Treinei o máximo e o melhor que pude, li dezenas de crónicas, vi vídeos e falei com muita gente que lá esteve. Preparei o corpo e principalmente a mente para as piores condições possíveis. Sabia que ia ser extremo, que ia exigir tudo de mim. Estava convencido que sabia o que esperava. Mas não. Longe disso. Nada, e reforço NADA, me poderia preparar para o que encontrei na Madeira.
Eram 23 horas de sexta feira quando o autocarro onde ia chegou a Porto Moniz, vindo de Machico. Comigo vinham os meus amigos João, Vasco, Francisco e Antonieta, dos 20km de Almeirim, e outra meia centena de atletas. Tinha passado um dia perfeitamente tranquilo em casa com a Sara, a Mel e o João, que ficou connosco no Funchal. Apesar de não conseguir disfarçar a tensão durante o dia, a viagem de cerca de hora e meia de autocarro que atravessou a ilha foi bem tranquila. Não tive nenhuma epifania, não fiz uma retrospectiva dos últimos 6 meses, nem sequer estava a tocar o Chariots of Fire dos Vangelis em fundo.
A noite escura não deixava ter um vislumbre do que me esperava, a única pista que a ilha nos dava eram pequenas luzes artificiais lá em cima, a centenas de metros de nós. O nosso autocarro foi o ultimo a partir, quando chegamos a Porto Moniz já lá estava toda a gente. A noite estava perfeita para correr, temperatura amena a rondar os 16 graus, sem nuvens. Decidi partir sem o meu impermeável, com uma camisola de manga comprida, uma t-shirt e os habituais calções curtos. Ah, e luvas, apesar de na altura não haver necessidade nenhuma disso. Vocês
percebem :)
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Vasco, eu e João |
A meta estava instalada numa praça de Porto Moniz, junto ao mar. Até cerca de 5 minutos antes da partida permaneci sentado no chão. Já que ia passar mais de um dia de pé o melhor era adiar a coisa até ao fim! No sistema de som o presidente do Montanha Clube do Funchal, organizador da prova, debitava algumas frases de motivação e fez uma retrospectiva rápida do percurso: "(...) de seguida apanham uma longa subida, depois uma descida técnica, depois uma subida ainda mais longa, depois uma descida muito dura (...)" ok ok, já percebemos!
23:55. Todos os 375 atletas estavam prontos e ansiosos por partir. Últimos abraços e desejos de boa prova. Sorriso nervoso, olhos fechados e respirar profundo. Sentia-me bem, estava bem. 23:59. Vai começar. Seis meses depois da decisão, finalmente tinha chegado o dia 11 de Abril 2015. O dia em que passei pela maior e mais dura provação da minha vida.
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Vamos! |
O MIUT começa a ser uma prova diferente logo nos primeiros metros. Em praticamente todos os trails em que já participei os primeiros quilómetros são feitos em terreno plano, muitas vezes em asfalto, de maneira que o pelotão disperse antes da entrada nos trilhos. Aqui não. A ideia dos madeirenses de "inicio tranquilo" são 2km iniciais com 400D+! Vá, não vou ser injusto, apesar de ter começado logo com uma subida, esta era em alcatrão! Pronto, bem vistas as coisas até foram simpáticos :)
A subida seguia íngreme, aos zigue-zagues no meio de casas na encosta, com Porto Moniz a ficar pequenino lá em baixo. Ninguém corria, a inclinação dificilmente daria para isso (menos para os da frente, claro), mas todos iam em bom ritmo. A entrada nos trilhos aconteceu no topo da subida, nos 400m de altitude. Um trilho plano corrivel e com bom piso, que desembocou numa descida sempre aos ésses também ela muito boa de se correr. Com toda a gente ainda muito junta seguia num grande comboio a um ritmo confortável e sem ultrapassagens. A meio da descida comecei a ouvir uma multidão lá em baixo, junto às luzes. Querem ver que o Cristianinho está na Ribeira da Janela?! Não, nada disso, eram só umas centenas de pessoas que há uma da manhã estavam ali a apoiar os atletas! Enquanto passava ali lembrei-me de olhar para trás e tive o primeiro momento arrepiante do dia: Na encosta escura, por centenas de metros, viam-se as luzes brancas dos frontais num zigue zague branco que parecia quase vivo, em movimento.
