As minhas corridas na estrada

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Madeira Island Ultra Trail 2023 (85km) - Apagou-se a luz.

Desde 2015, altura em que fiz pela primeira vez a prova rainha do MIUT, os 115km, que olhava para a segunda distância, os 85, como uma espécie de refúgio seguro. Sem os demolidores primeiros 35km, a travessia da ilha parecia, na teoria, um passeio. Foi com essa sobranceria que o ano passado decidi inscrever-me, depois de uma experiencia muito boa nos 60km em 2022. Inevitavelmente a montanha pôs-me no meu lugar. Mas foi mais do que isso. Depois de anos a descrever aqui jornadas de auto-superação, esta é uma crónica muito especial. Foi neste dia que percebi que alguma coisa mudou em mim. 

Fotografia muito boa da Bernardete Morita

Cheguei tranquilo a São Vicente, ainda de noite. Pela primeira vez em 8 viagens de autocarro para a partida, adormeci a dormi praticamente o caminho todo desde Machico. Com a idade tenho desenvolvido o dom de conseguir dormir sentado, capacidade da qual me orgulho muito! Tal como em 2021, partia com zero confiança. Mais uma vez a preparação tinha sido manchada por uma lesãozeca que aparece sempre que meto alguma intensidade nos treinos, algo que me anda a enervar muito. Mas se em 2021 estava apavorado porque a juntar à fraca preparação tinha os 115km pela frente, este ano eram "apenas" os 85km. Os simpáticos e acessíveis 85km. Pois claro...

A partida e primeiros quilómetros foram tudo o que eu precisava. Ligeiramente a subir, com 3 ou 4km sempre em alcatrão feitos a trote, permitiram ao corpo e mente entrarem lentamente em prova. As boas sensações chegaram com os primeiros raios de sol, que iluminavam as encostas das montanhas cobertas pela floresta Laurissilva. Pensei nos desgraçados dos 115km enquanto olhava lá para cima. Reconheci a montanha de Estanquinhos e lembrei-me, com um arrepio, das 6 vezes que fiz aquela descida precisamente por volta daquela hora, já com um empeno monumental nas costas e a fazer contas à vida. 

A junção dos percursos chegou pelos 10km, a meio da subida para o hotel da Encumeada. Seguia soltinho a bastonar pelos degraus, enquanto cruzávamos com os primeiros cadáveres dos 115km. Tão bem que me lembro daquelas ultrapassagens enquanto estava do outro lado... Desejei força e boa sorte a todos os que se cruzaram comigo, percebendo perfeitamente o que estavam a passar. Já eu, com uma dúzia de km fáceis nas pernas, continuava bem disposto e espantado com a facilidade com que virei a montanha e corria na levada antes da pequena descida que nos deixava no Hotel. Entrei no abastecimento e fui direto à casa de banho, para me livrar do, até então, único desconforto do dia. Renovei a água de um dos flasks e não consegui comer grande coisa, o Tailwind que levava no segundo e que vinha a beber deixou-me meio mal disposto. Nada de grave, concluí, enquanto arranquei para continuar a descer ainda com uma rodela de batata doce na mão.

Aqui apanhei a grande novidade do percurso deste ano. O famoso tubo verde deixou de existir. Este ano descemos mais um bocado, mesmo até ao fundo do vale, e em vez de subirmos à bruta pelo tubo fomos subindo a encosta num trilho muito bom até encontrarmos o antigo percurso 2 ou 3km mais à frente. Daqui resultou mais desnível mas cumprido numa subida muito melhor e mais interessante. Nunca fui fã do tubo. A alteração acabou foi por cortar aqueles quilómetros mais corríveis a seguir ao tubo e uniram a subida inicial à subida da Encumeada. Por mim, tudo ok! Gostei bem mais assim. 

Fotografia do Vasco Carvalho

Nunca me tinha sentido tão bem a virar a montanha para o Curral. Cumpri a subida de forma muito tranquila, sem exagerar nada, e forcei metade de uma goma da Beta Fuel antes de começar a grande descida para o Curral. Apesar das pernas estarem lá, já tenho quilómetros suficientes para saber que se não tivesse juízo na descida a marretada mais tarde era inevitável, por isso desci com toda a precaução. Apesar disso, adorei descer esta encosta. A diferença que faz ter pernas ali... é incrível! O que noutros anos foi um pesadelo que parecia infinito, desta vez foi uma descida fluida e muito divertida. No entanto, por mais precauções que se tenha, são 5km e 800m de desnível negativo, e bem que os senti quando tive que subir até ao abastecimento já dentro do Curral das Freiras. Naqueles 100m de desnível positivo antes do pavilhão, feitos a subir por uma escadaria, notei as primeiras luzes amarelas do motor a acender. 

Base de vida. Detesto este abastecimento. Detesto a confusão, o calor, os cheiros... Tento mecanizar ao máximo as rotinas para me despachar. Vou buscar o saco e começo a tratar dos afazeres à pressa. Meti os frontais na mochila, alguma roupa para o frio e mais gomas. Encho os flasks. Um com mais uma saqueta de Tailwind, o segundo com goldrink e um terceiro com água. Estava muito calor e sabia bem o que me esperava na subida até ao Pico Ruivo, aquele terceiro flask ia ser usado de certeza. Fui comer, mas a má disposição que tinha na Encumeada tinha-se acentuado e só consegui meter meia banana e um bocadinho de marmelada. Não há-de ser nada. Fugi do abastecimento e meti-me ao caminho para a maior subida destes 85km.

Estava muito calor, talvez o ano mais quente que apanhei. A subida ao Ruivo, um monstro com 10km e 1300D+, é horrível nos primeiros km. No meio de eucalitptos, com terra seca, sol nas costas e sem vento. Subi esta primeira fase sem ir ao limite, consciente que apesar de ainda ter pernas não podia forçar. O calor fez-me beber sofregamente os flasks, primeiro o do tailwind e depois o do goldrink. Ao ponto de já não me saber nada bem aquela mistela com sabor e desejar ter metido mais do que a terceira garrafa só com água. Bebia 1 gole e passava 5 minutos a arrotar. Normalmente uma subida constante como esta vai-se tornando mais fácil à medida que vamos subindo, como se o corpo encontrasse o ritmo, mas desta vez estava a ser diferente. Pelos 1600m, na Boca das Torrinhas, ponto em que saímos dos eucaliptos e começamos a subir e descer escadas lá em cima, entramos nas nuvens e a temperatura baixa radicalmente, ficando muito mais confortável, mas as escadas a subir estavam a ser um sacrifício e já implorava pelo refugio quando finalmente virámos no Pico Ruivo.

Chegada ao Pico Ruivo. Única foto que tenho da prova, pelo Nelson Graça

Como previsto, os 3 flasks estão quase vazios, só me sobrou metade do que tinha goldrink. Completei esse com água, ficando ainda a saber a goldrink, e enchi o segundo só com água. Entrei no abastecimento e estive aí um minuto a olhar antes de me decidir por um quarto de banana, a única coisa que comi. Estava muito mal disposto e só de olhar ficava agoniado. Ok, isto vai ser um problema...

Travessia entre os picos. Os últimos 5km verdadeiramente difíceis do percurso. Aquelas escadas antes do Ruivo serviram como um preview do que se apanha a seguir, mas em muito pior. E se serviu de preview a coisa não estava com bom ar. Primeiro km a descer, no meio do fresco das nuvens, fez-se bem, mas assim que começo as primeiras subidas percebi que estava muito perto de estar vazio. Pronto, nada a fazer. Cerrei os dentes e forcei. Tantas e tantas vezes que já estive naquela situação ou pior, sabia que era inevitável. Era lidar e tentar sair pelo outro lado da melhor maneira possível. 

Quase todo o percurso foi feito no meio das nuvens, tornando a temperatura muito agradável. Foi a minha oitava travessia entre os picos, tive pena dos estreantes que não puderam usufruir verdadeiramente da vista brutal naquele sitio, mas a mim soube-me pela vida. Só saímos do meio delas na parte final da subida para o Arieiro, mesmo no sitio certo. Pudemos apreciar o manto branco e os picos angulares que o rompiam. Um espanto! 

