratégia que tinha tudo para correr mal, demos logo com o refúgio! Uma casa isolada na imensidão da montanha, com tudo o que era preciso para dar assistência aos montanhistas que por lá passavam. Decidimos descansar um pouco antes de atacar um novo quilómetro vertical que nos levaria de volta ao Mulhacen. 

No refúgio. Acho que tirei mais selfies neste treino que no resto da minha vida.
Uma hora e tal depois (quem é que estava a contar?), estratégia afinada, fomos para a parte final do treino. Era simples, subir ao Mulhacen outra vez e depois ir para casa. O que é que isso implicava? Nada de especial, só um quilómetro vertical com 4km de extensão, dos 2500 aos 3500m de altitude! 

Porra, já disse isto em voz alta 200 vezes e continua a soar MESMO à mau!

A subida seguia o rio Mulhacen, que no verão não era mais que um pequeno ribeiro, mas o suficiente para fazer crescer erva à volta e cortar um bocado a paisagem inóspita de toda a Serra. Uma espécie de oásis com água gelada. Seguimos junto ao ribeiro durante metade do KV, sempre muito frescos, num trilho espectacular. Era tão ridiculamente bonito que lembro-me de dezenas de borboletas azuis voarem cada vez que pisávamos a erva verde fofa. A sério natureza? Vá, não exageres.

Ridículo.
A parte final desembocou na já conhecida vertente do Mulhacen, para uns salutares zigue-zagues 400m por ali acima. Que subida! Demorámos 1h36 a cumprir o KV, o que, modéstia à parte, foi mêmámau! Estávamos de volta aos 3480m de altitude e tínhamos virado o pico mais alto da Península Ibérica duas vezes no mesmo dia. Se há momentos que pedem uma foto, não me vão dizer que este não é um deles,

O papel foi um espanhol que emprestou.
Conseguem ver na encosta os dois trilhos que a sobem. Primeiro fomos pelo da esquerda e depois pelo que sobe a direito.
Dobrado o Mulhacen pela segunda vez, estávamos com cerca de 27km e 3000D+, cumpridos todos acima dos 2500m de altitude, com excepção dos 2 primeiros quilómetros. Mais uma vez, vou só ali arrumar a modéstia um bocadinho, mas estava a ser um treino do caraças! O melhor de tudo é que estávamos os 3 bastante frescos quando atacámos a descida pelo trilho em zigue-zague. Faltavam só 13km para estarmos de volta ao carro, por um caminho que já conhecíamos, o treino estava feito!

O problema foi exactamente esse: para nós, o treino estava feito. Mas faltavam ainda uns bons quilómetros incluindo os 1200D- em 6km que subimos logo ao inicio. O pior de tudo neste descida, além de ser super longa, é que do ponto mais alto conseguimos ver o nosso destino. Enfim, não havia volta a dar, era altura de meter a faca nos dentes, cerrar os punhos e comer pedra até lá abaixo. Já lá estávamos, agora era só fechar aquilo!

Foram 41km e 3300D+ no total. Um treino que tinha tudo para correr mal: partimos praticamente de directa, não tínhamos percurso definido, não conhecíamos pontos de água, não estávamos habituados à altitude...Tudo, tudo para correr mal. Mas não correu nada mal. Não, foi perfeito!

Agora vou aproveitar que pela primeira vez tirei um monte de fotos e meter um bocadinho de nojo, se não se importam. Aqui vai.





Dezenas de cabras nos pontos mais altos


segunda-feira, 4 de julho de 2016

Jornada Dupla: Moinhos Saloios On Fire

Nos dois últimos fins de semana, mais ou menos involuntariamente, experimentei um método de treino novo para mim: o chamado back-to-back. A diferença para fazer treinos diários, que faço, é que são dois treinos, ou provas, de grande intensidade, separadas por poucas horas. O que acontece é que as poucas horas que intervalam o esforço (no primeiro fim de semana foram apenas 7 horas) não são as suficientes para que o corpo recupere da prévia tareia, o que faz com que no segundo dia rapidamente se entre numa zona de esforço muito avançada. Quer dizer, eu não percebo nada de fisiologia, isto há-de ter alguma explicação cientifica, a minha opinião vem da experiência e da aplicação do coeficiente de arrasto, ou seja, a pouca capacidade de no 2º treino fazer algo mais do que arrastar-me.

Ora então, o menu foi composto por: Trail da Coruja + 28km em Montejunto no primeiro fim de semana e Santarém On Fire Trail + Moinhos Saloios no segundo.

A intensidade na linha da partida!
O Trail da Coruja foi a primeira edição de uma corrida organizada em Coruche. Com começo às 21 e 15km de extensão. Muito rápida, divertida e interessante! A pedido da organização escrevi uma pequena crónica da mesma que podem ler aqui. O dia (ou madrugada) seguinte era de 28km com cerca de 1650D+, que é a volta base de Montejunto. Acabou por ser o treino naquela Serra que me custou mais fazer. De sempre! 

Este fim de semana, por coincidência, o plano era muito parecido. Primeiro um trail nocturno, agora em Santarém, que se previa muito rápido, e na manhã seguinte os 25km desta vez de uma prova, o 3º Trail dos Moinhos Saloios na Venda do Pinheiro.

A subir uma encosta de Santarém
O Santarém On Fire Trail foi a primeira edição de uma prova organizada em Santarém pelos Bombeiros Municipais (só a organização explica/desculpa o nome meio manhoso). Foram 18km pelas encostas e centro histórico da cidade com partida a umas ainda muito quentes 20h de sábado. 

