As minhas corridas na estrada

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Começar com o pé esquerdo.

Já há algum tempo que não me sentia tão inseguro para uma prova. Não pela dificuldade da mesma, como aconteceu o ano passado na Mitic de Andorra, apesar desta também ter aparentemente um nível de dificuldade altíssimo. Nesse aspecto, depois de no ano passado ter superado aquela loucura de percurso nos Pirinéus, sei que tenho em mim o que é preciso para virar qualquer prova desta magnitude. É óbvio que não são favas contadas, há milhares de variáveis que a qualquer momento poderão virar o jogo. Mas essas há-as em todas as provas, com o tempo vou aprendendo a lidar com elas. O que não estou habituado a lidar é com esta sensação de não ter treinado o suficiente. 

O primeiro trimestre do ano foi o período de treino mais intenso da minha vida. Nunca treinei tanto em volume de quilómetros, desnível e horas. Como sempre, foi um planeamento autodidacta, por isso a qualidade não terá sido equivalente à quantidade. Daí vieram dois resultados: uma prova sólida na Madeira, é certo, mas também umas mazelas que desde a travessia da ilha não me abandonaram, muito provavelmente derivadas do over-training.

Dez semanas separam o MIUT da X-Alpine. Reservei as duas primeiras para descanso completo (apenas umas corridas muito leves), depois 5 de carga e 3 de tapering. No fim da segunda semana percebi que precisava de mais uma calma, reduzindo o período de carga a 4 semanas. No fim da terceira tive que tomar uma decisão. As dores que sentia não tinham atenuado nem eu me sentia mais solto, mas reduzir ainda mais a carga era um risco muito grande. Por isso decidi que ia ser à mau: assobiar para o lado, ir todas as semanas à massagem e, desse por onde desse, tinha que arrancar 4 boas semanas de treino. Mantive os 5 ou 6 treinos de corrida semanais, passei a 2 sessões de ginásio em vez de 3 e juntei uma hora de natação à semana. 

Nas duas primeiras das 4 de carga a coisa não correu nada bem. Média de 70km com 2500+, longe do desejável. O pior de tudo é que continuava a sentir-me preso e a forçar a perna direita. Nas ultimas duas semanas foi o tudo ou nada. Cortei mais uma sessão de ginásio (os exercícios muito concentrados não estavam a fazer bem ao músculo lesionado), mantive a natação (é para continuar, já tinha saudades) e arranquei duas semanas de 90km com 3500+. O longo da primeira foi a espectacular prova na Serra Amarela e da segunda foi um dia de montanha na Serra da Estrela, que incluiu duas subidas e descidas à Torre, naquele que é certamente dos percursos mais exigentes em Portugal: Loriga - Torre - Alvoco - Torre - Loriga, 36km com 2650+.

Entrei nas 3 semanas finais de rastos. O treino da Estrela foi surpreendentemente duro. No dia senti-me leve (talvez o melhor dia pós-MIUT), fiz uma boa descida e subida do Alvoco (e se ela é difícil), mas no dia seguinte mal conseguia andar, tinha rebentado os quadricepes. A primeira semana de tapering foi horrível, parecia que tinha acabado uma prova de 3 dígitos. Neste momento estou a terminar a segunda e tenho-me sentido um pouco melhor. Resta-me a semana final que vou fazer de paragem completa e dessa forma tentar sarar todas as feridas para que à uma da manhã de dia 7 de Julho esteja minimamente em condições físicas. 

Serra Amarela. Das minhas provas preferidas de sempre.

Descanso a meio da Garganta da Loriga

Grupo Bora-Bora Hardcore. Ultima vez visto em Serra Nevada.
Agora a prova.

Tenho estudado muito a X-Alpine. Na altura foi o perfil que me prendeu de imediato. São 111km com 8400D+, com praticamente todo o desnível distribuído apenas em 5 subidas.


Integralmente corrida nos Alpes, discutivelmente a melhor localização do mundo para uma corrida de montanha, a X-Alpine, que vai para a 10ª edição, sempre se identificou como uma prova puramente alpina e de nível técnico muito elevado. Chamam-lhe a Mitic dos Alpes. Todas as 5 principais subidas têm inclinações médias superiores a 20%, sendo que a primeira vence o desnível de 1900m em 9km e a ultima 1250 em 5km (!!!). A cota mínima é de 714m, a máxima de 2828 e vamos andar muito tempo acima dos 2000. Traz ainda uma novidade em relação ao que estou habituado, os abastecimentos são muito espaçados no tempo, o que torna a gestão da alimentação entre abastecimentos crucial. Resumindo, tem tudo o que eu gosto numa prova!

Dia 7, à uma da manhã (meia noite portuguesa) lá estarei em Verbier, no coração dos Alpes Suiços, para pelo menos 30 horas de montanha pura! …e tentar não estar entre os 60% que todos os anos não conseguem terminar a prova.

Uma coisa é certa, venho com boas histórias para contar. 

Sacado do site da prova

idem

idem

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Serra Amarela SkyRace (35km) - Uma pérola.