Fotografia muito boa da Bernardete Morita a captar precisamente aquele momento que falei

Se os degraus finais a subir já foram um sacrifício o que dizer dos degraus a descer a seguir ao Pico. Estes são dos km que menos gosto de todo o percurso. Uma descida desconfortável, com degraus, muita pedra e uma pequena subida deixam-nos finalmente no abastecimento do Chão da Lagoa. Entrei na tenda e sentei-me na primeira cadeira que encontrei. Estava já completamente amassado, com um restinho de pernas a ameaçar seriamente esgotar. Luzes laranja no tablier piscavam incessantemente e mesmo assim não consegui levantar-me para comer. Lá tentei comer uma rodela de batata doce, dei uma dentada e empapou tanto que só consegui empurrar com água. Nem tentei comer mais nada. Voltei a encher com água e fiz-me ao caminho desanimado. 

Até à Portela seriam 11km sempre a descer, quase sempre quilómetros fáceis. Havendo pernas são 11km para se fazerem muito bem. Mas a minha esperança de sair do túnel onde entrei na subida ao Ruivo desvaneceu-se à medida que ia descendo. Os metros foram-se tornando cada vez mais custosos de cumprir, movimentos perros, dores e mais dores nas pernas, na lombar, nos ombros. Cada vez mais mal disposto.... 

Merda. Merda pra isto. Fiz tudo bem até aqui. Não abusei nas subidas, não exagerei nas descidas. Fiz tudo bem e mesmo assim estava outra vez no poço do costume. Nos 85km, aquele refugio seguro e agradável. Mais uma vez, como em todas as grandes ultras que fiz até hoje, e já foram 19 acima dos 100km, sentia-me completamente quebrado. Entrei frustrado no abastecimento da Portela. Não, era mais que frustrado, estava mesmo irritado. Quando em 2021 decidi que não voltava a fazer os 115km era precisamente para evitar chegar àquele ponto, agora ali estava eu. Claro que não era nada de novo, já lá estive dezenas de vezes, mas estava irritado com aquilo. Mesmo asem perceber ainda porquê, estava mesmo enervado!

Entrei no abastecimento e sentei-me outra vez na primeira cadeira que encontrei. Calor, abafado e muita confusão lá dentro. Nem consegui pensar em comer, quanto mais tentar comer. Saí irritado para continuar a descer, 7km separavam-me de Porto da Cruz, local do ultimo abastecimento.

Esta alteração depois da Portela foi introduzida apenas o ano passado. Se a descida para Porto da Cruz me tinha parecido má o ano passado, este ano fiquei mesmo com a certeza. Gostava muito mais do percurso antigo! Apesar de provavelmente ser mais duro, não gosto mesmo daquela alteração. A descida é horrível, quase sempre em escadas muito desconfortáveis, depois numas levadas manhosas onde parece que andamos nos quintais das pessoas e finalmente 2km em alcatrão. Ali, no alcatrão, apanhamos uma pequena subida. Tive que me sentar na berma da estrada! Que frustração...

Entro no abastecimento e... adivinhem. Sim, sentei-me na primeira cadeira à esquerda da porta! Baixei a cabeça entre os joelhos. O corpo todo doía-me, dos dedos dos pés à ponta dos cabelos. Estava super mal disposto, não conseguia pensar sequer em comer. Saí da cadeira e sentei-me no chão encostado à parede, cabeça entre os joelhos. A seguir deitei-me de costas. Que nervos! Só queria desaparecer dali, já chegava! Perguntaram-me 3 vezes se precisava de ajuda. Não, não precisava. Eu sabia bem onde estava. Estava na merda! Como em tantas ocasiões no passado! Mas se dessas vezes mantive a calma e a certeza que ia sair bem do outro lado, desta vez não tinha a mínima vontade de tentar. Algo tinha mudado em mim, simplesmente não queria estar ali e nem sequer a meta servia como luz ao fundo do túnel. Os 15km que faltavam até chegar a Machico soavam-me a uma missão não impossível, porque sabia que de costas ou de barriga conseguia lá chegar, mas algo que não me apetecia mesmo nada, nada, NADA fazer! Puffff. Pronto, chega disto. Levantei-me, não comi, não bebi, não enchi flasks e pus-me a caminho. 

Vereda do Larano. Tirado do site da prova

Antes de entrar no Larano ainda tínhamos uma subida muito chata em escadas, a sair da praia. 400 metros D+ feitos com sacrifício, a sentar-me nos degraus de vez em quando, a ser ultrapassado por muita gente. Depois o Larano. Ainda de dia. Quase sempre a correr, com todas as fibras do meu corpo a pedir para parar e uma nuvem negra por cima da cabeça. Boca do Risco, ultima descida antes de entrar no massacre das Levadas de Machico. Descer já era pra esquecer, as dores eram tantas que mesmo a andar custava. Sentia-me completamente vazio, não conseguia comer nada há muitas horas. Baaaaaah! Levadas. Mais uma vez, a trote. E nem estava a andar mal, mas foi outro sacrifício, principalmente mental! Liguei o frontal a meio das levadas, quando comecei a ver as luzes de Machico, com o piloto automático ligado há muito tempo, lá fui correndo levadas abaixo, até à descida da Santa Casa e finalmente a praia de Machico. Estava feito!

Cortei a meta 14h40 depois de partir. Para mim foi uma boa prestação! Não estava confiante nem bem preparado, estava à espera de fazer pior, mas até correu bem. Cheguei a tempo de estar com os meus amigos, tomar um banho, comer uma pizza enquanto bebia a coca cola mais fresca de Machico e conversar com eles. 

Com os companheiros deste ano. Nunca faltam almeirinenses no MIUT! Este ano nem tenho é uma fotografia da meta.

Parecia tudo perfeito e só mais uma empreitada daquelas, mas sentia-me triste, vazio e irritado. Passei pelas tormentas, é certo, mas a recompensa ao fundo do túnel não chegou como chegava sempre noutras ocasiões. Percebi que subestimei muito a prova dos 85km. É claro que não era só por não ter aqueles primeiros 35km que a coisa se tornava fácil. Não sou nenhum pré-destinado, as coisas comigo saem sempre com sacrifício, mesmo que não cometa nenhum erro, e 85km com quase 5000D+ nunca podem ser feitos de ânimo leve. Mas o que me deixou triste não foi isso. O que me deixou triste e a precisar de arrumar as ideias, daí ter demorado tanto tempo a escrever esta crónica, foi ter percebido que aquela espirito de sacrifício, de sofrimento, aquela luz ao fundo do túnel que me guiou por tantas metas, se apagou. Não foi agora, foi há 2 anos, quando corri a ultima vez os 115km, decidi que não queria passar por isso. Desde então foi a primeira vez que voltei àquele lugar escuro e simplesmente não me apetece repetir. O contraste com os 60km do ano passado ou outras provas que tenho feito até essa distância não podia ser maior, é aí que quero estar. Talvez um dia volte às grandes epopeias, mas agora preciso de uma pausa. Correr, particularmente em montanha, continua a ser das coisas que mais gosto na vida. É nisso que me vou focar. 




domingo, 8 de janeiro de 2023

Vouga Ultra Trail - Um dia de inverno no Vale do Vouga

Depois de na noite anterior ter visto a lua num céu limpo, cheguei a pensar que o IPMA se tinha precipitado ao decretar o alerta laranja, mas as dúvidas dissiparam-se na manhã seguinte. Pela janela da nossa confortável e quentinha casa em Paçô vi as árvores a balançarem violentamente, fustigadas pela chuva e o vento, num daqueles dias de inverno em que tudo parece cinzento. Franzi o nariz e vesti o impermeável por cima da mochila já toda arrumada, na esperança de, a certo ponto na prova, o poder tirar. Pensava eu que o tempo mais severo seria até ao meio dia e que a partir daí melhorava.

Passagem na Ponte do Poço de Santiago, fotografia do grande Samuel Fritz. Aliás, todas as fotos deste post são dele, fica já apresentado!

Na partida a perspectiva nem era má. Sim, estava muito vento, mas a chuva era miudinha. Durante a noite ouvi-a a cair com força, talvez o pior já tivesse passado! Bem, não interessa, às 8:30 deu-se a partida para os 210 participantes na prova aberta do Vouga Ultra Trail, uma hora depois de terem partido cerca de 300 atletas no campeonato nacional de ultra trail, que percorreria exatamente o mesmo percurso. Este é um facto importante na historia das próximas horas, já vão perceber porquê...

Não passou muito tempo de corrida para o Vouga Trail se apresentar. Depois de um primeiro km a subir ainda dentro de Sever, entrámos nos primeiros trilhos. Terra escura, folhas caídas, raízes e muita água. Não era só água da chuva, toda a serra parecia que transbordava água, como se estivesse viva!  O branco da água agitada que corria nos ribeiros contrastava com o verde das árvores e pedras cobertas de musgo e o castanho escuro da terra dos trilhos, coberta de matéria orgânica. De todo o lado brotavam cascatas quase que improvisadas, como se os montes já não soubessem o que fazer a tanta água! Corríamos em trilhos técnicos, num constante sobe e desce, ora dum lado ora do outro de algum ribeiro, muitas vezes dentro deles! Ora, terra macia + água com fartura + 300 pessoas a passar por cima dos trilhos uma hora antes só pode dar um resultado: lama com fartura e trilhos completamente empapados. 


