As minhas corridas na estrada

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Pisão Extreme (65km) - Visceral

Parei, ofegante, em frente a uma parede cinzenta. Ao meu lado estava uma fita laranja que me indicava estar no sitio certo, mas não conseguia ver a seguinte. Olhei a 360º e tive uma vertigem, para trás estavam as rochas que tinha acabado de escalar, dos dois lados um precipício que se tornava infinito por causa do nevoeiro e à minha frente a parede. Granito, vertical, cinzento. Bem mais alto que a minha cabeça. Tinha que transpor a parede e procurar, lá em cima, a próxima fita. Pois bem, larguei os bastões, que ficaram pela milésima vez naquele dia pendurados nos pulsos, e, com a mão direita, procurei uma fenda na ronda. Fiz força, não se deslocou. Ok, agora os pés. Enfiei o pé esquerdo numa fenda da rocha e elevei-me. Agora procurava um apoio para o pé direito, que estava no ar. Dei dois pontapés numa pequena protuberância no granito para testar a resistência. Parecia ok. Icei-me e fiquei com a cabeça acima da parede. Arrastei os bastões pendurados e consegui puxar a perna esquerda lá para cima. Com um grande esforço pus-me agachado em cima do granito e assim que me levanto para procurar a próxima fita uma rajada de vento brutal provoca-me um desequilibro, ao mesmo tempo que limpa ligeiramente as nuvens em redor. Todo o meu corpo treme, um arrepio percorre-me a espinha e o sentimento é de puro medo quando vejo o caminho. Estava na barriga do Monstro da Pena.

Esta fotografia do Paulo Nunes ilustra na perfeição o que foi o Pisão Extreme. Reparem bem na dimensão dos dois atletas comparada com a magnitude da Montanha. Como diz o Armando Teixeira: Enjoy Being Small
Umas boas horas antes de enfrentar o Monstro estava no Bio Parque de Carvalhais pronto para a aventura. Muitas caras conhecidas, abraços e sorrisos nervoso ocuparam o tempo até o Joca dar a partida. Essa aconteceu às 6 e pouco da manhã, ainda bem de noite, debaixo de uma chuva miudinha. A previsão era do tempo melhorar ao longo do dia, mas por enquanto estava muito frio, vento e chuva. Por isso parti com o equipamento para o frio todo vestido com esperança de ir retirando camadas nas próximas horas.

Eram 120 à partida. Decorem este número. Fotografia do Paulo Nunes.
Já conhecia bem os primeiros 8 ou 9km dos 65 do Pisão Extreme. O percurso era igual à prova de 35km, que fiz (e adorei) o ano passado. Uma primeira subida fácil, dividida em dois, levar-nos-ia até ao topo da garra, para um primeiro vislumbre da magnifica Serra da Arada, já para lá da cota 1000. É aqui que oiço falar pela primeira vez do Monstro da Pena, da boca do meu amigo Viriato Luís Nunes. O tempo, como era de esperar, piorava ao ritmo dos metros verticais conquistados, e, lá em cima, além da vista, tivemos oportunidade de sentir também pela primeira vez o clima de montanha que nos esperaria todo o dia. Com o capuz do impermeável enfiado na cabeça, por cima do gorro, lancei-me pelo dedo da garra abaixo, em direcção ao fundo do vale. 

A descer de bastões, pois claro. Foto do meu amigo Fritz
A chuva intensa das últimas semana deu vida à serra, havia água por todo o lado. Quem conhece a Arada reconhece imediatamente as pregas formadas pelas encostas, agora imaginem que em cada uma dessas pregas corre uma cascata de água que desagua no fundo dos vales. A travessia de ribeiros no fim de cada descida era inevitável e a primeira delas foi na base da encosta de Gourim. Lá estavam dois bombeiros, com fatos isotérmicos, a ajudar-nos a atravessar o rápido de água gelada e com uma corrente impressionante. Mal entro a água chega-me à cintura e a corrente trata de me desequilibrar o suficiente para me molhar até ao peito. Estava dado o primeiro aviso.