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O famoso zigue-zague nocturno do MIUT |
De regresso à cota zero, acabaram as facilidades. O MIUT ia começar.
A primeira grande subida era simultâneamente o primeiro km vertical da prova e levar-nos-ia ao Fanal, local onde estava o primeiro abastecimento, por uma subida com 11km e 1100D+. Os primeiros 2km foram parecidos com a subida inicial, entre as casas de Ribeira da Janela. Na entrada do trilho, lá estavam elas. Depois de meses e meses a ouvir falar delas finalmente era altura de conhecer as famosas escadas do MIUT! Estas apresentavam o aspecto mais comum da prova, troncos metidos na terra, normalmente molhados e escorregadios. Este era o mais habitual, mas havia de tudo. Desde troncos, degraus em pedra, degraus em calçada, tábuas de madeira, rocha esculpida... O tamanho era muito variável, ao ponto de quase poder afirmar que dos milhares de degraus subidos nenhum tinha a mesma altura e largura! Uma espécie de floco de neve, mas em forma de instrumento de tortura. Bonito.
Depois de subirmos 800 metros em 4.5km o trilho desembocou numa levada ligeiramente a subir que se prolongou por 5km. Apesar de ser a subir (a prova disso é que a água corria em sentido contrário ao nosso) era espectacular correr ali. A vegetação densa cobria-nos por cima da cabeça, um piso excelente, à esquerda a levada e à direita quase sempre uma falésia íngreme que mergulhava na escuridão. O caminho percorria a encosta circundando-a, nunca andámos mais que 200 metros a direito, havia sempre uma curva à direita ou à esquerda. Seguia num comboio de 6 atletas, comandado pelo João que impôs um ritmo tranquilo durante os 5km. Foi a maior distancia em que dava para correr em toda a prova e eu, sempre com o corte dos 30km na cabeça, não quis facilitar e sem forçar nada percorri-os a correr. No fim da levada chegámos à parte final da subida até ao Fanal, num troço de 2km muito íngreme.
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A chegar ao Fanal, reparem nas árvores por cima da cabeça |
O abastecimento estava dentro de uma tenda militar, com mesas de um lado e do outro. Muito completo, com tudo o que era preciso e canja quente que comi logo ali aos 16km. Demorei o mínimo que consegui no abastecimento e decidi vestir o impermeável, com a passagem dos 1000m de altitude apareceu também o nevoeiro. A temperatura baixou muito e chuviscava.
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Abastecimento do Fanal |
Já me tinham avisado para a descida seguinte, mas foi pior do que imaginava. Cinco quilómetros de descida super técnica, em que não dávamos um passo sem ter que pensar onde colocávamos os pés. O piso era de terra escura macia, pelo menos era o que dava para perceber entre as pedras escorregadias que cobriam o trilho quase por completo. Demorei uma hora a descer os 5km, sempre apoiado nos bastões, para não escorregar, e a massacrar os quadricepes. A chegada ao abastecimento de Chão da Ribeira aos 22km, na base da descida, foi às 4 da manhã. O corte dos 30km era às 8, tinha portanto 4 horas para fazer A subida do MIUT: a conquista de Estanquinhos.
A opinião era quase unânime: a subida a Estanquinhos é a mais difícil do MIUT. São 8.5km com 1300D+, com uma parte inicial demolidora em que subimos 1100m em 4km. Por exemplo, o
km vertical que fiz na Serra da Estrela era menos violento que isto e neste caso ainda tinha 85km de corrida pela frente. Esta parte inicial era tudo o que prometia: dura, difícil, demolidora. Os quase 30% de inclinação transformavam a subida aos ésses numa autentica escalada por entre calhaus e terra. A vegetação que nos cobria tornava o ar quente e húmido, suava em bica. Preocupado com o corte dos 30km nunca abrandei e forcei sempre, ultrapassando mesmo bastantes atletas. Estava convencido que a chave do MIUT estava neste primeiros 30km, até Estanquinhos, e quando a inclinação deu alguma trégua continuei a forçar. Agora acima dos 1400m de altitude, já sem vegetação e com a lua a mostrar os contornos dos monstros que nos rodeavam. Lembrei-me das palavras do Luís Mota nesse dia de manhã "quando vamos a subir uma encosta de bicicleta e não temos força não paramos, metemos uma mudança abaixo. Na corrida é igual!". Quando estava perto da exaustão avançava com passos muito curtos para ir descansando mas sem nunca parar. O importante era não parar, o importante era forçar! A chave estava ali, aos 30km! Não era...?
