Estava a ser o melhor ano desde que corro. Sem lesões, a treinar com um volume que nunca tinha atingido, a sentir-me sempre com força e vontade de carregar mais. As provas, naturalmente, também estavam a ser boas! Duas provas de 3 dígitos sólidas (Montemuro e o muito desejado sub 24 no MIUT), muito boas sensações e resultados em provas a rondar os 50km (a Serra Amarela terá sido a melhor que já fiz) e até nem faltou um record pessoal aos 10km (37 alto)! Depois veio o UTSF e...tudo mudou. Eu sei, também faz parte. Também sei que acabei por fechar a prova e que isso, só por si, já não é mau. Também podia estar aqui a enumerar uma lista enorme de razões para a coisa ter corrido mal e começar uma sessão de auto pancadinhas nas costas para acabar com o choro. Mas a verdade é só uma: por mais voltas que dê, sinto que a Freita foi uma derrota imensa. Voltei a entrar no modo walking dead, arrastei-me durante quilómetros, senti-me sem força, sem pernas e sem cabeça para o UTSF. Passei três semanas a duvidar de mim e das minhas capacidades, pus em causa o que ficou para trás e, sinceramente, estava sem a alegria e a motivação que tenho sempre para treinar.
Fotografia brutal do Paulo Nunes |
Decidi ir à Arada Night Race uma semana antes da prova. Uma decisão impulsiva, depois de perceber que os planos em família que tínhamos para o fim de semana tinham saído furados. Assim que mentalmente entrei na prova, uma luz acendeu-se. Comecei a estudar o percurso e a falar com o Sérgio e o Bruno, da organização, que me falavam do que ia encontrar. O entusiasmo começou a voltar aos poucos durante a semana e, quando chegou a sexta feira, o pensamento já era só um: vou à Arada e vou à Arada para dar tudo.
A Arada Night Race é organizada pela mesma equipa da Zela e Pisão, duas provas que gosto muito. O palco é a incrível serra da Arada. Para quem não sabe, a Arada é a gémea siamesa da Freita, são duas serras pegadas. Aliás, grande parte do UTSF é corrido na Arada! O início, programado para as 18:30, permitiria correr 2h30 de dia, apanhar o por do sol e terminar de noite, o que me pareceu uma excelente proposta. A partida e base da prova foi o idílico Bioparque de Carvalhais, de onde parte também o Pisão. La cheguei, com o João Miguel, Mota e Alex, uma hora antes. Levantámos os dorsais (eu tinha o dorsal numero 1! Que desperdício...), equipámo-nos tranquilamente e 20 minutos antes da hora marcada estávamos prontos a partir. Temperatura amena, muito bom ambiente e 60 pessoas à partida. Sentia-me bem e super motivado, meti-me logo na segunda fila na partida e às 18:30 lá saí para, o que esperava serem, 40km de faca nos dentes (desculpem o cliché)!
Representação da Associação 20kms de Almeirim na ANR. Foi dia de estrear a camisola! |
A Arada Night Race (ANR) teve 38km com 2400+. Bastante desnível mas nada de muito exagerado, para uma serra como esta. Dizia-me o Bruno Figueiredo, traçador do percurso, que seria menos sky e mais corrível que o Pisão.
Imediatamente após a partida começámos a somar o tal desnível positivo. Primeiro num estradão, curto, até que entrámos em trilhos de granito, muito inclinados, a exigirem quase escalada. Como o ritmo não estava muito alto colei-me logo aos 5 ou 6 primeiros, mas claro que para aguentar o ritmo dos primeiros, o "não muito alto", para mim, significa ir no limite. Subia ofegante e a escorrer água ainda nem tinham passado 2km. Os trilhos técnicos eram intercalados com partes menos inclinadas que permitiam subir a trote e de repente já estávamos com 6km e acima dos 1000m.
Seguiram-se 3 ou 4km num planalto. Trilhos muito traiçoeiros, com tufos de erva seca que escondiam pedras e buracos. Isto quando corríamos em trilho, muitas vezes estes não existiam, eram as fitas espalhadas que nos orientavam no meio do granito. Sobe e desce num ritmo muito nervoso, por paisagens incríveis. Passagem numa levada e em bosques cuja sombra parecia um oásis. Sempre que conseguia aumentava o ritmo e as pernas respondiam, sentia-me a voar por cima dos trilhos técnicos, sem sequer pensar num possível estouro! A adrenalina atingiu doses muito elevadas na primeira grande descida, por volta dos 10km. Um daqueles trilhos típicos desta serra, numa calçada de granito antiga que exigia saltitar de pedra em pedra e a concentração constante para conseguir andar depressa!
A trote. Foto Paulo Nunes |
Espantado. Fotografia do Paulo Nunes |
Não chegámos a entrar em Covêlo, entrámos logo no PR13 que, num trilho assombroso esculpido na encosta de um vale apertado, nos elevou lentamente até ao segundo abastecimento, em Regoufe. O sol estava a esconder-se, fiz este vale já no lusco-fusco, uma cor perfeita para aquela paisagem tão agreste. Aquela sensação de conseguir abrir a passada cada vez que o terreno deixava continuava presente e era impagável!