Nada de novo ou extraordinário, todos nós que corremos em trilhos já fizemos uma ou outra prova nestas condições. E durante as primeiras horas nem me pareceu assim tão mau! A progressão era naturalmente mais lenta e custosa, estar constantemente a escorregar implica que estejamos sempre a esforçar-nos para repor o equilíbrio. As descidas eram muito difíceis, não só tinham que ser feitas devagar (pelo menos por mim) como dispendíamos muita energia para as fazer. Muitas delas foram feitas de rabo no chão! Mas os trilhos na primeira metade da prova eram tão bons que todo aquele ambiente acabava por nos absorver.

Passagem pela espetacular Cascata da Cabreia.

A primeira grande subida levou-nos aos 850m, ponto mais alto da prova. O perfil desta prova engana. Saltam à vista duas grandes subidas, uma de cada lado do vale, cada uma a elevar-nos acima dos 800m. O que não se vê logo é o constante parte pernas, com pequenas subidas e descidas, que compõe praticamente todo o percurso. Raramente estamos só a subir ou só a descer durante muito tempo. 

Conseguem ver os dentinhos?

A passagem pela barragem de Ribeiradio marcou sensivelmente o meio do percurso, em todos os sentidos. Os próximos quilómetros seriam agora corridos na margem esquerda do Vouga, subiríamos à serra do Ladário, antes de voltar a cruzar o Rio para a ponta final da prova. E foi mesmo neste virar de margem que tudo mudou.

Era meio dia. A tal hora a partir da qual eu achava que o tempo ia mudar. À minha espera no terceiro abastecimento, Paçô aos 29km, estava a Sara com os miúdos o Pedro e a família, que foram passar o fim de semana conosco. Tinha previsto passar lá ao meio dia, já ia pelo menos com meia hora de atraso. Senti-me mal por os fazer esperar, mas a progressão estava bastante mais lenta do que eu achava que conseguia. 

São estas figurinhas que ando a fazer.

Chovia torrencialmente há pelo menos meia hora quando lá cheguei. Estranhei, era àquela hora que devia começar a abrir. Comi umas bananas no abastecimento, muito pobre, por sinal. Os 300 do campeonato nacional tinham debelado completamente todos os abastecimentos, situação a rever no futuro. Enfim, combinei com a Sara só nos vermos na meta e parti para enfrentar a segunda grande subida do dia. 

Agora sim, subíamos a sério. Uma boa subida. Já a chuva, estranhamente não só não abrandou depois do abastecimento como era agora cada vez mais pesada! À medida que nos aproximávamos dos 800m esta era incessante, o vento cada vez mais forte e mais frio. Não conseguia fechar completamente o impermeável porque tinha as mãos geladas, por isso sentia-me a gelar. Assim que chegamos perto do cume e as árvores desapareceram, foi como se tivéssemos entrado noutro mundo! O vento era monstruoso, a chuva picava como agulhas na cara e na cabeça já sem capuz, sentia-me cada vez mais desconfortável e com dificuldade em produzir calor. Comecei a ficar preocupado! Pensei parar e tirar da mala um buff grosso que levava comigo e umas luvas mais grossas, mas isso implicava tirar o impermeável e passar muito tempo parado, péssima ideia. Decidi forçar o ritmo na descida, para produzir mais calor, mas a lama e água era tanta que dificultava muito a progressão. 

O abastecimento apareceu logo após o cume, em Lameiro Longo. Numa casa muito pequena e abafada. Consegui, aqui sim, comer uma canja quentinha. Pedi a uma pessoa para me ajudar a apertar o impermeável, o que me deu um grande alento, e parti logo de seguida, para não deixar o corpo habituar-se ao calor. Lá em cima vi pelo menos 10 pessoas embrulhadas em mantas térmicas ou a entrar dentro de carros a desistir. Estava realmente perigoso, como há algum tempo não sentia. 

Mais confortável pelo impermeável fechado e com a barriga satisfeita, enfrentei o resto da descida até cruzar novamente o Vouga com outro alento. A chuva, essa, é que não deu tréguas. Desde o meio dia que caía sem parar um segundo e sempre a intensificar, tornando impraticáveis todos os caminhos, desde os trilhos aos estradões, que às vezes pareciam autênticos rios, e às vezes até perigosos, como algumas levadas que percorremos, com pouco mais de 30cm de trilho enlameado, uma levada do lado direito e um precipício do lado esquerdo. Por isso, foi com alguma satisfação que percorri 500 metros da Ecopista do Vouga, um caminho de alcatrão, direitinho e sem lama!

Um bocadinho de alcatrão nunca fez mal a ninguém!

Antes da chegada ao Parque Urbano de Sever do Vouga, onde estava a meta, ainda tivemos que mamar com um estradão a subir com quase 3km. Sempre debaixo de chuva torrencial, sempre com os pés de molho ou dentro de lama até ao tornozelo! Nesta altura já ia bastante saturado daquilo tudo e só queria chegar ao fim, o que não tardaria muito. 


Até os estradões pareciam rios

Tinha previsto chegar à meta a rondar as 7h30. Demorei mais uma hora que isso a completar os 56km com 3100+. Confesso que fiquei um pouco desiludido com a minha prestação, até porque não tive quebras nenhumas ao longo do percurso, simplesmente não estou em forma para mais. No entanto, esta é daquelas provas que deixam um certo orgulho e sensação de vitória por apenas e só ter chegado ao fim. Para terem uma ideia, dos 200 que começaram a prova aberta, apenas 120 chegaram ao fim. E nada melhor para celebrar uma vitória que comer uma vitela n'O Cortiço, em Sever do Vouga, acompanhado por um tinto, com a família e amigos! Bate lá isto, André Rodrigues!

terça-feira, 24 de maio de 2022

Estrela Grande Trail (49km) - Os Amigos do Armando

Como em todas as provas do Armando, os minutos antes do inicio deste Estrela Grande Trail são diferentes. Olho à volta, somos cento e poucos na distância maior (49km), vejo muita gente conhecida, o ambiente é especial. Não há muitas pessoas no trail nacional tão consensuais como o Armando Teixeira. Todos lhe conhecem minimamente o currículo, se não, basta dar uma saltada ao perfil do ITRA. Com registos desde 2009, pódios e primeiros lugares em provas como o MIUT, Transgrancanária, ou Ronda dels Cims, é sem dúvida alguma um dos melhores de sempre a praticar o nosso desporto em Portugal. Mas não é o currículo desportivo que lhe confere aquela aura que todos reconhecem e que torna esta prova especial. É que o Armando é mesmo um gajo porreiro! Gosta de trail e da montanha, acima de tudo. É bem disposto, gosta de ajudar e nunca o vi a recusar dois dedos de conversa, seja com quem for! Naturalmente, à volta de uma personalidade forte e aglutinadora, gravitam pessoas que se identificam com ela. No fundo, mais que atletas inscritos, somos todos amigos do Armando! E às 8 em ponto, ao som de um badalo, lá partimos rumo a uma viagem de ida e volta ao ponto mais alto de Portugal Continental!

Fotografia do Armando pelo Francisco Soares

O início da prova não esconde ao que vamos. Assim que cruzamos o pórtico em forma de estrela começamos a grande subida do dia. Primeiro ainda dentro de Manteigas, por entre escadas e ruelas, até entrar na estrada florestal que serpenteia no meio de um bosque quase Alpino rumo às Penhas Douradas. Já a fiz algumas vezes e gosto muito desta subida. É uma maneira excelente de começar uma prova! São cerca de 5km com uma inclinação muito constante, a rondar os 14%, cheia de curvas e contra curvas. Não muito bruta, ideal para acordar as pernas que, com um bocadinho de esforço, entram em modo cruzeiro permitindo o trote até lá acima. 

Fotografia do grande Paulo Nunes. Esta prova teve uma caracteristica, eram tantos fotografos e câmaras de filmar que uma pessoas às vezes queria ir devagar mas tinha que correr por causa deles! 