Fotografia do bombeiros voluntários de São Pedro do Sul na tal primeira travessia.
Primeiro abastecimento, na Casa Margou, em Gourim. 8km e quase 1000+. Comi rapidamente e cumpri o resto da subida até ao ponto de separação das provas e iniciar o périplo pela Arada desconhecida. Lá em cima o caminho dividia-se em 3. À direita ia o pessoal dos 24km, diretos ao Fujaco, ultima subida da prova, em frente os dos 35, que desceriam até Drave onde chegaria dali a alguns quilómetros, e nós fomos para a esquerda, rumo ao desconhecido. A prova ia, finalmente, começar.

Ainda não vos tinha mostrado o pente. O ponto de separação é ali no inicio da terceira descida.
Uma descida enorme, muito técnica, com inclinações a andarem pelos 40%, empurrou-nos para as profundezas de um vale. A paisagem era de cortar a respiração, a toda a volta se viam cascatas brancas. Iamos conquistando a encosta despida de vegetação, sem trilho nenhum, por entre desequilíbrios provocados pela lama e xisto molhado. Lá em baixo começava a vislumbrar-se o destino: o inevitável ribeiro que teríamos que cruzar antes de subir. Mas desta vez havia uma diferença, não haviam bombeiros.

Comecei a planear na cabeça a travessia. Decidi tirar as luvas, pensei eu que molhar as mãos seria inevitável e quis evitar ensopar as luvas antes de enfrentar a próxima grande subida. Meti-as dentro da mala e preparei-me para atravessar. Assim que entro a corrente empurra-me e..zuca, água até ao peito e luvas molhadas! Tá bonito. Dou um passo atrás e começo a tentar agarrar os ramos de uma árvore que cobriam a travessia, mas partiam-se sempre. Na outra margem estava um companheiro (que falou comigo várias vezes mas não decorei o nome, com um impermeável amarelo. Se leres isto, diz!) com a mão esticada. Arrisquei um passo, inclinado contra a corrente, e agarro-lhe a mão, que me puxa para fora das águas geladas. Esperei que a Jocelina, primeira mulher e minha companheira de vários km, atravessasse o rio e seguimos os 3 juntos montanha acima. Todas as 5 ou 6 pessoas que estavam ali naquela altura só conseguiram passar com ajuda, nem imagino o que foi passar aquilo sozinho!

Mais uma foto brutal do Fritz. Este sou eu.
A subida, com vista para o ribeiro, começou por umas escarpas muito agressivas. Calcei as luvas e preparei-me para a grande caminhada que nos levaria novamente à cota 1000. Mais uma vez o tempo foi piorando com a elevação, as nuvens que ora apareciam ora eram sopradas pelo vento, cobriam agora totalmente a serra. Não tinha conseguido aquecer depois do banho no rio e o ritmo de subida não era suficiente para produzir calor. A encosta era completamente exposta, o vento cada vez mais forte e cortante. Começou a chover com força e logo de seguida granizo que picava as pernas e a cara como agulhas. As mãos gelaram e pela primeira vez sentia-me eu próprio gelado, apesar de todas as camadas térmicas, que agora estavam completamente ensopadas. Seguia num comboio de 5 ou 6 pessoas, todas em silencio, provavelmente tão assustadas como eu. 

Virámos finalmente a montanha! Só queria começar a descer para voltar a aquecer e, verdade seja dita, descida foi o que não faltou a seguir. Quase 4km, que começaram no trilho dos Incas e desembocaram nos Três Pinheiros (que eram três, em Julho já só eram dois e agora só já resta 1!), que fiz a subir uns meses antes na UTSF. Mais uma brutalidade de descida, super inclinada, pela encosta virgem, levou-nos a nova travessia de rio, esta muito mais larga e, agora sim, com dois bombeiros e cordas para ajudar. Vamos lá ao banho então.

Mais uma foto dos bombeiros de São Pedro do Sul. Que trabalho fizeram eles!
Banho tomado e, como seria de esperar, mais uma subida nos separava do segundo abastecimento, em Regoufe. Aqui comecei a ver as primeiras desistências e o ar de desânimo era geral em todas as caras. A progressão estava a ser lentíssima, cheguei aos 18km com quase 4 horas de prova, mas tanto era lenta para mim como para os outros. Continuava num comboio um bocado compacto por esta altura. 

A chegada a Drave foi por um trilho que já conhecia de outras aventuras e agora estávamos novamente a embocar no percurso dos 35km. Sabia exactamente o que me esperava: uma subida absurda à saída de Drave, depois descida por um trilho +/- corrível e finalmente uma parede quase vertical, conquistada à encosta. 