Cheguei a Estanquinhos com 6h15, muito antes das 8 horas a que se fazia o corte e antes das 7h30 que previa para este ponto. Tinha deixado para trás os famosos primeiros 30km do MIUT, os demolidores 30km! Enquanto estava no abastecimento tinha um sorriso triunfante na cara, na minha cabeça o MIUT estava feito, orientei a minha preparação toda para aquilo. Achei que o resto era uma questão de gestão.
Como estava enganado...
A descida seguinte foi a imagem perfeita do que é o MIUT. Seriam 9km a descer, até Rosário, bem no coração da floresta Laurissilva, uma floresta húmida sub-tropical considerada património da humanidade. A descrição desta floresta que o Paulo Pires (
Runbook de um gajo que mudou de vida) fez o ano passado foi um dos factores que me levou a inscrever-me nesta prova.
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Laurissilva, retirado da net |
A descida começou com um km de estradão. Mas na Madeira não há estradões normais, e este estava coberto de pedras soltas, daquelas mesmo boas para torcer um pé. Foi portanto 1km aos ésses a tentar encontrar uma trajectória que me permitisse correr. O sol já estava a nascer quando finalmente penetrei na floresta. Esta descida devia ser obrigatória a toda a gente que faz trail. Num troço de 9km encontramos todo o tipo de piso e percurso, desde super técnico a corrivel e macio. Com escadas, passagem por cascatas, levadas, trilhos cobertos de folhas que o tornavam quase uma pista de atletismo, passagem por túneis nas rochas... A vegetação era outro factor, plantas com folhas enormes, de espécies que nunca tinha visto, árvores centenárias gigantes que faziam autênticos túneis para passarmos por baixo. Lembro-me de pensar que se alguém quisesse não conseguiria inventar um trilho tão perfeito como aquele.
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Retirado da net, mas um trilho por onde passámos. |
Já perto do fim apanhámos um troço de escadas durante cerca de 1km, com degraus curtos e altos, que forçavam muito os joelhos. Depois entrámos num trilho perfeito para correr, completamente coberto de folhas. Quis correr, mas as pernas não estavam a corresponder, sentia-as presas.
Não era só isso, estava no paraíso do trail e sentia-me a desanimar. Algo estava a mudar...
Foi nesta altura, aos 35km, não aos 80 ou aos 100, que o pensamento me surgiu na cabeça como uma bomba: não vou conseguir.
Pela segunda vez (a primeira foi em Sicó), o nascer do dia tem um efeito devastador em mim. Não gosto nada de correr à noite, logo era de pensar que o sol era um factor positivo, mas não. Não o consigo explicar, nem sequer perceber porque acontece...
Na base da descida existia o abastecimento de Rosário, onde comi agora com mais calma. O prato seguinte seria uma subida com "apenas" 500 metros, até à Encumeada. Cheguei e saí do abastecimento ao mesmo tempo que o João, que tinha apanhado na descida, mas assim que começa a empinar perco-o de vista. Não o voltaria a ver até ao fim.
A subida à Encumeada é fácil de descrever: escadas. Foram 8km de escadaria quase continua. Pela primeira vez não subia de forma contínua, parava frequentemente e dobrava-me sobre os bastões. Começaram a passar muitos atletas por mim, o que era sempre uma desculpa para encostar e descansar um pouco. Sempre que parava sentia as pernas a tremer e não me saía da cabeça que só tinha pouco mais de um terço da prova feita. Comecei a chegar à conclusão que teria abusado nos primeiros 30km, e talvez tenha sido. Afinal de contas foram quase 3 mil de acumulado, números que não se vêem em quase nenhuma prova de 30km. Chegados ao topo da subida tínhamos cerca de 500 metros em alcatrão, a descer, até ao abastecimento da Encumeada. Tento abrir a passada e correr, mas era simplesmente impossível. Paro 2 ou 3 vezes neste 500 metros, nem em alcatrão conseguia correr! Calma, pode ser um daqueles episódios de morrer e renascer, pensei.