Ora, eu treino rampas em Santarém todas as semanas (Almeirim fica naquela planície que vêem lá atrás na foto anterior) desde há muito tempo. Pensava que conhecia os recantos e melhores sítios para treinar da cidade, por isso foi num misto de pânico e surpresa quando a meio da 3ª subida da prova comecei a pensar onde é que aquele pessoal tinha ido desencantar aquelas paredes! O percurso foi um constante sobe e desce por trilhos muito interessantes, com subidas demolidoras mas nunca maiores que 90D+ (a orografia não o permite), algumas descidas bastante técnicas e sempre, sempre no red line. Uma espécie de prova de 10km de estrada mas em trilhos! Muito bem marcada, apenas com algumas falhas por fitas claramente roubadas, com 3 bons abastecimentos onde bebi apenas água, quase com 700D+ num misto de trilhos, escadas, calçadas e estrada! 1h41 que me valeram um 14º lugar (não foram muitos pros, obviamente) passadas de pulmões quase em combustão. 

Uma prova muito parecida com a de Coruche, apesar de mais dura, num formato que me atrai bastante. Ao contrário das ultras, onde o factor gestão é super importante, aqui é começar à morte e acabar a morrer, o que oferece um conjunto de sensações a que não estava habituado. De realçar também a excelência da prova e organização. Depois da Scalabis Night Race, para mim a melhor prova de 10km do país, Santarém atinge agora o seu potencial máximo numa prova de trilhos muito interessante que recomendo a todos. Ah, e no fim ainda houve banho no Complexo Aquático, Sopa da Pedra e bifanas para todos. A repetir!

Cartaz dos Moinhos Saloios
Na manhã seguinte rumei à terceira edição do Trail dos Moinhos Saloios, em Venda do Pinheiro. Seriam 25km com 1000D+, o que não sendo um grande desnível era óptimo para complementar o treino anterior. 

Avisado pelas dificuldades que tinha passado a semana anterior, estive uma boa meia hora a alongar em Santarém, na esperança de estar mais fresco nos Moinhos. Infelizmente fresco foi a palavra mais distante possível de tudo o que se passou no Domingo!

A prova teve inicio às 9 horas, no relvado sintético de Venda do Pinheiro. O estádio está um pouco fora da cidade, mas no sentido oposto da localização dos montes onde decorre a prova, o que implica alguns quilómetros (poucos) iniciais e finais necessariamente em estrada antes de chegarmos aos trilhos. Esta não é uma prova com grandes pretensões. Pelo contrário, é uma prova honesta, organizada com gosto e sem grandes manias. Está lá tudo: um percurso que explora ao máximo as potencialidades da zona, abastecimentos bem apetrechados e em bom número, um EXCELENTE abastecimento final, boas marcações e gente simpática. Estão lá bons trilhos (como o do javali, meu preferido e que me levou a pensar que todas as provas têm um trilho do javali), duas subidas desafiantes, a Manique e Atalaia, e muitas outras mais curtas e perfeitamente corríveis, também lá estão as necessárias ligações em estradões e até um chuveiro de água fresca numa localidade a meio da prova!

Infelizmente, uma prova que tinha tudo para ser tranquila, foi de um sofrimento atroz para mim! E atenção, o meu plano nunca era ir no limite, mas antes percorrê-la tranquilamente. Assim que saímos do estádio e temos uma PEQUENA rampa em alcatrão para subir, parecia que já ia com 40km nas pernas. Estive vai não vai para começar a andar logo ali! O que se seguiu foi um espectáculo deprimente e o definhar vergonhoso de um gajo que daqui a menos de 2 meses vai andar a correr 100 milhas nos Alpes. A certa altura apanhámos uns degraus para subir e lembro-me de pensar que aquilo me estava a custar mais que a travessia entre os picos no MIUT deste ano. O calor não ajudou, é certo, mas isso não é desculpa e até serve de aviso, o ano passado esteve muito calor no UTMB e é mau sinal ir-me abaixo desta maneira. A certa altura já estava tão desconfortável que só queria que aquilo acabasse. Assim que inclinava um bocadinho começava logo a andar!

No fundo era isto que eu queria, um treino intenso. O objectivo foi plenamente cumprido, apesar de todo o desconforto. Estou convencido que este método de treino tem mesmo efeitos, porque em condições normais e com o treino que ando a fazer, não teria grandes dificuldades em completar a prova, apesar do calor intenso. Fi-la em 2h56, com uma aparentemente boa classificação de 35 em 200 e tal, que mais uma vez só foi possível porque não havia muita gente a andar muito.

Destaque especial para o abastecimento no final, na meta. O melhor que já vi! Um dos patrocinadores da prova era um produtor de queijo, então havia queijo fresco com fartura. Eu mamei logo 3 e proponho a partir de agora que queijo fresco (juntamente com melancia) faça parte dos produtos obrigatórios em abastecimentos de provas no verão!

Com Simão, Dourado e Chico. Companheiros de muitas aventuras, antes da prova.
Pois é, o mês de Julho está aí e com isso faltam menos de dois para o UTMB. Partindo do principio que as 3 ultimas semanas vão ser a descer, este é o mês do tudo ou nada. Estou confiante e tranquilo, há planos para ser um mês em cheio. Como sempre disse, se alguma vez fosse ao UTMB iria treinar como nunca treinei na vida para aproveitar a oportunidade, e acreditem, não a vou deixar fugir. Estou quase em Chamonix!