Tal como tem acontecido nos últimos tempos, sinto alguma confiança e tenho facilidade em entrar na prova. Chego lá acima na 7ª ou 8ª posição, naturalmente fora de pé, por isso não estranho nem me chateio quando meia dúzia de companheiros me vão apanhando enquanto cruzamos os trilhos rumo à barragem do Vale do Rossim. A primeira vez que aqui corri, no EGT de 2015 (na altura com 90km), lembro-me de achar que a organização tinha pecado por não limpar melhor os trilhos. Corremos em pequenos carreiros, quando existem, com muito mato rasteiro virgem. Os 7 anos de distância e muitos km de montanha depois mudaram-me a opinião quanto a isso. Percebo agora que a essência é mesmo essa, de modificar o menos possível o ambiente. É apontar à fita seguinte, descobrir as melhores linhas e estar sempre focado no que nos rodeia. Se isso implica arranhar mais um bocado as pernas, então que seja!

Uma pequena alteração do percurso que conhecia leva-nos até à margem da barragem, ao longo da qual percorremos o km que nos separa do paredão e do Parque de Campismo do Vale. Sentia-me bem e solto nos quase 10km de trilhos percorridos no Vale do Rossim, que nos levariam até à Garganta da Loriga. Adoro estes trilhos. Maioritariamente a subir, com pequenas e entusiasmantes descidas, corremos com alguma facilidade a saltitar entre maciços gigantes de granito. A meio, a passagem obrigatória na Fenda da Talisca, no maciço da Nave Mestra, embala-nos para mais uns quilómetros de planalto verdejante, cortado por pequenos ribeiros de água gelada que se escondiam debaixo de tufos. Maravilha!

Grande foto do Francisco Soares, dos tais ribeiros escondidos.

Na garganta, km 22, paro pela primeira vez num abastecimento, o segundo da prova. Completíssimo. Mas eu nem preciso de muito. Para mim qualquer abastecimento que tenha batata doce está aprovado! Como umas rodelas, empurro uma fatia de melancia e ala que se faz tarde!

Um km a descer leva-nos mesmo à boca da barragem da Loriga, até que uma cortada à esquerda nos encaminhada para 3km a subir até à Torre, local de mais um abastecimento e que marca o meio da empreitada. Lá em cima o vento é fortíssimo e arrefece bastante. Sinto-me ligeiramente desconfortável, também por causa do ultimo km, onde apanhámos alguns troços de subida mais inclinada. Encho os flasks, como mais uns pedaços de batata doce e faço-me ao caminho. Nesta altura já tínhamos mais de metade do desnível positivo conquistado, seguia-se a compensação. Cerca de 8km a descer até meio do Vale Glaciar. 

Fotografia do Francisco Soares na descida até À barragem da Loriga, antes de virar à esquerda para a Torre.

É precisamente nesta fase da descida que passo o pior bocado na prova. No meu já muito conhecido trilho do major sinto-me enjoado e o corpo entra num estado dormente. Não me consigo concentrar convenientemente, tropeço a toda a hora, dou pontapés em pedras e avanço muito atabalhoadamente. E se há trilho pouco propicio a desconcentrações é este! Nos 2km quase planos da Nave de Sto. António consigo meter um passo razoável de corrida enquanto me preparo para a parte final da descida, já no Vale Glaciar. Mais uma vez, desço de maneira muito pouco fluída e já imploro pelo abastecimento para reanimar. 

Fotografias com fartura! do Francisco Soares.

Esse chega aos 34km. Respiro fundo, meto uns bocados de aletria à boca (neste não havia batata doce!) e hidrato bem. Volto a encher os flasks e avanço para a penúltima subida do dia, uma picada de 300+ que nos faria transpor a parede direita do Vale Glaciar. Aperto as alças dos bastões e começo a trabalhar.

Nada como uma boa subida para nos trazer de volta à terra! O trilho aos zigue-zagues, cheio de pedras e patamares, é perfeito para meter um passinho certo. Mão direita, pé esquerdo, mão esquerda, pé direito. Inspira dois, expira três. A sintonia era perfeita e quase sem dar por cima estava a virar o Vale. Seguiam-se 2 ou 3km de estradão a descer com pouca inclinação, já conhecia esta parte. Felizmente as pernas disseram logo presente e fui correndo a um passo aceitável, apesar de nesta altura já com algum esforço. 

Tirei esta fotografia não este fim de semana mas no verão passado, quando fiz este mesmo trilho sozinho, a treinar. A minha vista preferida dos três cântaros! Vejam o fundo do Vale lá em baixo.

Entrava agora na única parte desconhecida para mim em todo o percurso. A descida ao Poço do Inferno. Já tinha feito a subida algumas vezes em sentido contrário, sabia que era muito inclinada apesar de curta, mas todo o caminho até ao fundo do Poço era nova. 

Saídos dos tais 3km de estradão começamos a descer a pique uma encosta cheia de árvores e coberta com uma camada de 30cm de folhas secas. Sem trilho aparente, só fitas a orientar o caminho. Naturalmente os movimentos de pernas eram mais amplos que o normal para tentar não ficar preso numa raiz ou pau que se escondia debaixo das folhas, o que provocou um acesso imediato e violento de cãibras! Tive mesmo que parar uns segundos, tomar uma cápsula de sal e respirar fundo. Confesso que não achei grande piada a este km, mas também rapidamente o esqueci quando entrámos no verdadeiro trilho do Poço do Inferno.

Primeiro uma maravilha de terra numa encosta muito ingreme. Gradualmente ficou com mais e mais pedra, até se tornar num verdadeiro troço de skyrunning, muito difícil tecnicamente e de progressão lenta. Foi um alívio quando finalmente entrei no troço da subida que já conhecia, apesar dela própria ser bastante difícil. 

A entrada no trilho do Poço do Inferno. Íamos mesmo até ao fim daquele desfiladeiro antes de voltar a subir.

Cinco km a descer separavam-me do final, 4.5 deles feitos no conhecido trilho do Javali. Felizmente as pernas ainda tinham algumas reservas. Meti um último gel e embalei na calçada romana do trilho por ali abaixo. Uma bela descida, pouco técnica, que nos aproximava devagarinho da vila de Manteigas. 

6h58 depois voltei a cruzar o pórtico da Estrela. Fui o 13º a cruzá-lo, o que me deixa orgulhoso, mas também tenho plena consciência que isso, no trail, não quer dizer nada. Na chegada lá estava o Armando para me dar um abraço e dois dedos de conversa, aposto que foi assim do primeiro ao ultimo classificado! Excelente prova com um excelente e equilibrado percurso. Adorei! Já não ia ao EGT desde 2015, quero ver se não passo tanto tempo sem voltar a ir uma reunião de Amigos do Armando!



segunda-feira, 25 de abril de 2022

Madeira Island Ultra Trail - O ano da meia dose (60km)

Seis vezes. Fui lá seis vezes e em cada uma levei cacetada que ferveu! Mesmo assim, na sétima, ainda consegui cometer o mais básico dos erros: subestimei o MIUT! Pronto, tem uma atenuante. Pela primeira vez não ia correr os 115km e ficar-me-ia pela meia dose, a recém estreada prova de 60km. 

Fotografia do Aurélio David

Infelizmente tenho escrito muito pouco por aqui, mas quem priva comigo já percebeu que nos últimos meses tenho feito a transição para uma nova fase na corrida. Desde o Sicó e, principalmente, desde o MIUT 2021 que não me tem apetecido fazer provas de 3 dígitos! O relato do ultimo MIUT pode ter dado algumas pistas e na altura associei à lesão que me chateava, mas a verdade é que não era só isso. Toda a experiência foi terrivelmente angustiante! O nó gigante que tinha na barriga, daquela vez não era pela ansiedade de começar, simplesmente não me apetecia voltar a passar pelo sofrimento que envolve uma prova como o MIUT. Não me apetecia começar, não me apeteceu enquanto corri e nem sequer tirei grande prazer por chegar ao fim. Fiz 19 provas acima dos 100km nos últimos 8 anos, tenho melhorado os métodos de treino, de nutrição, ganhei experiência, passei por muito. Mas sinto que não consigo evoluir. Pior, depois de 6 MIUTs concluídos, sinto que simplesmente não sou feito para aquelas distâncias! Mas, tranquilo. São fases. Talvez daqui a uns tempos me volte a apetecer enfrentar essa besta que são os 3 dígitos, mas neste momento estou noutra. Apetece-me fazer provas "curtas", até aos 50/60km. Andar com a corda na garganta, pensar menos em gestão e mais em dar o máximo, ir a fundo nas descidas, chegar ao limite nas subidas, perceber que, aqui sim, quanto mais treino mais pernas tenho! Enfim, são fases. Agora estou nesta!

Pronto, feita a introdução/justificação, vamos à prova!