O abastecimento estava instalado num hotel/restaurante. Como duas sopas bem quentes sentado à mesa e demoro-me algum tempo ali. Quando me levanto depois da segunda sopa estava com aquelas dores de quem já acabou uma prova. Sentia-me todo dorido e com sono. Ligo à Sara, que ia estar à minha espera no próximo abastecimento, em Curral de Freiras aos 60km.
Estou? Olha..não sei se vou conseguir... já falamos...
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Localização do hotel |
Não me consigo lembrar da descida que durou dois quilómetros, foi feita em piloto automático e em sofrimento, mas lembro-me muito bem da subida seguinte. Foi por uma escadaria que acompanhava uma grande conduta de água que descia a encosta. Degraus desta vez em cimento muito altos. Trepar cada um deles era um tortura, parava constantemente. Vem-me à cabeça os treinos de escadas todos que fiz, nunca cheguei sequer perto daquele estado de exaustão.
Seguiu-se um trilho bom para correr que rodeava o vale todo até estarmos do lado oposto ao hotel onde tinha sido o abastecimento. Ainda faltam 500 metros verticais para subir antes de iniciarmos a famigerada descida até ao Curral de Freiras.
O percurso pedestre que percorríamos é incrível. Num caminho de pedra arrumada à mão e betumada, sempre a subir com muitas escadas à mistura. À nossa volta erguiam-se picos a toda a volta, cada um mais alto que o outro. Tentava adivinhar qual estaria nos 1400 de altitude, que era o topo desta subida. Quando achava que já tinha descoberto, o percurso dá uma volta à montanha e aparecem-me à frente dois ou três mais altos. Passo por um caminheiro "civil" que partilhava o percurso connosco e pergunto-lhe se aquelas casa lá em baixo são o Curral, ele diz que não, o Curral está atrás daquela montanha, diz ele a apontar para um monstro separado de nós por um vale fundíssimo.
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Caminho da Encumeada |
Atingi o meu ponto mais baixo da prova nesta parte do percurso. Cada passo era uma tortura. Estava completamente drenado de energia, as pernas tremiam e sentia o corpo a desligar, sentava-me muitas vezes nos degraus a tentar recompor-me. Fechava os olhos e entrava quase de imediato no sono. Enquanto caminhava, os olhos pareciam que queriam ceder e fechar. Fecho só um bocadinho, o trilho é a direito, consigo caminhar na mesma, pensava eu, como quando estamos no sofá à noite cheios de sono e achamos que se fecharmos os olhos não perdemos nada do filme porque percebemos o que dizem. Passaram dezenas de companheiros por mim, todos me perguntavam se estava bem. O pensamento de desistir era cada vez mais forte, como uma ideia que cresce e conquista o seu lugar na nossa cabeça. Cada vez mais presente, mais forte... De repente a minha água acaba! Só faltava essa! O sol estava a pique, transpirava muito, ainda por cima. Arrasto-me por mais uns metros e enquanto me sentava pela enésima vez num degrau, depois de passar por mim mais um grupo, decidi: vou desistir.
Liguei à Sara e disse-lhe isso, que ia ficar no Curral. Não tinha outra hipótese, se não ficava já ali. Percebi a aflição na voz dela, queria chegar lá abaixo e explicar-lhe que simplesmente tinha chegado ao meu limite, não havia volta a dar.
Depois de fazer o telefonema ainda me faltavam cerca de 2km a subir a pique até começar aquela que diziam ser a mais difícil descida do MIUT, até ao Curral. Nestes 2km passou-me tudo pela cabeça. Pensei nunca mais fazer ultras, nunca mais escrever no blog. Pensei nos telefonemas que recebi antes da prova, a dar força. Nas mensagens para o telemóvel, para o facebook... Na quantidade de pessoas que eu tinha a certeza estariam naquele momento em frente ao computador à espera que o site da prova desse sinal que eu tinha chegado ao Curral. Achei que os ia desiludir a todos.
