As minhas corridas na estrada

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

III Freita Sky Marathon - Colher frutos na Freita

Passaram mais de dois meses desde a ultima vez que fiz uma prova, a Arada Night Race. Na semana seguinte tive a minha habitual (e justificada) quebra anual. Logo a seguir à prova fiquei com febre durante uns dias e demorei umas semanas até me sentir bem novamente. A coisa bateu certa com o meu plano de abrandar um pouco nos meses de Julho e Agosto e preparar o segundo semestre de provas como deve ser. Assim foi, continuei a treinar todos os dias mas com menos intensidade e, devagarinho, foram voltando as boas sensações. As pernas foram ficando mais leves, a velocidade estava a aparecer e sentia-me cada vez melhor a subir. Chegado a meados de Setembro já só tinha uma coisa em mente: voltar a correr com dorsal!

Frecha da Mizarela, foto da organização.
Eu adoro correr em provas. Adoro competir! Mas, atenção, não quero dizer que vá para as provas com a ilusão de discutir pódios, muito menos a vitoria. Não, sei bem o meu lugar. Quando, muito esporadicamente, acontece, é porque a concorrência também não é enorme. Mas uma coisa ninguém me tira, que é chegar ao fim com a consciência que dei tudo o que tinha, desde o primeiro metro! Foi por isso com níveis de ansiedade fora do normal, motivados pela ressaca de voltar a ter essas sensações, que me apresentei em Felgueira, no meio da Serra da Freita, para a minha terceira participação da espetacular Freita Sky Marathon (FSM).

Partida, na Eira d'Além. Foto da organização
Esta é sem dúvida uma das minhas provas preferidas. Tem uma característica que a distingue de todas as que já fiz, o nível de dificuldade vai aumentando gradualmente ao longo dos 42km, culminando na terrível parede que temos que transpor a apenas 2km da meta. Não sei se era esse o objectivo do Ricardo Fernandes quando desenhou este percurso, mas bate certo na perfeição. Depois, outra coisa que gosto, é que o percurso é igual todos os anos. Talvez pelo meu histórico na natação, tenho tendência a comparar registos actuais com anteriores. Uma das coisas que me leva a repetir provas é precisamente tentar superar o que fiz nos outros anos. Era esse o objectivo para 2019: superar as 7h05 de 2018 (em 2017 tinha feito 7h38). 

Em 2017, na primeira edição, descrevi o inicio da FSM como fofinho. São 17km com cerca de 800+, percorridos em trilhos pouco técnicos, misturados com 2 ou 3km de estradão e umas poucas levadas que obrigaram a saltitar e a ter algum cuidado extra. Claro que só é fofinho se formos com pouca intensidade. Parti cheio de vontade e fiz os 17km sempre perto do limite, subidas a trote e descidas a arriscar. Cheguei à aldeia de Berlengas, início da primeira grande subida, com média de 5'40''/km! 

É ali por volta dos 17km, depois da descida abrupta, que realmente começa a prova.
Nas Berlengas começamos a primeira das duas grandes subidas, cada uma com 800+, a primeira em 5km e a segunda em 3. Gosto mais da primeira. Começa por percorrer um trilho muito técnico e inclinado depois da Cascata das Porqueiras (trilho esse feito a descer no UTSF, que tanto trabalho me deu), depois acalma um pouco mas continua embrenhado no bosque até chegar à aldeia da Lomba, onde havia um abastecimento. Aí a subida começa uma segunda fase, esta em paisagens graníticas, sem trilho, mesmo como eu gosto! Com passagens muito técnicas entre maciços de granito enormes, pedaços bons para trotar e outros mais trabalhosos, quase sem darmos por isso já estamos perto da cota 1000 e a percorrer os 2km de planalto antes de começar a descer de novo o Vale Mágico, de volta a Lomba. 

Cascata das Porqueiras, sacado do Google. Claro que não tirei nenhum foto......
Seguindo a máxima de ir aumentando a dificuldade ao longo do percurso, a descida é técnica QB. Um trilho brutal na encosta do vale, com muita pedra (xisto) e a requerer atenção constante. Nova passagem pela Lomba a meio da descida e siga para o fundinho do vale, onde um pequeno e fresco ribeiro, no qual praticamente tomei banho, marca o inicio do KV da Freita. 

Seguia-se a segunda grande subida, com o mesmo ganho de elevação da primeira mas com cerca de metade do comprimento. Em que é que isso se traduz? Pois claro: inclinação com fartura!