Como todos os anos, o fim de semana MIUT é uma festa. A Sara diz que é a minha viagem de finalistas anual! Este ano, entre repetentes e estreantes, éramos 6! Eu, Simão, Alexandre, Vasco e Chico nos 60km e o grande Vasco Lopes nos 115km. A sexta feira, dia antes da prova, foi o oposto completo do ano passado. Passei o dia bem disposto e muito ansioso por começar, bem descansado, confiante no treino e sem lesões a chatear!

O grupo na partida. Menos o Vasco Lopes, que já andava a palmilhar desde a meia noite.

O percurso desta prova é perfeito. Começar com uma grande subida aos Picos, com direito a fazer o ex-libris da ilha, que é a ligação Ruivo-Areeiro, e depois quase sempre a descer até Machico, já pelo percurso habitual do MIUT. Na minha cabeça eram só facilidades. Subir forte no inicio, porque as pernas estão frescas, e depois controlar-me na descida para não ir depressa de mais e ter pernas para correr no fim. Pois claro, controlar-me para não ir muito depressa....

Oito da manhã e deu-se a partida para os cerca de 400 atletas, maioritariamente estrangeiros, como já é normal no MIUT. O tempo era o típico da Madeira, sol, chuva, vento, frio, calor, nevoeiro, céu limpo e nuvens. Tudo no espaço de 15 minutos! 

Saí de Boaventura a andar forte, com o Simão, de forma a nos colocarmos numa boa zona do pelotão. Conseguimos, mas com isso lá tivemos que andar a meia hora da praxe com a corda na garganta! Sobe e desce em levadas e trilhos no meio de hortas e pequenas povoações. com muita vegetação e sensação de correr numa floresta húmida, levaram-nos até ao primeiro abastecimento, no Lombo do Urzal, onde se iniciaria o prato principal desta corrida: a subida ao Pico Ruivo. 

A visão mais comum do MIUT. Foto do Vasco Carvalho

Como não podia deixar de ser, a subida era uma besta. Saídos do abastecimento, entrámos logo num trilho perfeitamente embrenhado na floresta, a fazer lembrar muito a parte inicial da subida a Estanquinhos. Um trilho de curva e contra-curva, de terra escura e pedras cobertas de musgo, muito constante, trabalhosa, a exigir uma constante adaptação da trajetória de maneira a tornar o esforço mais eficiente. 1, 2, 3, 4km, sempre a subir, sempre a trabalhar. 600, 700, 800m de desnível acumulado. Nem queria acreditar que já estávamos tão perto do km vertical! As pernas fresquinhas ajudavam, mas só me lembro de ter sentido uma euforia tão grande a subir uma outra vez na vida: no ataque ao Comapedrosa em Andorra, na Mitic! 

À medida que nos aproximávamos das cotas mais altas a paisagem ia mudando, passámos por verdadeiras gargantas, virámos montanhas só para dar de caras com outras maiores, rasgámos encostas em trilhos que pareciam estar ali desde que a montanha nasceu. Só podia, tudo ali fazia sentido, era perfeito! 

Foto lá em cima, do Vasco Carvalho

Já nos 1400m passámos pela Boca das Torrinhas e embocámos no percurso já conhecido do MIUT. A grande diferença é que desta vez estava a chegar ali com pernas! E, pasmem-se, dá mesmo para correr lá em cima! Perfeito, perfeito! Corria com um sorriso rasgado no rosto, a descer, em plano e a subir, é difícil descrever a alguém o prazer que se sente! A sério, se alguém estiver a ler isto e nunca tiver corrido em trilhos.... vão, vão, não percam tempo!

Fotografia do Luis Alberto Hernando pelo enorme Ian Corless. Vi-o lá neste sítio e fotografou-me, quem me dera encontrar isso! Depois tive vergonha de lhe dizer que sou fã dele.

De repente estava no Pico Ruivo. 16km, 2000m de desnível positivo acumulado. Não me podia deixar levar pela euforia, faltava muita prova. Entrei no abastecimento, enchi os flasks e comi à pressa. Seguia-se o ex-libris da prova, a travessia até ao Pico do Areeiro e, mais uma vez, foi todo um mundo de sensações novas conseguir ter pernas para correr ali. 

Tudo ajudava, até as dezenas de caminheiros que estavam a dividir os trilhos connosco. Imaginem um trilho tão estreito que mal cabe uma pessoa, dum lado uma parede de rocha, do outro uma falésia com centenas de metros. Agora imaginem cruzarem-se com dezenas de caminheiros enquanto correm! Todos eles se colavam à encosta, o único movimento que faziam era para bater palmas e gritar incentivos, criando corredores humanos, tal e qual os metros finais de uma maratona por uma qualquer capital europeia! Que loucura! 

Mais uma do Vasco, onde dá para ver a quantidade de gente no trilho.

Pico do Areeiro, 21km, 2500+. Estava cumprida um terço da distancia e só restavam 700m de subida até ao fim. Faltava a outra parte, o desnível negativo. Nos próximos 22km íamos passar da cota 1800 até à cota 0, na praia de Porto da Cruz. Na minha cabeça era aqui que estava a chave da prova. Controlar a descida para não massacrar de mais as pernas e conseguir correr nos 16km finais, que são planos. Sim, na minha cabeça os 2500+ que teríamos nas pernas neste ponto eram só um pro-forma! Não podia estar mais enganado. É certo que as pernas ainda não estavam na reserva, mas a subida estava lá. Ai se estava...

Senti-a assim que começou a descida até ao Chão da Lagoa e, ao contrário do que tinha imaginado, o problema não era controlar-me para não ir depressa de mais. Era mais perceber onde é que ia buscar força para andar depressa na descida! Nunca andei soltinho, mas como sabia que a prova era "curta", também não me poupei. Portanto, forcei. Andei no limite naqueles primeiros quilómetros mais técnicos até ao Chão da Lagoa, de tal maneira que assim que entrei no abastecimento me saltou um musculo da perna. Tudo bem, foi no sitio certo. Parei, alonguei, comi e voltei a encher os flasks. Quando saí do abastecimento já estava recomposto. 

Única foto minha na prova, pelo Aurélio David. É o que dar escrever isto antes de saírem as fotografias.

Era hora da primeira grande alteração do percurso. Este ano, em vez de descer ao Ribeiro Frio e subir ao Poiso, desceríamos diretamente ao Poiso para depois voltar a entrar novamente no percurso conhecido até à Portela. Fiquei surpreendido quando chegámos ao Poiso em pouco mais de 2km! 

Em todos os anos anteriores, este era o ponto fulcral do MIUT. Dizia sempre que se chegasse ao Poiso com pernas era sinal que a prova tinha corrido bem. Este ano não podia aplicar esse raciocínio, mas a verdade é que cheguei lá mesmo com pernas e com pernas entrei na descida mais fácil do percurso, os 9km que ligam o Poiso à Portela. 

Trilhos limpos, pouco inclinados, estradão e levadas. Perfeito para desenrolar as pernas! Corri sempre, mas em esforço, não muito depressa. A ponta final da descida é feita ao lado de uma levada, nuns degraus de troncos muito agressivos. Depois de alguns km de estradão, os movimentos bruscos de ter que saltitar nos degraus provocaram a segunda crise de câimbras do dia! Mais uma vez: timing perfeito. Foi mesmo à porta do abastecimento, na Portela.

Entrei e, pela primeira vez, sentei-me. Estava mesmo a precisar! Já estava muito massacrado da descida. Comi umas rodelas de batata doce com toping de sal grosso, numa tentativa desesperada de controlar as câimbras. Não fui rápido no abastecimento, mas estava a precisar. Nesta altura já estávamos a dividir os trilhos com a malta dos 42km, que apareceram a todo o gás no Chão da Lagoa, por isso o abastecimento estava cheio e abafado. Espreitei lá para fora só para perceber que a chuva grossa que apanhei nos metros finais antes do abastecimento continuava a cair. Enfim, estava na hora! 

Foto do Vasco a meio da descida para o Porto da Cruz.

Segunda alteração do dia: depois da Portela, em vez de seguir para os trilhos das Funduras e para a Degolada iriamos continuar a grande descida até ao Porto da Cruz. A primeira parte da descida foi muito massacrante, pelo Caminho Real. Um trilho de calçada de basalto, muito inclinado, com degraus muito curtos. Curtos de mais para permitir um passo de corrida fluido, obrigava a um constante saltitar. Não haviam bastões que ajudassem, todo o peso do corpo era descarregado nas pernas. Tum, tum, tum, sempre a martelar músculos e articulações! Numa segunda fase entrámos nuns trilhos junto a levadas, com lama, muito pesados, por causa da chuva que caía. Finalmente desembocámos nas estradas de Porto da Cruz, já quase ao nível do mar, para cumprir um par de km em estrada.