Vinha a arrastar-me, sem forças, quando passo por um grupo de 4 madeirenses que estavam a fazer uma caminhada. Percebem que estou mal e metem-se comigo. Fico ali 1 minuto à conversa, eles super simpáticos e animados, na esperança de me passar a boa disposição a mim. Informam-me que o topo era já ali a 500 metros, que depois era a descida. Enquanto nos despedimos pergunto-lhes se têm um pouco de água, que a minha tinha acabado. Prontamente despejam as duas garrafas que têm para dentro do meu reservatório, mesmo comigo a dizer-lhes que não é preciso tanto. No fim um deles dá-me um passou-bem e diz "força, até ao fim". Tenho a certeza que ele não fazia ideia do meu estado mental naquela altura, mas parece que foi de propósito.
Exactamente como eles tinham dito, o fim da subida chegou pouco depois. Lá bem no topo consegui ver Curral de Freira, 700 metros abaixo de nós, entalado num vale assombroso com montanhas monumentais a toda a volta.
Vamos à descida.
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Lá em baixo, entre gigantes |
Preparei-me para o pior nesta descida, ia muito desanimado. Começou com um troço em escadas muito íngreme, depois entrou num trilho infindável que misturava pedra, escadas e troços bons para correr. Num desses troços ensaiei um trote. Hm.. não estava mau, continuei. Fui fazendo a descida sem grandes dificuldades e fui passando alguns companheiros, que me tinham ultrapassado na subida. Sempre que o trilho me deixa, corro. A meio da descida recebo umas sms da Sara, com mensagens de motivação que tinham deixado no facebook. Emociono-me não só pelo que diziam mas principalmente quando pensei o que a Sara estaria a pensar sabendo o meu estado de espírito. Mais um trilho corrivel, mais uns metros a correr... As pernas começaram a responder, uma das pessoas que eu passo até me pergunta se tinha arranjado umas novas (lá em cima, quando me perguntou se precisava de alguma coisa, eu respondi umas pernas com 0km). De repente a ideia de desistir é substituída por outra: E se eu pelo menos tentasse fazer a subida até ao Pico Ruivo...?
Quando estou mesmo a terminar a descida, a entrar num troço em estradão a 1km de Curral, vou concentrado a correr e a olhar para o chão quando oiço "olha o papáááá!!!" seguido de um PAPÁÁÁÁÁ dito pela minha filha enquanto corria de braços abertos na minha direcção!
É verdade que nestas ultras morremos e renascemos várias vezes. Todos passámos por isso e ficamos impressionados. Porque é que acontece? Não sei. Mas desta vez não foi a minha força de vontade que me tirou de precipício. Tenho a certeza absoluta que se não fossem elas tinha ficado em Curral de Freiras.
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Sim filha, é melhor por mais uns geis |
Muito mais bem disposto e animado, sento-me no passeio a comer canja e depois um prato de arroz com carne picada. Troco a t-shirt e a camisola transpirada por uma camisola seca, para ficar mais confortável. A Sara fala-me do resto da equipa, como vão bem mas cansados.
Não parti com a sensação de prova superada, muito pelo contrário. Essa foi uma sensação que só consegui ter muito perto da meta. Já tinha passado por muito, mas bem vistas as coisas ia a meio da prova! Preparei-me para enfrentar o último km vertical da prova, um monstro com 1200D+ em 8km, a famosa subida ao Pico Ruivo, nos 1800m de altitude.
Eram duas da tarde e o calor estava a apertar. Decidi partir com o impermeável vestido (desde que o vesti no Fanal nunca mais tirei), achei que lá em cima estaria frio, mas por enquanto o que estava era calor, e muito. A subida começou com alguns quilómetros por um trilho com muitas escadas (quem diria?) no meio de eucaliptos gigantes. Comecei com ânimo, mas notava as forças a fugirem. A subida prolongou-se até ao infinito, olhava à volta para encontrar o pico mais alto. Pela primeira vez levei no relógio a informação da altitude a que me encontrava, o que foi bastante útil, os 1800 metros é que tardavam a chegar... O suor escorria e bebia água sofregamente, dois litros durante esta subida. Quando chegámos aos 1500m de altitude havia um posto de controlo, em Boca das Torrinhas. Aqui existiam uma árvores espectaculares, com ramos secos, desfolhados e muito brancos, quase fantasmagóricos.