No abastecimento apercebi-me que estava a sofrer da segunda lesão mais parva da historia da humanidade. A primeira foi a conjuntivite que tive no meu primeiro MIUT que me deixou quase às cegas, mas aqui não foi menos parvo. Logo no inicio da prova devo ter dado um jeito qualquer ao maxilar que o fez deslocar e agora simplesmente não conseguia fechar a mandíbula! Juro! Não conseguia juntar os molares sem ter dores e isto estalar tudo! Resultado: alimentação à base de geis a bananas meio trincadas, não conseguia comer mais nada.
No abastecimento de Candal. Foto Paulo Nunes (Dorsal nº1, não estava a mentir!) |
Saí do abastecimento com o frontal na cabeça e já com muito pouca luz natural. Mais de metade da prova estava virada, agora uma pequena picada e depois descida a Drave por um caminho que conhecia do UTSF. Virei para a descida ainda com um fiozinho de luz, que me permitiu ver mais uma vez a espectacular Garra e acelerei a fundo na descida! Depois de no inicio ter andado pela 4ª posição passaram 4 ou 5 pessoas por mim, o pior que andei penso que foi em 9º, mas a partir desta descida voltei a apanhar alguns. Era sempre uma adrenalina ver uma luzinha lá à frente e controlar a de trás pelo canto do olho.
De Drave, onde já cheguei de noite, só me lembro do fogo comunitário, das canções dos escuteiros e da escuridão total, apenas interrompida pelo foco do meu frontal. Deixei a aldeia encantada pela subida mais dificil de toda a prova, num trilho a zigue-zaguear, muito trabalhoso, que nos fez subir 300m num quilómetro. Mais uma vez subia a dar tudo, sem deixar 1mm de descanso. Assim que viramos ligo o trote e acelero por um estradão aos ésses até ao terceiro abastecimento, em Gourim. Foi o km mais rápido de toda a prova e soube muito bem aquela pequena folga no piso logo a seguir a uma subida tão dificil.
Outra do Paulo Nunes, à saída do abastecimento de Regoufe |
No abastecimento, onde só comi 2 pedaços de banana meio esmagada, informam-me que o troço seguinte, no Rio Paivô, era muito perigoso, para ter cuidado. Mais uns metros de descida num trilho muito técnico e chego à margem do Rio, para o que pensava ser um atravessamento, mas não. Completamente enganado. Andámos cerca de 300m no leito do rio, a fazer lembrar muito o troço do Rio do UTSF. Pedra ultra escorregadia, água pela cintura, progressão lentíssima. A vegetação cobria-nos e deixava o ar abafado, a água fria era uma delicia. A luz do frontal reflectida na água transparente dava uma luminosidade incrível àquele túnel que atravessávamos. Uma maravilha!
Saímos do rio a pique, para a ultima grande subida da prova. Menos inclinada que a de Drave, com o inconveniente de ter vários troços quase a direito que exigiam um trote. Eu até faria a andar, mas pelo canto do olho via uma luz a uns 200 ou 300m!
Ultima grande subida virada e era hora de disparar em direcção ao ultimo abastecimento, na aldeia de Arada. As pernas ainda estavam soltinhas, não só me sentia bem a correr como ainda me permitia carregar no acelerador nas descidas. Primeiro num estradão, para descansar da subida, e os 2km finais num trilho super técnico onde arrisquei como há muito não arriscava!
Já conhecia esta parte final porque era coincidente com os primeiros quilómetros do Pisão, apesar de em sentido contrário, por isso sabia que me esperava uma picada super agressiva na terra, no meio das árvores. Respirei fundo ataquei a ultima grande dificuldade. Como me lembrava, devia ter uns 40% de inclinação, com piso muito difícil em terra, que escorregava. No entanto era curto, num instante estávamos de volta ao estradão muito inclinado que nos elevaria nos metros finais da ultima descida.
Faltavam agora apenas 3km a descer para a meta, por isso decidi que esta descida ia dar o gás todo que tinha. Larguei o martelo (gosto muito da expressão inglesa drop the hammer mas ainda não encontrei uma equivalência boa em português) e, com os bastões já desarmados o que me permitia movimentar melhor os braços, voei pelos trilhos até ao final! Que loucura! Acho que nunca tinha descido assim, normalmente sou super económico nas descidas, mas ali foi mesmo a fundo.