Cota zero, 45km. Faltavam apenas 15km para a meta. Uma subida que não conhecia separava-nos da entrada na já conhecida Vereda do Larano e finalmente as levadas de Machico. Comi bem no abastecimento e fiz-me ao caminho.

O meu grande amigo Vasco, pelo Aurélio David, no fim da subida após Porto da Cruz. Este senhor, que já anda nisto há uma data de anos, sacou só 21 horas nos 115km. Que animal!

Esta seria a ultima parte desconhecida do percurso. Acabou por ser uma subida relativamente fácil, quase toda ela feita em escadas e com 300m de desnível positivo. No entanto, foi a parte onde sofri mais em todo o percurso. Já muito desfeitos da descida, os músculos começaram a gritar assim que alcei a perna para o primeiro degrau! Toda a subida foi feita em grande sofrimento e até tive que me sentar duas vezes para ganhar alento. Fiquei preocupado com os 12km finais, os tais que, com pernas, são perfeitamente corriveis. Primeiro no Larano e depois das Levadas.

Não foi fácil. Não estava soltinhos nem com pernas frescas. Não foi bonito. Foi mesmo de faca nos dentes que meti o trote no inicio da vereda do Larano! 4km de um falso plano (tem 100+), feitos em esforço mas num passo muito certinho. Ah, pela primeira vez fiz o Larano de dia. Que portento! Uma brutalidade de trilho a contornar as encostas, com o mar do lado esquerdo. 

Entrei nas levadas de Machico já com muitas luzes acesas no tabelier, mas agora era mesmo só um esforçozinho. Há alguns km que fazia contas de cabeça para perceber se conseguiria chegar antes das 9 horas, agora já era certo. Não desarmei e corri mesmo até à meta, onde cheguei 8h34 depois de sair de Machico!

O Manelíco à minha espera.

Aqui está ele.

Não foi uma chegada apoteótica, não me emocionei nem nada que se pareça. Mas cheguei feliz e animado. Total e perfeitamente satisfeito, com a sensação que dei tudo o que tinha e que mesmo assim não fui ao fundo do poço. Não precisei, assegurei-me disso ao longo das muitas horas de treino e agora tinha ali a minha recompensa! Ainda não eram 5 da tarde, liguei à Sara, falei com os miúdos e fui tranquilo tomar banho. Juntei-me ao Simão enquanto esperávamos pelo resto da malta de Almeirim e víamos as chegadas. Todos os nossos companheiros chegaram bem e fizeram provas brutais. Jantámos descansados uma bela pizza e duas ou três corais, na praça central de Machico. Tranquilos. Completamente desfeitos e moídos, mas tranquilos e satisfeitos, ainda com a cabeça numa nuvem de endorfinas. 

São fases, suponho... E nesta fase é precisamente isto que eu preciso da corrida. Foi perfeito!



segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Madeira Island Ultra Trail

Parti derrotado.

Não me lembro de alguma vez ter começado uma prova assim. Certamente nenhum MIUT! Depois de praticamente ter deixado de conseguir treinar após os 20km de Almeirim, a 3 semanas da partida, perdi toda e qualquer confiança que tinha para o MIUT. As dores no gémeo, mesmo quando caminhava, eram uma constante nuvem negra que pairava, mas pior que isso era ter perdido a vontade de partir. A angustia aumentou na quinta feira, dia em que fui para a Madeira com o Rodrigo, o Mota e o Simão. No aeroporto o pânico instalou-se de tal forma que, já dentro do avião e a minutos de descolar, enviei um mail à pressa à organização a pedir para trocar a distância para os 60km! A resposta chegou às 4 da manhã: não, amigo. Vais ter que te aguentar à bronca!

Fotografia do Nuno, que vai assumir um papel preponderante nesta história. Já vos conto.

A noite estava perfeita. Céu limpo, temperatura fresca mas não demasiado e sem vento. Pareceu de encomenda, já que choveu torrencialmente na quinta feira e depois voltou a chover no domingo de manhã. O ambiente em Porto Moniz estava uma sombra de anos anteriores. Fruto dos adiamentos por causa da COVID eramos apenas 315, um terço de 2019. Não me queixo, sou um bocado bicho do mato e gosto muito mais das provas com menos gente. Bebi um café no sitio habitual, para dar sorte, e sentei-me na escadaria habitual, para dar sorte. Meti a cabeça entre as pernas e fechei os olhos, a tentar abstrair-me ao máximo de tudo o resto. Faltava uma hora. 

Minutos antes de apanhar o autocarro para Porto Moniz. A moral estava em altas, como se percebe.

Com o Simão, o meu companheiro de treinos na caminhada até aqui. E que brutalidade de prova ele fez! 21h45

Olhos fechados, respirar fundo e contagem decrescente. Estava na altura. Assim que tocasse a meia noite a minha vida nas próximas 20 e muitas horas teria apenas um objetivo: conquistar o próximo metro. Conheço esse sítio, já quase vivo lá. 3, 2, 1.... Bip. Cronómetro iniciado. 

Foto da organização

Primeiros passos de corrida e o gémeo deu logo sinal. Já estava à espera, nada de pânico. Só precisava de perceber se a dor ia aumentando ou se seria suportável, como nas ultimas semanas. 500 metros de corrida e engatámos logo na primeira subida. Armar bastões e siga pra cima! 

Inicio da primeira subida. Fotografia do Miguel Cadalso.

Continuava com nenhuma vontade de ali estar, desconcentrado e pessimista. Não que pensasse em desistir, isso nunca me passou pela cabeça em qualquer ponto da prova, mas estava quase a fazer um frete. É um lugar comum dizer que numa grande ultra metade é físico e a outra metade é cabeça, mas é 100% verdade e o facto é que a minha cabeça não estava para ali virada. Subia devagar, mais devagar do que devia e podia, sempre perfeitamente na zona de conforto. Tinha decidido que, por causa do gémeo, não ligaria ao tempo final, só queria chegar ao fim. Claro que isso do gémeo era treta. Quer dizer, doía-me e doeu-me do primeiro ao ultimo passo, mas era suportável, não era isso que me prendia. Foi a desculpa que dei a mim mesmo naquelas horas iniciais para não entrar em prova!

Mas o MIUT não se coaduna com desculpas e a descida para a Ribeira da Janela era já ao virar do monte. Primeira descida, num trilho simpático que serpenteava pela encosta, mesmo até junto ao mar onde apanhámos um banho não de água mas de pessoas, aplausos e gritos. É uma passagem mítica todos os anos e, para mim, marca o verdadeiro inicio da prova: a subida para o Fanal.

Fotografia do Mario Pereira, retirada do Facebook da prova. Em primeiro plano o Pedro Caprichoso e o Ricardo Silva, ainda partilhei uns km com o grupo deles, lá atrás venho eu e lá mais atrás reparem na serpente de luzes a descer a encosta.

Nesta fotografia do João Faria, também retirada do Facebook da prova, dá para ver a serpente a partir da subida ao Fanal. Uma imagem mítica de todos os MIUT

Na subida para o Fanal, o primeiro km vertical que apanharíamos, com 1100+ em 11km, continuei com a mesma estratégia. Devagar, sempre abaixo da zona de conforto, sem forçar nada. Primeiro por entre as casas e finalmente no meio da floresta, entre degraus de troncos de madeira e piso enlameado, lá chegámos ao primeiro abastecimento, aos 15km. 

A estrutura montada para este MIUT era a mesma para aqueles com 1000 pessoas. Quer dizer que os abastecimentos eram enormes e havia pouca gente. Impecável. Comi bem e bebi dois copos grandes de café. Sentia-me bem e o gémeo estava controlado, mas ataquei a descida seguinte com cuidados redobrados. Fui muito lento nas partes mais técnicas e nunca arrisquei nada. Queria chegar a Estanquinhos o mais são possível, mas isso estava a custar-me tempo. Muito tempo. 