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As árvores que falava, retirado do blog do Paulo Pires |
Faltavam agora 5km até ao Pico, e apenas 300 metros para subir. Fiquei animado, mas isso é sempre sol de pouca dura no MIUT. Estávamos agora a entrar na zona das escadas. Sim, até agora tinha sido brincadeira!
Os 5km transformaram-se num sobe e desce sádico. Subíamos um grande lance de escadas e via a altitude a aproximar-se dos 1700. É aqui, é já aqui em cima! Pensava, até dar a volta ao monte mais uma vez e ver uma descida com mais umas centenas de metros que me fazia voltar aos 1500. O tempo tinha estado impecável até então, com céu azul e sem vento, mas quando dobramos a montanha muda completamente de cara e aparecem as nuvens. O Pico aparece como não podia deixar de ser depois de uma subida brutal com muitas escadas.
Quase 3 horas depois tinha conquistado a ultima grande subida do MIUT, 3 horas depois de ter decidido desistir. Dei o meu número de dorsal e meti o chip no leitor. Imediatamente pensei nos meus amigos e familiares que estavam à espera de um sinal naquele ponto. Entrei dentro do abrigo onde estava o abastecimento com um sorriso na cara.
O abastecimento do Pico Ruivo estava montado dentro de um abrigo florestal. Não é possível aceder a este pico de carro, por isso toda a logística que lá estava tinha sido transportada manualmente pelos voluntários. Lá dentro haviam bebidas quentes e uma lareira acesa. Enchi o meu reservatório que estava quase vazio e fiz uma nova dose de isotónico, depois sentei-me numa cadeira junto à lareira com um copo de chá quente. Olhei para o relógio e eram 16:25. Ok, tens até às 16:30 para descansar, depois sais! Pensei eu, enquanto fechava os olhos. Não demorei mais que 2 segundos a adormecer com a cabeça apoiada nos bastões! Levanto a cabeça sobressaltado e reparo que em frente a mim está um companheiro também ele ferrado a dormir!
16:30, está na hora. Levantei-me, cerrei os dentes e preparei-me para enfrentar os 6km que me separavam do Pico do Arieiro num percurso pedestre que ligava os dois picos.
Estes 6km valeram por todo o esforço da prova. Parecia que tínhamos entrado noutro planeta. As montanhas na Madeira não são como as que estava habituado, não há ali um declive suave, são autenticas paredes monstruosas que ali pareciam nascer do nevoeiro. Escadas e mais escadas. Degraus em pedra com 50 ou 60cm. Degraus em madeira e outros metálicos. Caminhos estreitos e planos na encosta, do lado esquerdo uma parede vertical com centenas de metros, do direito um precipício com muitos mais, a separar-nos um corrimão em corda. Corria quando podia, corria até encontrar o novo lance de escadas para subir e descer mais uma vez. Entrávamos em túneis onde só cabia uma pessoa, sem iluminação, que atravessavam a montanha, e saímos do outro lado só para perdermos de novo o fôlego com o que víamos. Passámos em caminhos que se equilibravam na crista de um pico, com uma precipício de cada lado. Incrível, megalónomo, de cortar a respiração.
Queria mostrar-vos, mas como já devem ter reparado não tirei uma única foto durante toda a prova... Sempre que achava que era um bom sitio e ia tirar a câmara pensava "não, concentra-te, tens é que chegar ao fim". Vão ter que se contentar com fotografias que encontro na net. Garanto-vos que estes locais existem, não é montagem, eu passei lá :)
Depois de uma grande subida em escadas começo finalmente a avistar o Pico do Arieiro, local onde estava instalado um abastecimento com comida. Enquanto me dobrava apoiado nos bastões a descansar começo a ouvir PAPÁÁÁÁ!! ahahaha lá estavam elas no topo das escadas, ainda por cima não esperava encontrá-las ali!
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No Pico do Arieiro com a minha fã nº1 |
Sento-me no abastecimento e como dois pratos de canja. O caldo quente e salgado sabe-me muito bem, comi praticamente em todos. Pergunto a um membro da organização como seria a descida até ao Ribeiro Frio, onde estava o próximo abastecimento. Ele responde-me "ah, é fácil, estradão com uma inclinação suave".
Claro... deve ser...
Lição nº1 - Na Madeira há duas coisas que não existem: terreno plano e descidas fáceis. De facto, a única coisa plana que existe na Madeira é a pista do aeroporto e a única descida fácil é a do teleférico do Funchal.