De vez em quando vêem-se por aí aqueles apanhados das provas que há no mesmo fim de semana, normalmente a realçar a enorme quantidade de oferta. Não vi nada sobre o ultimo, mas acredito que tenha sido um desses, assim de repente lembro-me de 7 ou 8. Este fim de semana arrisquei. Peguei na família, fizemos mais de 350km de carro e fomos para um parque de campismo no sopé do Gerês, na localidade de Entre Ambos-Os-Rios. O pretexto era a participação na Serra Amarela SkyRace, uma prova de 33km organizada pelo Carlos Sá. Na verdade, a aposta até nem foi muito arriscada, as organizações do Carlos são reconhecidamente de excelência. Estava à espera de uma boa prova, num sitio magnífico que é o Parque Nacional da Peneda-Gerês, mas esta corrida foi tão mais do que estava à espera, no meio de tanta oferta encontrei uma verdadeira pérola. Se tivesse que fazer uma check-list com o que acho que uma prova deveria ter, esta preenchia todos os requisitos. Perdoem-me todos vocês que participaram noutras provas, mas a melhor corrida do fim de semana (ou do ano?) teve inicio às 7 da manhã em Entre Ambos-Os-Rios.

O fim de semana estava planeado há uns meses. Eu e a Sara, antes de sermos pais, acampávamos todos os anos e, com o mai-novo já com 2 anos, decidimos que íamos finalmente acampar com os miúdos. Infelizmente o fim de semana invernal em pleno Junho fez-nos alterar os planos e fizemos o up-grade da tenda para uma muito confortável casa na árvore! Sim, leram bem, vejam lá:




Ficámos no parque de campismo Lima Escape, numa espécie de península rodeada de água por 3 lados, um sitio inacreditável. Além do habitual espaço para tendas e caravanas, o parque tem uma oferta muito interessante de bungallows. Já ficámos em hotéis mais baratos (70 euros por noite), mas é daquelas coisas que valem bem mais que o dinheiro. 

Localização, vista no maps. Já agora, a Adega do Artur tem uma boa posta barrosã!
Como em tantas outras aventuras, juntaram-se a nós o Vasco e a família. A corrida era no domingo, o que deixava o sábado livre para passear pelo Gerês e, claro, uma corridinha ao amanhecer :)

Era esta a vista do parque quando começámos o treino de 11km com 400+. Juro que não fui ao google pesquisar por "paraíso"!
Apesar da manhã espetacular, o tempo acabou mesmo por virar e durante a tarde veio a chuva que continuou a cair durante toda a noite. Estava uma autentica manhã de inverno quando fomos a pé, às 6:30, para o local da meta. Antes da partida o Carlos Sá deixou umas breves recomendações em relação à prova. Avisou que lá em cima estava agreste a sério, que quem não ia bem equipado era melhor ir à prova dos 23km que se manteria por cotas mais baixas e que os 33 passariam a 35km, já que no dia anterior tinham estado duas horas a tentar montar a tenda do abastecimento no ponto mais alto (Louriça, 1350m) mas que devido à chuva e vento não conseguiram e tiveram que descer um pouco a encosta para um sitio mais abrigado, o que aumentaria a distancia. "Pensem bem no que se estão a meter, isto é uma prova de montanha, não há estradões para vos ir buscar! Se começarem a subida têm obrigatoriamente que chegar ao topo para terem assistência!". Engoli em seco.

Com o Vasco antes da partida, abrigados da chuva.
Passava pouco das 7 das manhã quando o Joca, debaixo de chuva torrencial, deu a partida aos cerca de 250 atletas distribuídos pelas provas de 48km (150) e 35km (100). Os percursos eram muito semelhantes. Começaríamos por subir todos até ao Alto da Louriça, depois os 35km voltariam logo para baixo e os 48km desceriam a outra vertente da montanha para voltar a subir à Louriça e descer até à partida. Este é o perfil da minha prova:

Uma subida, uma descida, 1800D+. Numa palavra: perfeito.

Os primeiros 4km, aquela parte mais plana, foram todos feitos a correr a bom ritmo, sempre em trilhos. Foi nesta altura que fizemos a primeira de 5 ou 6 travessias de rios. Com o que choveu durante a noite estes tinham muita corrente e caudal, invariavelmente eram atravessados com água pela cintura! Soube depois que nesta primeira travessia, a única sem cordas, os participantes acabaram por fazer uma corrente humana para se ajudarem uns aos outros a passar. Muito fixe. Sim, estava perigoso, mas sinceramente não me chocou. Quem se mete numa prova destas tem que saber que vai apanhar coisas assim. Aliás, não ouvi ninguém a queixar-se! Ainda a semana passada se viu a Emelie Forsberg e amigos a fazerem o mesmo na Madeira.

Foto espetacular que o Paulo Machado me enviou!
A subida propriamente dita começou antes dos 5km. Seriam nada mais nada menos que 10km onde venceríamos 1300m de desnível positivo! No inicio ainda de baixo de chuva, esta foi desaparecendo à medida que a cota ia subindo e nos embrenhávamos na serra. O trilho era muito técnico, a subida muito trabalhosa, mas nunca demasiado inclinada. O meu estado de euforia ia subindo na mesma proporção que a altitude, enquanto ia entrando mais e mais na prova. As nuvens mais baixas dispersavam e tivemos uma panorâmica impressionante da montanha, arrependo-me tanto de não ter tirado fotografias! 