Nesta já não há cá patamares para trotrar ou trilhos variados, é apontar pra cima, cabeça baixa e toca a trabalhar! A parte final é coincidente com o famoso trilho de Bradar aos Céus do UTSF, onde ainda há poucos meses penei como um cão. Foi precisamente aqui que tive a minha pior fase nesta FSM. A parte final, feita debaixo de um calor considerável e num trilho xistoso muito exposto, aqueceu como um forno. Comecei a entrar em desequilibro, a transpirar e a beber muita água, com as pernas a perderem forças e a respiração descontrolada. Foi com muito esforço que voltei a meter o trote no estradão ligeiramente a subir já perto do Pico da Gralheira. 

Radar meteorológico no Pico da Gralheira. Do Google, pois claro.
Estavam cumpridos 34 dos 42km. Quase no fim, dizem vocês. Pois bem, na verdade é este ponto que, para mim, marca o meio da prova!

Ia entrar agora na fase decisiva da FSM. Seguiam-se 4 rounds de uma luta intensa, 4 etapas distintas que, tal como é apanágio desta prova, aumentam gradualmente de dificuldade até ao final!

Round 1

Depois de 2km de descida fácil, durante os quais dá para abrir a passada e as pernas começam a desabituar da pressão, uma pequena, mas inclinada, parede de 100+ separa-nos de Cabaços. O desconforto enorme de trocar as pernas de descida pelas de subida é atenuado pela chamada da Sara, que me liga a dizer que está em Cabaços com os miúdos à minha espera. 

Foto da Sara, com a Mel lá atrás, a chegar ao controlo de Cabaços.
Round 2

Mal saímos de Cabaços entramos no infernal PR7. A descida para a base da Mizarela é feita a 4 apoios e constantemente a pensar no passo seguinte. Na base da cascata saltitamos por enormes pedras de granito e voltamos e enfiar-nos no mato para uma parede escalada no meio de raízes e terra preta. O round acaba com uma seta à esquerda e a entrada num balcão que nos dá uma assombrosa vista para a Frecha da Mizarela, este ano com um caudal considerável de água!

Foto do ano passado, na base da Mizarela
Round 3

Agora seguimos completamente embrenhados no PR7. Uma descida suicida enfia-nos no vale onde corre a água da Mizarela. Constantemente a ter que saltar balcões de pedra, num trilho onde os bastões só atrapalham. Tomo um gel a meio da descida já a pensar no round final, mas sinto-me bem. A Sara disse-me em Cabaços que seguia em 10º, o que me surpreende. Não estava à espera de estar tão bem! Desde o km vertical que não via ninguém à frente ou atrás, por isso subir posições estava fora de questão, mas ia dar tudo para manter a que ocupava! O tempo de prova também estava com bom aspecto, um bocadinho menos de 6 horas quando comecei a subida final. Se tudo corresse normalmente chegaria bem antes das 7 horas, mas ainda falta aquela ultima parede...

O PR7, tirado do Google. Dá para perceber bem o tipo de terreno.
Round 4

Aí estava ela, a 2km da meta, a parede final. No papel nem parece grande coisa, tem apenas 800m de comprimento. Mas são os quase 300m de subida, com inclinações que chegam bem acima dos 35%, numa fase tão tardia da prova, que a tornam implacável. É toda feita numa crista completamente exposta, que nos deixa ver do primeiro ao ultimo metro da subida. Meti bastões a trabalhar e icei-me por ela acima, sempre no limite, a escorrer água. Pelo canto do olho vi o 11º e logo a seguir o 12º a começar a subir, levava uns 7 ou 8 minutos de vantagem. Era pouco, o 12º estava com um grande ritmo e tinha ganho uma posição, qualquer hesitação minha e era virado também! A parte final foi toda feito no limite! Com as pernas a ameaçar ceder bebi os dois últimos goles de água que tinha e estava a poupar para aquele ponto. Com um grito virei a subida e debrucei-me sobre os joelhos por não mais que 10 segundos. Rapidamente desmontei os bastões e, sem olhar para trás, lancei-me à descida! 

Estava feito! A descida passou sem incidências, 6h33 depois estava de volta a Felgueira. 33 minutos a menos que o passado e mais de uma hora a menos que 2017! Segurei a 10ª posição mas, acima de tudo, foi aquela adrenalina brutal de ter conseguido cumprir o plano que me deixou nas nuvens. Ao analisar a actividade no Strava percebo que bati os records pessoais nos 12 segmentos onde passámos. A sensação de trabalho recompensado é impagável, treinei muito para conseguir estar nesta forma e é espetacular colher os frutos! 