A subida seguinte, para Estanquinhos, é um dos momentos chave do MIUT. É uma bomba. Impossível descrever por palavras aquele portento. Os números da parte inicial, 1100+ em 4km, explicam alguma coisa, mas só passando por lá se consegue perceber. É a subida perfeita. Sempre aos ésses, num trilho de terra escura cravejado com pedras que permitem ir sempre escolhendo a melhor maneira de subir. O ritmo era certinho, fluido, sempre a trabalhar por entre pedras e degraus. Já depois dos 1000 metros uma pequena pequena folga na inclinação e aproveito para comer uns figos secos que levava comigo, mas logo a seguir recomeça o trabalho para a ponta final, agora num trilho mais a direito que nos levaria até ao planalto do Paul da Serra, que estava incrivelmente bonito. A lua cheia brilhava no céu limpo e mostrava os cumes todos que nos rodeavam, a erva rasteira estava congelada pelo frio e toda ela brilhava como pequenos cristais que estalavam quando os pisávamos. Perfeito!

No abastecimento de Estanquinhos dei uma vista de olhos ao papel que levava comigo onde tinha os tempos previstos de passagem. Já levava mais meia hora que em 2019! Não estava à espera que fosse tanto. Enfim, o mal estava feito.  

Segui com o plano e tentei poupar-me ao máximo na descida para o Rosário, abastecimento que marcava os 40km de prova. Praticamente percorri a andar os 2km muito chatos naquele estradão inicial cheio de pedra grande e solta à saída do abastecimento e finalmente soltei-me quando entrámos nas levadas. Um trilho maravilhoso, quase plano, que nos embrenha dentro da floresta Laurissilva. 


Duas fotografias dos trilhos na descida para o Rosário, pelo Miguel Cadalso.

Foi a sexta vez que ali passei e a sexta vez que apanhei o nascer do sol nestes trilhos. Mas posso dizer com toda a certeza: nunca apanhei um tão perfeito como este ano. Não sei se por ter sido um sol de Outono, pelo céu estar tão limpo, pela conjugação de tudo e mais alguma coisa... Nunca vi nada assim. Os tons laranja dos primeiros raios de sol davam vida e aqueciam o verde da Laurissilva, uma coisa de outro mundo! A Madeira é mesmo um sitio único. 

Fotografia do Cadalso numa parte emblemática da descida.

Chegado ao Rosário voltei a olhar para a cábula, tinha mantido a meia hora a mais em relação a 2019, mesmo a ser muito conservador na descida. Não estava mau, meia hora ainda era recuperável... Nesta altura comecei a entrar na prova, sentia-me bem e solto, naturalmente amassado dos 3000+ que já tinha nas pernas, mas isso é o mais normal. Com jeitinho a coisa ainda encarrilhava!

Iniciei o caminho do Rosário para a Encumeada bastante mais animado. Pela primeira vez tinha a cabeça dentro da prova, agora era altura de ver se o resto se alinhava. Sempre encarei esta parte do percurso como uma espécie de proforma: saímos da noite e sobrevivemos ao inferno dos primeiros 30km, agora íamos a caminho da Encumeada para uma das descidas mais massacrantes antes de começar a segunda parte da prova, mas antes temos estes 9km com 600+ de interlúdio. Primeiro descemos por umas hortas, depois um estradão e finalmente as escadas mais certinhas de toda a prova, no caminho do quebra panelas (não me lembro se é mesmo este o nome), uns degraus a subir perfeitos para meter um ritmo certinho.

A parte final da subida.

Virada a encumeada tínhamos uma pequena descida antes do abastecimento no hotel. Nos outros 5 anos esta descida era pela estrada, mas este ano entrámos numa levada incrível com 1 ou 2km que acabou num trilho a pique a desembocar mesmo à entrada no hotel. Muito mais massacrante, por causa da inclinação do trilho, mas valeu a pena. O que também valeu a pena foi ter encontrado a meio desta descida o Mota, que estava nos 85km! Um dos meus companheiros de treinos de madrugada, que se estava a estrear numa distância destas. 

Entrámos e saímos do abastecimento juntos e seguimos para a segunda parte do interlúdio, antes de finalmente começarmos a descer para o Curral. Mas desta vez já não era um caminho simples. Primeiro subimos o famoso pipeline, que mais uma vez fiquei com a impressão que tem mais fama que proveito. Não é uma subida muito difícil. Depois contornámos o vale inteiro num trilho muito bom, ondulante, quase sem inclinação, que fizemos quase integralmente a correr, tais eram as boas sensações!

Fotografia do Mota no fim do pipeline.

Faltava-nos agora apenas o meio km vertical de subida antes da grande descida para o Curral. Tínhamos saído à 1h15 do abastecimento, por isso decidi que seria ali, bem no inicio da subida, que iria comer. Para esta prova adoptei uma estratégia diferente com a alimentação. Com a ajuda e conselhos do Simão, decidi que até ao Curral não ia tomar géis. Antes, levei uns sacos que continham meia sandes de pão de forma com presunto, dois figos secos e duas gomas. A cada hora, hora e meia comia um destes sacos, além dos abastecimentos. Até ali já tinha comido 3 daqueles sacos e a estratégia estava a correr bem, mas...algo mudou.

Comecei a comer a sandes e, como sempre, empapou um bocado na boca. Nada de estranhar, é normal. Mas outra coisa não estava a ser normal, estava a subir a um ritmo muito baixo e enquanto comia a minha respiração estava descontrolada, completamente ofegante. O sol já estava alto e corríamos pela primeira vez fora da sombra, comecei a suar em bica. Demorei mais de 10 minutos a comer a sandes e os figos e acabei com a sensação que tinha feito uma série de 1000m a fundo! Respirei fundo e tentei meter um ritmo certo na subida para recuperar o folego, mas simplesmente não conseguia. O Mota começou a afastar-se ao ritmo dele e eu a afundar-me. 

Finalmente chegados à Relvinha, local onde viramos a montanha para a descida, 4.5km de subida depois, engato na descida já derreado. E, claro, esta não é a descida certa para se fazer vencido. Mais de 3km onde se perdem quase 700m de desnível, muito massacrante e técnico. 

Cheguei ao Curral das Freitas, Base de Vida, 61km, às 12h38. Quase uma hora depois de 2019...

Fotografia que enviei à Sara, com o obrigatório Compal de pêra na Base de Vida.

Aquela réstia de esperança sentida até à subida da Encumeada tinha-se esvaído. As ultras são uma verdadeira montanha russa de emoções. É incrível como num momento estamos no topo do mundo e, meia sandes de presunto depois, descemos ao fundo do poço.

Sentado na base de vida sentia-me um farrapo. O gémeo tinha-me voltado a doer e coxeei até à zona da comida quente para ir buscar um prato de massa, do qual comi 3 garfadas, enjoei e deixei o resto. Troquei relutantemente de tshirt mas deixei a térmica, apesar de estar calor. Não me apetecia... Troquei 4 ou 5 palavras com o Mota, disse-lhe que estava acabado, que ia ser em modo wallking dead até ao fim. Arranquei primeiro que ele, disse-lhe que nos viamos na subida de certeza.

Saí do abastecimento dobrado, cabisbaixo e vencido. Afundei-me em pensamentos negativos. "Não presto para isto", pensava. "Não fui feito para provas de 3 dígitos. Farto-me de treinar e depois chego aqui e é sempre a mesma merda. Nunca evoluo, é sofrer do início ao fim!". 

Arrastei-me nos 2km de alcatrão que subimos à saída do Curral antes de entrarmos no trilho da gigante subida ao Pico Ruivo. Já sabia de cor e salteado o que me esperava: um mar de sofrimento. Estava no fundo do poço. Bem, mas agora já ali estava, nada a fazer, tenho que ir ao trabalho.

Subia vagarosamente apoiado nos bastões por entre os eucaliptos do inicio da subida. Lá em baixo começo a ver alguns companheiros que naturalmente me vão alcançando. Um, mais outro, mais outro... vão todos passando por mim. Um deles era o Vitor Silva, um amigo de Guimarães com quem já partilhei alguns km e aventuras. Vinha com o Nuno, um maluco, também de Guimarães, que estava inscrito na prova dos 42km mas decidiu não partir e antes sair com o Vitor do Curral e levá-lo à meta. Engataram atrás de mim e começámos a conversar. Não me quiseram passar e eu, para não estar a atrapalhar, aumentei um pouco o ritmo. Continuámos a conversar, aquelas conversas normais à pescadores, de conquistas passadas. Continuei na frente, no mesmo ritmo, e eles atrás mim. Conversámos, rimos, passámos pessoal..... 

Espera, passámos pessoal?

Um de cada vez, fomos rodando os 3 na frente do comboio. Falámos de corrida, do trabalho, dos filhos, da vida... Sem dar por isso, já tínhamos a subida praticamente toda feita! Passámos a Boca das Torrinhas, já perto dos 1600m, e entrámos no reino das escadas. Sempre bem dispostos e a andar bem.