Malta à saída de Drave. O elevador estava avariado! Foto do Fritz.
Foi logo à saída de Drave que notei uma dor chata no joelho direito quando o fletia e usava a perna direita para me elevar. Comecei a defender-me usando muito os bastões, talvez por isso hoje ainda tenha alguma dificuldade em levantar os braços... As duas subidas, de 350+ cada uma, eram tal qual me lembrava: demolidoras. Sem trilho, com muita pedra e a exigir um planeamento de cada passo. A inclinação chega a passar os 60%! Tínhamos constantemente que usar os braços. Esta era a parte mais difícil da prova do ano passado e mais uma vez senti que estava dentro de uma máquina de lavar, desta vez nem faltou a água! É impressionante como as subidas se formavam à nossa frente, como uma onda gigante que vai crescendo, enquanto descíamos a encosta e vemos os pontos pequeninos do outro lado do vale.

Continuei em território conhecido na grande descida para Covas do Monte, onde os percursos se voltavam a separar. Agora já o comboio se tinha dispersado e seguia atrás de um atleta do país de Gales, que me serviu de companhia várias vezes. A descida era mais uma vez muito difícil, mas enganava e deixava-nos correr em certas alturas. Deve ter sido numa dessas que me desconcentrei e fiz uma daquelas entorses feias que até fazem CRAC. Dei um grito e sentei-me no trilho a dizer asneiras. O Galês perguntou-me se estava tudo bem e eu disse-lhe que sim, enquanto cambaleava novamente trilho abaixo para não deixar o pé arrefecer. O que vale é que foi no pé direito, a juntar ao joelho que estava a dar sinal só se estragava uma perna!

Mais uma foto brutal do Fritz.
Em Covas do Monte, novo abastecimento, sorvo duas sopas bem quentes e preparo-me novamente para entrar em território desconhecido. O Rodrigo Quintal dizia-me que a partir dali a coisa aligeirava, mas eu já desconfiava que não devia ser bem assim antes de uma seta nos mandar para o lado esquerdo e começarmos a subir mais uma encosta virgem.  

Esta foi a minha pior fase da prova, comecei a subida muito devagar e perdi algumas posições. Mas sabia que enquanto ela se mantivesse constante e sem grande tecnicidade eu conseguia ir descansando no ritmo e voltar a entrar na prova. Mas o Pisão tinha outros planos. A meio desta subida fizemos a primeira de muitas incursões em cristas. 

É muito giro ver o Killian a correr nas cristas, a saltitar de pedra em pedra. Mas é lá em cima, perto dos 1000m, com chuva, vento e frio que se vê realmente o que aquilo significa. Esqueçam os trilhos, esqueçam as subidas típicas do sky que tanto vos falo, esqueçam descidas técnicas com lama e cordas. Ali é outro  mundo. Ali sente-se como em mais lado nenhum a vertigem da montanha, o respeito pela enormidade que nos rodeia e, muito sinceramente, o mais visceral medo. As bandeirolas estavam separadas algumas vezes dezenas de metros, entre elas era pedra e mais pedra, bem no topo da montanha. Progredia como podia, com a respiração mais ofegante pelo medo do que pelo cansaço. Sentia que ao mínimo deslize, e friso, mínimo deslize, as consequenciais seriam desastrosas. Eu sei, já estão a pensar que isto não tem jeito nenhum. A verdade é que estas provas não são para todos. É bom que à partida as pessoas saibam onde se estão a meter, nem todos têm que gostar do mesmo! 

Fotografia do Fritz num outro dia. Subimos por aquela crista de pedra. É pena não dar para ver bem a dimensão da coisa. Fritz, se estiveres a ler isto, faz favor de arranjar uma foto das cristas!
A descida continuou íngreme até ao Rio Paivô. Lá em baixo voltámos a embrenhar-nos nas árvores, num trilho maravilho ao lado do Rio, que corria furioso. A subida para a aldeia da Pena iniciou numa garganta brutal, no Trilho do Morto que Matou o Vivo (juro que não sou eu que dou estes nomes). Um daqueles sítios com paredes tão altas à nossa volta que o GPS até perde o sinal! Subimos por um trilho aos ésses, a acompanhar uma cascata. A água foi omnipresente em toda a prova, é espetacular sentir a montanha viva.