Ok, tenho que ser justo, havia um estradão. Não tinha mais que 500 metros, mas havia! Depois havia também trilhos técnicos, escadas e, curioso, haviam subidas bem duras na...descida! A parte final foi já num bosque cerrado e fez-me lembrar muito os trilhos na Serra da Lousã. Solo macio, muito escuro, com muitas raízes húmidas para escorregar. Estava numa fase boa e fiz este trilho todo a correr. Nesta altura apanhei mais uma vez o Luís Sommer, que só conhecia dos textos fantásticos que escreve no Facebook. Praticamente desde o início da prova que foi assim: ele passava-me nas subidas, eu passava-o nas descidas. Trocávamos uma palavras rápidas e seguíamos caminho, não era preciso mais, cada um estava na sua missão.
Ainda aqui não falei disso, mas o MIUT é provavelmente a prova com menos fitas que já participei. Simplesmente porque os trilhos não precisam de fitas de marcação, prolongam-se quase até ao infinito! Nunca tive a menor dúvida durante os 115km e andei quase sempre sozinho. Mesmo à noite bastava-me levantar a cabeça e lá aparecia um reflector a brilhar.
Faltava agora a ultima grande subida do percurso, que nos levaria até Poiso. subiríamos mais 600 metros em 4km. Nesta altura ainda haviam duas coisas que me impediam de pensar que chegaria a Machico: a subida a Poiso e a descido de Poiso. Vamos lá então.
Começo a subida moralizado, ainda a aproveitar as boas sensações da descida. O piso é bom, em degraus de calçada, aplico um bom ritmo com os bastões. Foram uns bons 200 metros de subida sim senhor. Até se partir um bastão :\ Fico um bocado de tempo parado a olhar para a peça em carbono que me custou os olhos da cara, dobro-o conformado e levo-o comigo enquanto faço do outro bastão uma espécie de bengala. A subida continua a não ser demasiado difícil, com um bom piso que permitia andar a um ritmo estável. Já perto do topo, a chegar aos 1400m de altitude anoiteceu novamente e ligo o frontal. Nunca tinha entrado numa segunda noite mas na altura nem pensei nisso, já há muito que ia em piloto automático.
Já dentro do abastecimento apercebo-me que estou muito mal. Sento-me numas escadas, afastado do resto das pessoas, e fico ali imóvel com um prato de sopa na mão. Os olhos pesam cada vez mais e só me apetece encostar-me à parede e passar pelas brasas. Ainda por cima contraí aquela que penso estar no top das lesões desportivas mais estúpidas de sempre: uma conjuntivite! Limpo o pus esbranquiçado do olho com um guardanapo, mas a visão continuava turva. Nada a fazer.
Faltam 25km para o fim e praticamente nenhuma subida, mas sabem tão bem como eu que uma descida pode ser tão ou mais dura. Uma atleta que já tinha participado na prova diz-nos que a longa descida que se seguia começava por ser muito técnica, depois entrava numa zona de levadas e finalmente estradão que nos levaria até à Portela. Enfim, facilidades nunca encontraria, estava ciente disso. Calço o segundo par de luvas, mais grosso, para me sentir mais confortável antes de atacar a descida.
As indicações da colega estavam certas. Começámos com um troço de 4 ou 5km muito técnico com pedras húmidas que massacraram mais um pouco as coxas. Já me aconteceu em muitas provas ter que parar numa subida para descansar, mas nunca numa descida. No MIUT aconteceu uma data de vezes, tal era o esforço. A meio da descida entrámos numa levada, o que é bom sinal. As levadas nunca são demasiado inclinadas, penso que por isso é que também não passámos por muitas! Sigo moralizado, o ultimo grande obstáculo estava quase ultrapassado!
Assim que chego ao abastecimento e passo o chip no controlo recebo 2 ou 3 mensagens de amigos que estavam atentos à espera da chegada. Incrível. Fico ali de sorriso parvo na cara a ler as mensagens sentado no abastecimento enquanto sorvo o caldo quente de uma sopa. Respondo à mensagem da Sara, sim, podes comprar a sweatshirt que tínhamos combinado comprar se eu terminasse!