A subida era incessante, muito variada, com troços planos que dava para meter trote. Impossível andar devagar. Pelos 700m entrámos nas nuvens e num nevoeiro muito cerrado, mas pouco frio. Chuvia novamente. Só via o trilho e um raio de 15 metros. Lembro-me de pensar que num trilho tão perfeito como aquele não precisava de mais, podia estar ali sozinho o dia todo a subir, ofegante, a escorrer suor que se misturava com os pingos gelados da chuva, só com 15 metros de visão - valeria a pena. Nem precisava de ter visto aqueles cavalos selvagens a surgirem do nevoeiro a 10 metros de mim, nem aquelas vacas barrosãs, nem os incríveis maciços graníticos. Mas vi isso tudo nesta subida. Ah, vi tanto nesta subida! Pelos 1100m a nuvens voltaram a dispersar e vi os arbustos rasteiros com flor amarela e lilás que cobriam a encosta. Vi a calçada romana que nos conduzia pela crista da montanha mas também vi encostas nuas para subir, sem trilho, mesmo como gosto. Nova travessia de um ribeiro, desta vez aos 1000m, com água gelada pela cintura e logo a seguir toca de subir uma parede. Muita água, frio e vento, mas logo a seguir as nuvens dispersavam e a temperatura subia a pique, só para voltar a descer uns segundos depois. Cheguei ao abastecimento da Louriça, o segundo da prova, com um sorriso parvo na cara. O único problema desta subida era não ter continuado mais uns quilómetros.
A única fotografia que tirei na prova, nos 1300m. Aquilo lá ao fundo, no colo, é uma tenda. Tentem fazer zoom para perceberem a imensidão. 
Metade estava feito, estava no topo, com quase 1600+, e era altura de descer em igual proporção. A meta estava a quase 20km, praticamente sempre a descer. Mas era muito mais do que uma descida que me separava de Entre Ambos-Os-Rios. Naqueles primeiros 7 ou 8km, onde descemos lentamente dos 1350 até aos 900m de cota, entrei em perfeita comunhão com a montanha, como nunca me tinha acontecido. Não quero parecer lamechas nem pretensioso, não consigo descrever aquele sentimento de outra maneira. Durante este período não vi uma única pessoa, só as bandeirolas laranja me guiavam pelo planalto, sem trilho. Eu é que tinha que decidir a melhor maneira de ir de uma até outra. As nuvens ora cobriam ora dispersavam, até que fecharam completamente nos 1000m e a chuva voltou a cair muito forte. Água por todo o lado, escorria pela encosta formando pequenos cursos de água que explodiam debaixo dos meus pés. A certa altura parecia flutuar por cima do caminho super técnico, que obrigava a uma concentração permanente. Quando este dava uma pequena folga a passada abria imediatamente e voava por cima do terreno fofo. Foi assim durante quase uma hora até chegar a novo abastecimento. Parei para comer umas fatias de presunto quando uma voluntária me perguntou: "então, está muito mau lá em cima?" Mau? Estava perfeito!!

Nova travessia, esta com cordas, já perto do fim. Foto da organização 
A descida continuou, agora em terrenos mais rurais ou em calçada de granito onde era possível correr mais depressa, até que voltámos à cota do rio para uns quilómetros finais mais técnicos em que os atravessamentos deste eram constantes. Nesta altura cruzámos com a malta dos 23km, o que me cortou um pouco aquela sensação de ir sozinho na montanha. O que não cortou foi a adrenalina, dei tudo naquela descida, sem qualquer gestão de esforço. Tanto que nas pequenas subidas (depois do topo ainda subimos mais 200m) já me sentia a ir um pouco abaixo. Mantivemo-nos no trilho até 150 metros da meta, onde tivemos que subir uma rampa em alcatrão. Lá estavam a Sara e os miúdos, que atravessaram a meta comigo.



4h53 para os 35km com 1800+. Mesmo a tempo de ir a correr ao parque de campismo tomar banho antes do check-out e seguir para uma francesinha em Ponte da Barca, antes de enfrentar de novo os 350km de carro!

No final estava extasiado e demorei algum tempo a descer à terra. Foi perfeito. Não me ocorre outra palavra. Tudo nesta prova foi perfeito. O percurso 99% em trilho (e que trilho), boa subida, boa descida, marcações impecáveis, 4 abastecimentos super completos, simpatia de toda a gente, ambiente incrível, técnico, duro, com partes para andar depressa, rios para atravessar... até o clima ajudou! Quem gosta de trail gostará desta prova, não tenho a menor dúvida. É uma verdadeira pérola que o Carlos Sá aqui tem e fiz questão de lhe dar os parabéns no fim. Mas, shhh, se calhar é melhor parar com os elogios, fica só o nosso segredo. Para o ano quero fazer novamente aqueles 7km de descida sozinho :)