Inicio do trilho do morto, num dia de verão. Imaginem isto com 10 vezes mais água. Foto do Fritz.
A Aldeia da Pena surge numa pequena trégua a meio da subida. Um oásis que nos seduzia com as suas casas de xisto e fumo a sair de chaminés de salamandras. Parei no abastecimento e meti conversa com quem lá estava. Perguntei o que se seguia. Eram apenas 6km até à base de vida, faltava só metade da subida! "Mas a subida....." dizia a senhora, "a subida... bem, é ali". E apontou para uma encosta totalmente cinzenta do granito. "Como assim?" perguntei eu. "Sim, é por ali... mas é curta, são só 6km até à base de vida!". Hm.. algo se passava.

Estava prestes a enfrentar o Monstro da Pena.

Percebi imediatamente que estava lixado quando vi uma corda. Tínhamos passado por cristas vertiginosas, por inclinações de 60%, por descidas em precipícios e até por travessias de rápidos. Ainda não tinha visto uma única corda ou corrente! Agora ali estava ela, a rir-se de mim. Deixei os bastões pendurados nos pulsos e trepei por ela. 

O Stian a passar na Aldeia da Pena. Vejam lá ao fundo as pedras, é o Monstro!
O que se passou no próximo quilómetro foi uma insanidade que demorei quase 45 minutos a transpor. Foram metros e metros de autentica escalada, de becos sem saída, de pedras escorregadias e braços a latejar. Todos os movimentos eram pensados, etapa após etapa. À medida que subíamos a vegetação ia desaparecendo, aumentando a sensação de vertigem, até que finalmente progredíamos na crista, esta ainda mais eriçada que a anterior. Imaginava o que era pensar em desistir naquele ponto, não havia volta a dar a não ser continuar até chegar a porto seguro! 

Quando finalmente pisei terra firme respirei de alivio e soltei um riso nervoso. Ainda hoje me arrepio quando me lembro dos sítios onde passámos!

A base de vida chegou pouco depois, aos 42km, em Macieira, depois de virarmos o São Macário. Estava com nada mais nada menos que 42km, 4700+ e 10 horas de prova. Sim, leram bem. Não tenho dúvidas nenhumas, estes foram os 42km mais difíceis que já fiz na vida. Nada se compara a isto. 

Peço desculpa pelas "imagens de arquivo", mas não tenho nenhumas melhores para ilustrar. Esta é do Paulo Nunes!
Na base de vida estava o meu amigo Hugo e a Ana, que foram incansáveis no apoio. Troquei a camisola térmica, tshirt, buff e luvas por outras secas, o que me deu nova vida. Bebi nada menos que 4 (quatro) taças de sopa e preparei-me para os 20km finais. Por incrível que pareça, mesmo depois daquele porradão que levámos até ali, sentia-me com força e ânimo! Enviei uma mensagem à Sara a dizer que só não acabava se me partisse todo numa descida. Acho que ela achou uma brincadeira, espero que não tenha percebido que isso era uma real possibilidade. 

Felizmente a partir da Base de Vida a prova mudou completamente. Duas subidas de cerca de 350+ separavam-nos da graaaande descida em estradão até ao Fujaco, onde enfrentaríamos a ultima grande dificuldade, uma parede de 700+. Até lá segui acompanhado do Rodrigo Quintal, a navegar de fita em fita, em equipa, por trilhos mais acessíveis, que culminaram no tal estradão de 3km a descer até ao Fujaco. 

Lá, no ultimo abastecimento e na base do ultimo grande obstáculo, estava o João Miguel que me contagiou com o seu habitual entusiasmo. Não me demorei muito no abastecimento, na verdade estava deserto para me por à prova na grande subida e chegar ao fim. 

Tal como me lembrava, a subida era super inclinada, a primeira parte, com 1.4km de extensão, tem uma inclinação média de 36%! Mas é o tipo de subida que eu gosto e onde estou confortável: sem grandes obstáculos que exigam muita amplitude de movimentos e com inclinação constante. Relaxei e deixei-me entrar na subida, num passo muito constante e confortável. Quando me apercebi estava a apanhar malta na subida e a deixar outros para trás! 