Segundo indicações da organização os últimos 17km tinham sido modificados em relação ao ano passado de forma a suavizar a chegada a Machico. Uma decisão muito sensata e que muitos organizadores deviam aprender e seguir. A prova foi demolidora, chegamos ali com quase 100km e 6900D+, não há necessidade nenhuma de arranjar obstáculos super técnicos. Naquela altura até uma estrada de alcatrão com inclinação descendente de 2% sem curvas teria sido difícil!
Saí do abastecimento super-moralizado e com energia. Estava numa daquelas fases boas e quis aproveitar. Já aprendi que não vale a pena poupar-me nestas fases, a queda vai acontecer quer eu me poupe quer não. Os trilhos eram óptimos para correr, no meio do bosque com constantes e curtas subidas e descidas, um autentico parque de diversão!
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Um trilho por onde passámos |
O combustível começou a acabar pouco antes do abastecimento de Funduras, aos 104km, e a queda foi estrondosa. O olho estava bastante pior, tinha muitas dificuldades em ver o percurso. Podem pensar "mas tens outro, oh urso!", o problema é que uso óculos porque um dos olhos tem miopia e estigmatismo e o outro vê quase a 100%. Tentem lá adivinhar qual é que estava coberto de pus...
Deixei de correr novamente e agora caminhava no trilho, mesmo nas partes planas. Quando aparecia uma subida, mesmo que mínima, era uma tortura ultrapassada a ferros. Sentia novamente o corpo a desligar e olhava para o relógio de 5 em 5 segundos à espera que os metros passassem. Estava cheio de sono e adormeci várias vezes no trilho, sentado. Nesta altura já não punha em dúvida terminar, mas tinha novamente atingido um estado miserável.
A descida final até à Ribeira Seca, a 7km da meta, foi das que me custou mais a fazer em toda a prova. Não que fosse a mais difícil, mas já tinha ultrapassado há muito o meu limite. Para ajudar tinha a visão agora mesmo muito reduzida, não conseguia distinguir as pedras e os degraus no terreno. Ainda não tinha caído vez nenhuma durante a prova e naquela descida caí 4 ou 5 vezes. Estava a desesperar!
No fim da descida encontro dois membros da organização e pergunto-lhes se ainda vamos voltar a subir. Dizem que não, que agora é sempre a descer e plano até Machico. Faltam agora pouco mais de 6km e as luzes de Machico estão já ali. O piso é bom, uma levada. Não parece haver obstáculos, bora correr!!
Foram 5km de raiva até Machico. Corri a velocidades estonteantes numa levada, sou bem capaz de ter baixado dos 6 min/km!! Não parei no último abastecimento, a 3km, só queria ver a meta. Uma ultima descida de 500m e estava a correr no alcatrão de Machico. Faltava passar uma ponte metálica e depois eram 100 metros até entrar na recta da meta.
Quando estou a atravessar a ponte, lá estavam elas.
Imaginei durante meses como seria passar a meta do MIUT. Pensei que fosse rebentar num pranto, levantar os braços, deitar-me no chão... Fantasiei com isso quando estava prestes a desistir no Curral, só podia ser uma coisa digna de filmes, com fogo de artificio e lágrimas.
Quando passo a ponte e vejo a Sara e a Mel, de braços abertos para me abraçar a 100 metros da meta parei de correr. Baixei os braços e caminhei até as abraçar. Acho que nem sequer sorri, nem falei. Não foi uma sensação extasiante, foi pura e simplesmente alivio, missão cumprida. Apeteceu-me ficar ali, já tinha chegado à minha meta, mas faltavam 100 metros até passar pelo pórtico.
Mais de um dia depois, 26h33 minutos depois, cheguei a Machico. Pelo caminho ficaram 115km e 6800D+, mas comigo trouxe muito mais. Trouxe uma experiência que me vai marcar para o resto da vida. Trouxe a certeza que tenho verdadeiros amigos que me apoiaram em cada minuto, quase que os ouvia. Trouxe a certeza que sou capaz de muito mais do que pensava ser possível, que afinal o nosso limite somos nós que o fazemos, não é só mais um cliché. Melhor que tudo isso, confirmei uma certeza: tenho a melhor família do mundo, e nada disto seria possível sem ela.
Obrigado a todos!