Há pouco falei-vos da montanha russa que é uma ultra, se isto não foi a maior reviravolta que eu já passei está lá perto. Fiz nada mais nada menos que o meu melhor tempo na subida Curral - Ruivo! E tudo graças ao Nuno e ao Vitor. 

Fotografia que o Nuno tirou ao Vitor no abastecimento do Pico Ruivo. Tenho pena de não ter uma boa foto com os dois!

Lá em cima, entre os picos, foi abismal. Vale sempre, mas sempre a pena. Tudo. O esforço, o sofrimento, o treino, as dores. Quando entramos naquele mundo fica tudo compensado. Este ano estava incrível, com algumas nuvens que nunca chegavam a cobrir completamente mas iam abrindo e fechando, sempre em movimento, sempre a modificar a paisagem. Mais uma vez, íamos os 3 em perfeita sintonia, agora com a companhia do Aldónio, um madeirense que engatou no comboio. Esta foi sem dúvida a minha melhor fase da prova e, também aqui, bati o meu record para o percurso entre os picos!



E esta sequência de fotos tirada pelo Nuno? Brutal.

Conquistado o pico do Areeiro saímos daquele planeta e voltámos à Madeira. Tínhamos pela frente 4km de trilho maioritariamente a descer até ao abastecimento, no Chão da Lagoa. Aqui descemos novamente à terra. Os degraus a descer logo a seguir ao Areeiro têm um tamanho terrível, o mais desconfortável possível. Demasiado altos e espaçados, não dá para transpor sem ser a martelar as pernas! Com o sol a pôr-se no horizonte também as reservas acumuladas naquelas horas de euforia começaram a esgotar-se. É mesmo assim, a montanha russa estava novamente a virar. Estava na altura de voltar a cerrar os dentes.

Fotografia pelo Ricardo Gonçalves, um amigo madeirense que conheci há uns anos precisamente aqui no Areeiro! Atrás vem o Aldónio, também ele irá ter um papel muito importante no desfecho.

Chão da Lagoa, 81km. O pior já estava, já tínhamos praticamente todo o desnível positivo vencido, assim como as maiores dificuldades técnicas. Mas a chave desta prova é no Poiso, aos 92km. Digo isto a toda a gente: se ao sairmos do Poiso tivermos pernas para correr, então a prova está feita. Se não, é um martírio até ao fim. Bem, mas antes do Poiso, temos uma descida e uma subida para tratar. Vamos a isso.

Foto do Ricardo, dentro do abastecimento do Chão da Lagoa, com o Vitor e o Nuno. Foi aqui que ligámos os frontais.


Às vezes esqueço-me que nem toda a gente conhece este perfil de cor. Aqui fica, para se situarem.

Detestava esta descida ao Ribeiro Frio, que é a aldeia antes da subida ao Poiso. Quem leu os meus anteriores relatos do MIUT já ouviu falar muito dela. Principalmente das subidas a meio da descida! Mas este ano a organização fez-nos uma muito agradável e bem vinda surpresa: descemos por outro sitio! Uma pista de BTT aos ésses, muito boa de correr! Que maravilha. Nem dei pelo tempo passar.

Já a subida senti-a bem nas pernas. E nos braços. E nas costas. E nos ombros. Ufa, que o gajo da marreta estava ali a meio! Mais uma volta na montanha russa! Pumba, lá pra baixo!  Ainda por cima estávamos a chegar ao ponto chave! Vejam bem no perfil acima, a partir daqui é sempre a descer, mais propriamente 25km a descer. Se as pernas tiverem reservas é uma limpeza, se não...ui, modo walking dead, na segunda noite, durante 25km... E a verdade é que as luzes do tablier estavam todas acesas nesta altura.

Ultima foto que enviei à Sara, no Poiso. As minhas selfies são sempre terríveis. 

Comidinha para o bucho e ala que se faz tarde. Os 9km até à Portela são, na teoria, os mais fáceis de todo o MIUT. Primeiro num trilho muito limpo e simpático, depois num estradão a descer. Tudo muito corrível e com desnível negativo. Perfeito, não é? Pois bem, o problema é que tinha os quadríceps destruídos. Tal como no UTMB, em 2016, rebentei a parte da frente das coxas e agora tinha dores horríveis a descer. Inacreditável. Tive tanto cuidado em todas as descidas! Pensando com distanciamento, talvez o problema tenha sido esse. Travei demasiado em todas as descidas e lixei as pastilhas. Parecia um entrevado cada vez que o terreno inclinava mais um bocadinho, estava a ficar profundamente irritado e frustrado. O pior cenário estava a concretizar-se. Ao chegar ao abastecimento da portela temos 200 metros a descer em alcatrão. Tive que adoptar a táctica UTMB, desci de costas! Valha-me Deus. Como tu estás, Filipe Honório....

Agora sim, definitivamente toalha ao chão. A hora que tinha a mais no Curral nunca mais a recuperei, mas agora até as 25 horas estavam em risco. Mais uma vez, no fundo do poço. Entrei no abastecimento, agarrei em dois bocados de banana, um de bolo de mel e dois quadrados de chocolate e fui para a rua comer. Não queria aquecer muito e apetecia-me estar sozinho. Esperei tranquilamente pelo Vitor e o Nuno lá fora, uns bons 20 minutos. Não faz mal, estava a saber-me bem e a prova já estava perdida de qualquer maneira. 

Faltavam 17km. Arrancámos todos juntos, mais uma vez, com o Nuno a puxar na frente. Meteu um trote ao qual todos responderam e foi assim que fomos papando o estradão inicial até entrarmos no trilho das Funduras. Em plano os quadriceps não me doíam tanto e até estava a ser capaz de manter aquele ritmo. O Nuno encostou e eu, como não queria parar porque depois me custava a recomeçar, assumi a frente e continuei no mesmo ritmo. Seguiu-me o Aldónio. Entrámos no trilho das Funduras os dois sozinhos, eu na frente, sempre a trote. O trilho é muito ondulante, tanto sobe como desce, mas incrivelmente corria melhor a subir do que a descer. Então continuei, continuei, continuei... Com o Aldónio atrás de mim, já isolados, nunca deixámos de correr. Foram 7km sempre a trote, no sobe e desce. De repente já estávamos na Degolada, uma descida assassina antes do ultimo abastecimento, do Larano. Cerrei os dentes e assumi as dores todas naquela descida. Disse ao Aldónio: "Vamos passar direto no abastecimento?"

Incrível. Já nem sei o que dizer. Passámos diretos a correr no abastecimento, para espanto de todos os que lá estavam, e continuámos o nosso trote na Vereda do Larano. A infinita. Ligeiramente a subir, mesmo boa para as minhas pernas destruídas das descidas. Descemos a boca do risco e aí sim, tive que parar uns segundos, alongar, conter as lágrimas que quase caíam com as dores nos quadriceps, e seguir. Só faltava a ultima etapa, os 5km de levadas à porta de Machico. 

O Aldónio, tal qual anjo da guarda, sempre atrás mim. Passei horas com ele desde o Curral. Ao contrario do Vitor e do Nuno, com ele falei muito pouco, mas também não era preciso, entendemo-nos na perfeição. Parava quando eu parava, acelerava quando eu acelerava, dizia-me para abrandar quando via que eu estava cansado. Conhecemo-nos ali, ele a fazer os 85km eu os 115. Provavelmente nunca mais nos veremos, mas foi em dupla que chegámos a Machico. Em contra relógio, a dar tudo nas levadas finais para conseguirmos chegar antes das 25 horas, o que conseguimos, por 40 segundos!! Só de pensar que há 16km atrás, na Portela, parecia impossível chegar antes das 26!

6 em 6.

Todos os MIUT que fiz foram especiais por uma ou outra razão. Este também o foi.  E foi porque não o fiz sozinho, era impossível ter chegado a Machico a esta hora sem a ajuda de outras pessoas: primeiro do Mota, que me meteu dentro da prova na Encumeada, depois do Vitor e do Nuno, que me foram buscar ao fundo do Poço no Curral e me levaram até ao Pico do Areeiro são e salvo e finalmente do Aldónio, que me empurrou para uma parte final incrível. Foi graças a eles, mas também foi graças a vocês todos que foram enviando mensagens de incentivo ao longo destes 6 anos. Foram 690km e sensivelmente 150 horas que passei nos trilhos do MIUT, numa ilha que já considero também como minha casa. E, claro, foi graças à minha Sara. Incansável no apoio, vive tanto isto como eu e ainda consegue segurar as pontas enquanto eu me vou perder para a montanha. O final perfeito para o ciclo Madeira Island Ultra Trail.




Será..?