Agora era só cumprir os quase 7km de descida que nos separavam da meta, de trilhos fáceis e finalmente estradão, o que fiz quase sempre a trote. Afinal de contas, pelo menos até aos 42km a corrida tinha sido praticamente nula. Estava todo amassado da cabeça aos pés, mas os músculos da corrida ainda estavam intactos! Foi isso e o entusiasmo de chegar antes das 15 horas, coisa que.....falhei por 6 minutos! ahah Não sem antes, a 50 metros da meta e numa ultima travessia de um ribeiro, me tenha desequilibrado e dado um mergulho que me deixou dentro de água até ao pescoço! Muito agradável.. ainda hoje não consegui aquecer!

Na meta estava o Joca, ao qual respondi atabalhoadamente a algumas perguntas, e o meu amigo Sérgio, cérebro da organização, a quem dei um apertado abraço e agradeci pelas 15 horas passadas na montanha. 

Esta foi daquelas que, muito mais que uma corrida, foi uma aventura. Sinto que não estou a conseguir passar neste texto as emoções que passei até à Base de Vida, mas há coisas que são perfeitamente indescritíveis. Esta prova é única em Portugal e, como disse lá atrás, não é mesmo para todos. Dos 120 que começaram, apenas 59 atravessaram a meta e eu fui o 25º destes. Muitos dos que ficaram pelo caminho são tão ou mais capazes que estes 59 vencedores, mas num dia destes há factores que são imprevisíveis e que de um momento para o outro nos tiram da prova. 

Hoje sinto que fiz parte de algo especial, que todos os 120 que lá estiveram se tornaram meus irmãos de armas. Ah, e dou graças aos Deuses todos que existam por ter acabado, é que não me apetecia nada ter que voltar a passar por aquilo tudo!








Link para o Strava.









segunda-feira, 11 de novembro de 2019

XI Trilhos de Casaínhos - Sempre a mesma coisa.

Casaínhos. Mais uma vez, Casaínhos...

É todos os anos a mesma coisa! É que não muda nada! 

Este ano tivemos sorte, estava um bom dia. Mal lá cheguei comecei logo a ver caras conhecidas. Dos 300 inscritos acho que devo ter cumprimentado uns 290! Os tais 300 que todos os anos (e já vamos na 11ª edição) esgotam a prova em poucas semanas, mesmo com praticamente zero promoção. Sempre a mesma coisa...

Vi a malta da organização, meteram-se com a Sara, que este ano não correu, e perguntaram-me pelos miúdos. Vi amigos que já não via há um ano, desde a ultima edição de Casainhos. Trataram-me pelo nome e, como todos os 6 anos que lá fui, senti-me em casa. Em família. Não muda nada...

O percurso? Adivinhem! Yep, igual a todos os outros anos! 14km, 600+, sem inventar, sem arranjar miraculosamente uma ultra maratona pelos cabeços de Fanhões ou uma caminhada para chamar mais gente. Nah, ali há um distância, há bons trilhos, há boas subidas e há dois abastecimento. Quem quer, quer. Quem não quer... bem, paciência, sempre foi e sempre será assim! Igual...

Este ano até foi o meu melhor de sempre em Casaínhos! Foram 14km feitos com a corda no pescoço, quase sempre em conjunto com o meu amigo João Oliveira, que me valeu um 4º lugar na classificação geral! O escalão? Bah, esqueçam isso, em Casaínhos não há cá dessas coisas! 

Despachei-me depressa e fui vendo o pessoal a chegar. Vi o Sommer a chegar com o filho num tempo espetacular (há quem diga que o está a treinar para me ganhar), vi a Mariana Prudêncio a vencer a classificação feminina, vi o João mais uma vez a superar-se, vi dezenas e dezenas de amigos a cruzarem a meta de sorriso na cara. Cada vez que alguém chegava, um miúdo da organização dizia o número do dorsal em voz alta e outra pessoa apontava numa folha de excel, juntamente com o tempo, tirado à mão. Onze anos, zero chips. É assim que se faz em Casainhos, à antiga!

Por falar em sempre a mesma coisa, e o almoço? Pois claro: canja e feijoada! Todos. Os. Anos. Servido por baixo dum telheiro em mesas corridas, como se fossem aquelas matanças de porco à antiga feitas nas garagens dos tios. Garrafas de sumo, água e vinho espalhadas pelas mesas, conversas a sobreporem-se, sem musica de fundo irritante e uma cerimónia de pódio que não durou mais que 5 minutos. O que interessava ali era estar com a família, conversar e matar saudades. 