19 comentários:

  1. Já tinha saudades de ler um relato teu :)

    Muito bom! Que grande prova! Que prestação incrível! Muitos parabéns! Fizeste mesmo um tempo espectacular e acredito que dê um gozo especial ver essa evolução tão grande com o passar dos anos :)

    Aquilo que sinto ao ler os teus relatos é que dás mesmo tudo... E isso é espectacular!

    Que a boa forma se mantenha e que continues a descrever as tuas aventuras :)

    (a foto com a Mel está mesmo gira!)

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    1. Obrigado, Inês! E eu estava cheiinho de saudades de os escrever eheh É o problema de não ter jeito nenhum ou imaginação para escrever, além de descrições. Se não for isso nunca cá venho!

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  2. Muitos parabéns por mais uma grande prova! E esta com a ajuda do Goggins ;)

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    1. Isso está sempre! Lembro-me sempre daquela do "everyone quits at 40%!" e depois dou mais um bocado ehehe

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  3. UAU!!!
    Estás numa forma brutal!

    Ca espectáculo!

    Muitos parabéns pelo tempo incrível e pela classificação excelente.

    Beijinhos e abraços nossos

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    1. Obrigado, Isa! Há tempos que não vos vejo.. 20km?

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    2. De Almeirim? Vamos rolar aos 10 km porque na semana anterior iremos a Abrantes;)

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  4. E mereces bem colher os frutos! Muitos parabéns!

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  5. Muitos parabéns! Brutal! 33 minutos menos do que 2018 e mais de uma hora de 2017!!!! Até onde chegarás?!?

    Como sempre, os teus textos são muito bem descritos, minuciosos e empolgantes.

    Grande abraço e força para os próximos desafios

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    1. Obrigado, grande João! Essa parte realmente dá-me muito gozo, mas também sei que a evolução eventualmente vai estagnar e começar a decair. Vamos ver como lido com isso na altura..

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  6. Gosto tanto de partilhar os trilhos contigo.
    Grande beijinho p ti e para a tua família que te acompanha nas aventuras.
    ❤❤

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    1. Eu também, até a momento em que disparas a meio de um km vertical e deixo-te de ver em meia duzia de minutos ehehe

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  7. Muito bom. Finalmente o regresso às provas e a estes relatos fantásticos.
    Grande abraço, e boa recuperação.

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  8. Fantástico Filipe!!! Os meus parabéns e a minha admiração - mereces muito isto tudo porque trabalhas muito para o conseguir - admiro a tua força de vontade, adoro ver a família toda a apoiar esta "maluqueira", e não me refiro apenas ao dia, refiro-me a todos os dias, ao esforço que fazes para lhe roubar o mínimo de tempo possível - isso não é nada fácil de gerir e por isso tudo os meus parabéns a toda a familia. Fico mesmo muito feliz por ti!!! Tás um maquinão!!! Aquele abraço e boa recuperação

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    1. Essa parte realmente tem muito que se lhe diga.. Arrisco a dizer que o fim de semana foi mais duro pra ela do que pra mim! O sacana do Manel só faz porcaria, dão cabo da cabeça dela.. Ao fim do dia estava mais cansada que eu! Muito obrigado e espero voltar a encontrar-te em breve nos trilhos!

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    2. Não tenho dúvida nenhuma :)

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  9. "A sensação de trabalho recompensado é impagável, treinei muito para conseguir estar nesta forma e é espetacular colher os frutos!"

    E é isto, queres, trabalha!

    Mais claro e justo que isto é impossível.

    Estou com o Carlos nesta (shiuu, não contes ;)) mas também já o referi várias vezes antes, a maneira como a família leva isto tudo é muito bom.

    Parabéns a todos, em especial à Sara, a maior parte do esforço é dela, tu só corres ahahaha

    Grande abraço

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    1. Este fim de semana, especialmente.. Não é fácil, há dias que são mesmo difíceis. Eles adoram estar presentes e eu obviamente que também, mas, como dizia ao Carlos, a Sara ficou mais cansada durante o dia do que eu!

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  10. Filipe grande descrição da prova, foi a minha estreia numa prova longa e acredita custou-me muito. Não conhecia a parte final da prova e arrisquei tudo até ao km 30, lógico paguei a factura no final. Já disse que não a repetia mas acho que vou ter que voltar atrás com a palavra e voltar a tentar, o teu relato já deu frutos ����.
    Já agora aproveitei para ler o teu relato da prova para a minha piolha e sabes a melhor?? Conseguia adormecê-la hehehehe������

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