Cruzei a meta em 5h29, literalmente a sprintar pela pequena rampa final. Que adrenalina brutal! Adorei cada metro da prova, subidas difíceis e descidas um misto de técnicas com segmentos muito bons para correr e abrir a passada. Correr ao fim do dia foi espetacular e a temperatura ajudou muito, depois à noite torna-se menos interessante a nível de paisagem, claro. De resto, como é apanágio nesta organização, tudo correu na perfeição. Desde os abastecimentos (apesar do meu problema maxilar fui vendo que não faltava nada), passando pelas marcações, ambiente na partida e chegada, porco no espeto no fim... Outra coisa que gosto neles é a importância que dão à imagem. Além de terem uma comunicação muito atractiva, vê-se o cuidado com as fotografias da prova. O Fritz e o Paulo Nunes são muito provavelmente os dois fotógrafos em melhor forma no trail nacional!
Chegada à meta, pelo Paulo Nunes |
Quanto à minha prestação, o meu objectivo de vingar a prestação do UTSF foi plenamente cumprido, senti-me muito forte e solto. Terá sido das minhas provas mais sólidas de sempre!
A descansar depois de cruzar a meta. Foto Paulo Nunes |
Só mais uma coisa que não quero deixar passar. Quando passei a meta informaram-me que tinha sido o 5º! Ia jurar que estava em 6º e não passei por ninguém, mas ao consultar a classificação reparei que o 6º chegou a 9 segundos de mim. Não sei o que se passou, mas provavelmente ter-se-á enganado na parte final e antes de voltar ao trilho eu entrei à frente dele sem reparar. Se tivesse visto tinha-o deixado passar, afinal de contas fez uma prova melhor que a minha. Peço desculpa por isso, companheiro (se estiveres a ler).
Com isto, acabei por ir ao pódio do escalão sénior! Mas isso da classificação pouco ou nada interessa, o que me deixa com um sorriso na cara apesar das dores musculares que tenho hoje e não tinha há muito (o tal martelo na descida dá nisto) é que, depois da derrota do UTSF, sinto que estou de volta!
O pódio sénior. Foto do Paulo Nunes |
PS - O maxilar parece que foi ao sitio depois da prova. Nem dei por isso. Talvez por já não estar tenso. Só sei que as duas bifanas de porco no espeto foram bem mastigadas!
Devia ser porco.pt!
ResponderEliminarEspetacular. Fizeste viver cada minuto e cada km desta prova. Sem dúvida que é uma aventura alucinante.
ResponderEliminarPisão deixou a sua marca. A Arada não fez por menos...
Muitos parabéns pela prova espetacular
Uma grande e boa descrição da prova, parabéns pela prova e pelo texto😀👍💪
ResponderEliminarUm relato da prova impressionante.
ResponderEliminar👌💪👍😀
Muitos parabéns pela fantástica prova, resultado e pódio!
ResponderEliminarSoltaste mesmo o martelo! (uma expressão que também usam é "hammer time" mas ambas não têm uma tradução lógica para português)
Muito estranho esse problema do maxilar.
Grande abraço e uma boa recuperação!
Pensava que tinhas levado com o Martelo, homem da marreta, o muro, etc.
ResponderEliminarAinda bem que não foi isso.
Será que ficaste assim com um sorriso tão rasgado que até ficaste com dores?
Então, boas férias ;) ou não.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarMuitos parabéns!
ResponderEliminarEu é que fico de boca aberta;)
Brutal!! Grande prova atleta! Continuação de grandes desafios!
ResponderEliminarGrande prova e, como sempre, excelente crónica. Estes relatos de corrida, com esta qualidade, constituem certamente uma motivação para muita gente e uma grande ajuda para desenvolvimento do Trail.
ResponderEliminarHá que continuar.
Apesar do espírito desportivo que revela, que é sempre simpático, não concordo com ideia de deixar-se ultrapassar intencionalmente numa prova competitiva. Bem sei do bom espírito que impera nas provas de Trail e que convêm preservar, mas as regras são iguais para todos e quem se perde, sem ser prejudicado por factores externos, tem a penalização devida e não teve ser "compensado" por isso. Acho que já nos aconteceu a todos perdemo-nos e geralmente sabemos que a culpa é quase sempre nossa.
No Trail também não acho ser simpático ultrapassar um companheiro em cima da linha de meta mas não considero ser ilegal ou reprovável. Já deixarmos-nos passar intencionalmente é, na minha opinião, desrespeitar os resultados desportivos.
João R.
Normalmente estaria de acordo contigo, até porque eu próprio me enganei algumas vezes lá para trás. A questão é que, muito provavelmente, terá sido num sitio já muito perto da meta, onde se passava de um estradão para o trilho. Normalmente tenho por principio se for atrás de alguém e vir que esse alguém se enganou chamo-o e espero que entre no trilho, mas claro que se me aparecesse atrás vindo não sei se onde eu continuaria. Mas percebo o que dizes, a orientação faz parte da competição.
EliminarGrande prova páh … agora já sei de quem eram as fitas que vi no domingo anterior quando fiz o percurso de Regoufe a Drave e volta com a família e amigos :) … valente prova e espectacular descrição da mesma. Muitos parabéns por ambos!!!
ResponderEliminar