Casaínhos? É sempre a mesma coisa, não muda nadinha!

...ainda bem!

É isto!

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Marão Sky Up (30km) - Ali viveu-se.

Não há volta a dar. Estou cada vez mais viciado neste tipo de provas! Curtas, com quantidades absurdas de desnível, técnicas a roçar o perigoso e em montanha a sério. É principalmente isso que adoro, andar na montanha. Sair da linha das árvores, escalar pedra, sentir as diferenças de temperatura brutais à medida que subimos a cota, andar enfiado em rios no fundo dos vales e sempre, sempre com o coração a sair pela boca! Não há volta a dar, estou apaixonado pelo Sky Running! Foi a essa vertente do trail que decidi dedicar a ultima metade do ano. Depois dos 42km da Freita e dos 25km da Lousã, desta vez o desafio foi na Serra do Marão, no Marão Sky Up (MSUP), que tinha como cartão de visita uns astronómicos 30km com 3000+!! 

Uma das minhas fotografias preferidas de sempre, pela grande Susana Luzir
Reunimos uma tropa impressionante de malta Almeirinense (éramos sete!) e no sábado lá seguimos no furgão da Associação 20km de Almeirim rumo à aldeia de Ansiães, no coração do Marão. Pela primeira vez fiquei em Solo Duro e, tenho que dizer, foi muito positivo! Penso que os meus companheiros, munidos de colchões que iam de 0.5 a 3cm de espessura, não tiveram a mesma experiência. Eu, como não brinco em serviço, dormi numa king size:

A minha cama está a rir-se de todas as espumas da Yoga deste mundo
Os Vintes presentes no MSUP. 
Durante toda a semana fui falando com o Bruno, traçador do percurso e mentor deste MSUP e do Ultra Trail do Marão, que me dava conta das más condições meteorológicas e como isso lhes estava a dificultar a vida, obrigando mesmo a algumas soluções de recurso. Choveu praticamente todos os dias, incluindo na noite antes, mas na manhã de domingo estava bom. Frio, mas bom. Apesar disso, as nuvens não deixavam ver o topo da serra, o que antevia piores condições lá em cima. Nem eu imaginava quão piores! Mesmo com o Bruno a avisar-me que "o Marão é um inferno, de verão ou de inverno"!

Às 8:30 em ponto, depois de um briefing, feito pelo Bruno e o Isaac (responsável pela segurança), a alertar para as más condições e para a perigosidade de algumas secções, lá partimos para a primeira edição de mais uma grande prova do nosso calendário.

Partida. Da organização
Parti preparado para o pior. Vestido com uma térmica de manga curta, com a tshirt da equipa por cima, e manguitos. Estava bom para o fundo do vale, mas para enfrentar as cotas mais altas levei na mala um impermeável, buff e luvas. Acabei por usar isto tudo e, em certas alturas, puxar os manguitos para baixo e achar que a térmica era de mais! 

O perfil era mesmo como eu gosto! Com o enorme desnível concentrado em três subidas, duas delas km verticais. A primeira era a mais curta das 3, com 500+, que nos levou até ao primeiro pico do dia. Uma subida fácil, em 3km, com alguns estradões, trilhos poucos inclinados e alguns mais difíceis, elevou-nos à cota 1000 onde se percebeu que a partir dali entrávamos noutro mundo. Mas desta vez ainda não ficaríamos lá em cima muito tempo. Uma descida absurdamente inclinada, com vários pontos acima dos 40% de inclinação, tratou de nos enfiar no fundo do vale. Esta é das tais que afasta os curiosos e que activa aquele click na cabeça de muita gente que diz "não, o sky não é para mim". Eu compreendo. Sinceramente, também não é o meu tipo de descida favorito. Com cordas, rapel, quatro apoios e uma dose grande de sorte a afastar-nos de uma queda feia. Mas faz parte! O objectivo é chegar lá abaixo o mais depressa possível, então, siga, mergulha!

Fotografia da Lia Rodrigues. Vejam onde está o viaduto, íamos passar por baixo dele!
Comecei a prova longe daquele sentimento de Fast & Furious que descrevi na Lousã. Era a quinta prova em cinco semanas seguidas. Durante a semana que a antecedeu senti-me sempre muito dorido e as sensações durante as duas primeiras horas de prova nunca foram boas. Até ao inicio da primeira grande subida, que não era um KV puro porque lá em cima tinha uma descida de 100m para ir buscar o resto do desnível, passou muita gente por mim e até já estava conformado para fazer uma prova tranquila, sem a corda no pescoço. 

Mas uma boa subida conquista-me sempre...

Primeiro uma rampa muito inclinada e depois maioritariamente em estradões. A subida foi-me embalando, deixando-me entrar, pondo-me à vontade. Fui-me sentindo cada vez melhor, com as pernas a perderem peso com a altitude e a cabeça a desanuviar, ao contrário das nuvens, que seguiam um caminho contrário, fechando cada vez mais à medida que passávamos da cota 1000 para cima. A temperatura baixara brutalmente, o vento era fortíssimo. As minhas mãos estavam geladas quando virei o pico e ataquei a descida. Demasiado tarde para calçar luvas ou meter camadas, o melhor é correr para aquecer!

A bastonar até ao topo. Foto da Susana Luzir
A descida desta vez também estava a ser amiga. Sempre fácil, boa de correr, o que me metia cada vez mais dentro da prova. Mas dos quase 1000 metros de elevação que se perderam, os 100 finais tinham uma surpresa reservada. Já perto da base do KV embrenhámo-nos no fundo de um vale e cruzámos algumas vezes um rio no qual corria, furioso, o caudal resultante de uma semana de chuva. Muito dificil e até perigoso, a corrente era fortíssima! Mais uma vez, faz parte.. Neste tipo de prova, neste tipo de serra, vamos ter que passar em sítios assim!

Saí revigorado do rio. As pernas agradeceram a água gelada e, agora sim, estava completamente dentro. Game face on e siga trepar o quilómetro vertical!

Cerca de 5km, foi a distancia que nos fez ganhar os mais de 1000m verticais e nos deixou na Sra. da Serra, ponto mais alto do Marão. Estes são os números, mas a subida foi muito mais que números. Foi sky running condensado. Um inicio dificil e quente no fundo do vale, trilhos fáceis dentro de bosques, corta fogos inclinadissimos, o tempo a fechar cada vez mais, a temperatura a baixar abruptamente e o vento a aumentar na mesma razão, o terreno a ficar cada vez mais técnico, mais rochas, água por todo o lado, nevoeiro cerrado, frio, chuva, vento, muito vento, como raramente o senti e que empurrava as nuvens à nossa frente, num cenário caótico!! Não se viam mais que 5 metros à frente, apenas o suficiente para vislumbrar o cor de laranja vivo das marcações impecáveis!! Vesti o impermeável, enfiei o gorro na cabeça para proteger as orelhas do vento cortante! Senti-me vivo ali em cima! Mais que isso, senti-me aumentado! Que saudades que eu tinha de um momento daqueles, agreste, rude, dificil, quase de sobrevivência!! 

Susana Luzir. Não encontrei nenhuma foto mesmo lá em cima! Também não era fácil
Um vulto chamou-me a atenção para um abastecimento que estava instalado num refugio de montanha, lá em cima, nos 1400m. Entrei lá dentro e o mundo parou. Quente, abrigado, com comida e bebida quente. Balbuciei qualquer coisa e levei dois bocados de banana à boca. Não queria estar ali, a vida estava lá fora! Bora descer!!!

Estávamos com 20km e 2750+ de subida. Que loucura! As pernas acusaram bem o desnível conquistado enquanto tentava atirar o martelo na descida, mas já não estava a dar. Com o dia plenamente ganho por aqueles minutos lá em cima, deitei a toalha ao chão e limitei-me a curtir a grande descida final. Antes de chegarmos ainda passámos por uma levada que entre diretamente para o meu top de melhores trilhos onde já passei! Que maravilha! Ou, como disse o Bastos, que Marãovilha!

Mais uma foto brutal da Susana Luzir, na tal levada.
Cheguei à meta com 5h09 num respeitável 12º lugar, o que acabou por nem ser nada mau. Mas, mais que isso, cheguei à meta mais uma vez de alma cheia. É ali que eu gosto de estar, naquele fio da navalha lá em cima, adrenalina a bombar e sentidos apurados. Como diz o slogan da prova, no Marão Sky Up não se corre, vive-se!